segunda-feira, 15 de abril de 2024

Manuel Alegre, e as suas (e nossas) memórias

Por João Boavida 
 
Em três dias li as quatrocentas páginas deste livro de Manuel Alegre, tal é o interesse que despertam. Não é propriamente uma autobiografia, mas um livro de memórias que acompanha a sua vida, para trás, até onde a sua lembrança é capaz de recuar, e por onde passam antepassados, de que ouviu falar, vítimas do absolutismo, gente descendente de outros com memórias ainda das Lutas liberais, ou participação nelas, republicanos, monárquicos, uns aristocratas, outros plebeus, outros nem uma coisa nem outra.

O que talvez explique nele essa mistura, hoje difícil de entender por muitos, da liberdade e intervenção política de esquerda com patriotismo e orgulho pela história de Portugal e sua epopeia. É por isso quase uma biografia de um certo Portugal que lutou contra o Estado Novo, mas através da visão lírica sofrida de um poeta interventivo, com gosto pela peripécia aventurosa e simultaneamente com propensão para a evocação sentimental da nossa história e da sua lírica inigualável.

Há uma linha temporal que vai estruturando a evocação, um filme dos acontecimentos por ele vividos e relatados à luz duma perspetiva pessoal, frequentemente poética, mas entretecidos com acontecimentos políticos, uns maiores, outros menores, de cuja amplitude temos agora a noção verdadeira mas que não se tinha no tempo em que foram vividos. Voltamos a sentir o Portugal dos últimos anos do salazarismo, vividos entre o desânimo de que a asfixia política nunca mais acabaria e a esperança de que um dia havia de ser. 
 
E as memórias de Manuel Alegre são uma imagem quase perfeita dessa oscilação entre altos e baixos, entre sombra e luz, esse itinerário tortuoso e difícil em que o País foi tomando consciência da sua situação política e social, até à libertação de 74. É pois uma longa evocação com muito de lírico, e o seu tanto de dramático, mas por onde passa o Portugal que conhecemos, meio visível, meio invisível desde os anos cinquenta do século passado até hoje.

Sobre a sequência mais ou menos linear dos acontecimentos, mas com recuos e desvios frequentes para evocações preferenciais, há uma linha, uma estrutura de base onde vão sendo inseridos, através de pequenos capítulos, com título e tudo, memórias particulares de pessoas, reuniões, debates, fugas, projetos, conspirações, disputas, leituras, através das quais os acontecimentos em Portugal e fora dele vão evoluindo.

É uma espécie de lançadeira que entra e sai, em que os acontecimentos vão sendo evocados, às vezes repetindo-se, numa sequência que é simultaneamente temporal e sentimental, e que têm, por isso, a dupla missão de falar do poeta, da sua vida e, a partir do que vai evocando, acabar por contar grande parte da história recente de Portugal. É por isso também um roteiro sentimental, em que se sente o seu afeto pelo país e por aquilo a que se costuma chamar de portugalidade, O livro tem ainda, para todos os que viveram por esse tempos, ou depois, em Coimbra, um interesse particular. Manuel Alegre dá, da vida estudantil coimbrã, dessas duas ou três décadas, uma ideia viva e rica, que é ocultada por todos os que, vindos depois, e de fora, gostam de realçar o conservadorismo da academia.

Coimbra tinha (com tem ainda) um poder encantatório que a todos envolvia, e uma grande dinâmica cultural, e mesmo política, embora esta em registos mais restritos. Tertúlias, representações teatrais, reuniões, conferências, ciclos de teatro e cinema, jogos de futebol, assembleias magnas, lutas e lutos académicos constituíam um caso único em Portugal, até pela concentração geográfica e estudantil que multiplicava os seus efeitos.

Sobre este ponto de vista Manuel Alegre está muito bem posicionado, porque teve a sorte de encontrar em Coimbra alguns grandes cantores e guitarristas das últimas gerações, como António Portugal e António Brojo, colaborar na renovação da música ligeira de Portugal, que saiu do fado de Coimbra através da inspiração de José Afonso e depois Adriano Correia de Oliveira e de outros, e que depois foi dominante no período pós revolucionário. E é a ele que, quer se queira quer não, se ficou a dever alguma da poesia mais interventiva e dinamizadora contra a ditadura e a guerra colonial. Como todos sabem, de alguns dos seus poemas se fizeram entusiasmados cânticos de luta e de liberdade.

Dir-se-á, ao ler estas memórias, que acentuam a ideia de um certo romantismo fora de época, mas que se coaduna bem não só com Coimbra e o seu tempo, mas que vai muito para além disso, porque se inscreve numa tradição poética e aventurosa, à moda de Camões, e de luta política e também vida poética, à moda de um Garrett, por exemplo. Sente-se-lhe a vontade de ser inserido nessa tradição, mas não se vê razão para o não fazer, porque a vida dele tem essas diversas dimensões.

A vida de militar no norte de Angola, o desterro nos Açores, a fuga à prisão, o exílio em Argel, a “Voz da Liberdade”, as conspirações, os tempos de Paris e, por fim, o 25 de Abril, constituem um itinerário invejável e de que muitos outros gostariam de se orgulhar. E mesmo as suas atividades políticas posteriores – como as candidaturas à Presidência da República - devem ser vistas como uma necessidade de intervenção, talvez até de protagonismo, não só político mas ainda literário (Teixeira Gomes, Teófilo Braga) e sempre, tudo o indica, com algumas linhas de estruturação moral e cívica que são de assinalar porque não se encontram em todos.

Há ainda outros aspetos muito interessantes relativos aos acontecimentos pós 25 de Abril, ao chamado Verão Quente, e ao 25 de Novembro, que alguns agora tentam apagar, esquecidos que há muitos que ainda disso se lembram muito bem. Manuel Alegre, sem pretender fazer uma história dos acontecimentos, dá-nos uma visão das forças em jogo e da seriedade e gravidade do que se viveu. E de como ficamos a dever a alguns a liberdade de que hoje podemos usufruir.

Nem todos gostam dele, os mais retrógrados e politicamente saudosistas, verão sempre nele o desertor, outros o militante comunista que se desvinculou do PCP. Ora, sabemos como nem uns nem outros esquecem, e muito menos perdoam coisas destas, por muito justificadas e forçadas pelas circunstâncias que tenham sido. Mas a história é feita também pelos outros, e os acontecimentos não desaparecem só porque alguns os rejeitam ou não os sabem acompanhar. E como a poesia de Manuel Alegre é daquelas que dá gosto ler, e nos diz muito, e não das que, como dizia Eugénio Lisboa, têm como supremo ideal o não dizerem nada, é bom saber o muito que está por detrás dela e a motivou.
João Boavida

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