sábado, 13 de abril de 2024

ELOGIO DA TRANSMISSÃO

Sou frequentemente interpelada acerca da necessidade e, sobretudo da pertinência, de o professor transmitir informação aos seus alunos, sobretudo neste tempo em que toda (?) a informação está disponível, ao alcance dos alunos a qualquer hora e momento. Vejo confundir-se a "transmissão", que o professor faculta aos alunos, com memorização mecânica, entendendo-se que isso perturba o desenvolvimento de capacidades como a compreensão e a criatividade, a iniciativa e a autonomia. 

Não vou discutir a ideia porque Tania Alonso Sáinz, jovem professora de Ciências da Educação, mais concretamente de Teoria da Educação, da Universidade Complutense de Madrid, por certo, tão interpelada quanto eu sou, fê-lo primorosamente, num texto acabado de publicar na imprensa espanhola (aqui). 

Nota: Permito-me colocar ligações para obras e textos que menciona.

"O acto de transmissão não é simples e requer muito amor genuíno, no caso dos professores, para com os estudantes e para com o mundo. Por um lado, compreenderem que querem bem aos jovens é exigir deles, tomá-los a sério, dar-lhe mais do que aquilo que já têm. E, por outro lado, professar uma paixão pelo conhecimento, até ao ponto de o erotizar, de o fazer atractivo, ou – nas palavras de Recalcati – convertê-lo em objecto de desejo para aqueles que não o conhecem.

Numa tendência ‘MrWonderfulista’, o amor às crianças traduz-se em cuidado emocional que os proteja, no presente, de toda a frustração, no mal entendido bem-estar, comprometendo a sua capacidade para enfrentar, no futuro, frustrações. 
 
Por isso, o primeiro gesto de respeito face aos mais jovens têm a ver (…), não os enganarmos nem nos enganarmos; não há atalhos pouco cansativos para crescer e nada progride com a condescendência mas com a sã exigência de quem vê o actuar futuro dos mais jovens a partir da sua potência do presente. 
 
Como nos ensinou Hannah Arendt, o acto de transmitir é esperançoso pois supõe que alguém ama o mundo, ou um pedaço dele, o suficiente para dedicar a vida a transmiti-lo, fazendo da cultura outro nome para a esperança. Daí o importante desígnio docente de ter tempo para estudar, para preparar as aulas, para desenvolver a relação com o objecto de estudo, pois, todo o amor, perde força se não se lhes presta uma cuidadosa atenção (…).
 
São múltiplas as manifestações [da crise que se materializa na ideia de que é possível educar sem transmitir]. Na obra ‘Os deserdados´, o professor Bellamy conta-nos que um antigo inspector do Ministério da Educação francês mostrou particular entusiasmado com a ideia de libertar os jovens da penosa tarefa de receber um legado cultural, pois eles, nativos digitais, têm um melhor acesso à informação do que os seus pais e professores. Esta tendência, como se sabe, não se reduz a França nem aos políticos. Libertar os alunos da transmissão, ou de acções que com ela se relacionam, como memorizar, conhecer ou aprender sintaxe, faz parte do 'mantra' supranacional, que contrasta com a defesa a recuperação da memória histórica (sem memória) (…).

[A] crise da transmissão tem a ver com muitos factores, mas principalmente com a falta de amor ao mundo herdado que reflecte no desprestígio do saber em favor do entusiasmo pela informação à distância de um 'click'; e com o consequente esboroamento da missão da escola e dos professores, e também do que era a sua fonte mais legítima de autoridade: serem representantes da cultura e do saber. O que, há mais de um ano, ouvimos dizer à nossa ministra da Educação, que «na era da inteligência artificial» já não é preciso acumular conteúdos» é uma boa síntese da desconfiança social do poder transformador do saber no desenvolvimento da pessoa (…). 
 
Ler fluentemente e sem medo textos difíceis ou comover-se com uma peça de música clássica não deve estar reservado à elite intelectual, ou não deveria estar. Faz parte da compreensão a si mesmo, dos outros e do mundo. Saber que não se é o primeiro nem o único, que o mundo não nasceu connosco, que pertencemos – e não só participamos – numa estrutura da qual somos juízes e partes, renovadores e responsáveis. Sem transmissão abandonamos os alunos àquilo que eles trazem do berço num gesto de profunda injustiça.

Este é o argumento de Cécile Ladjali, professora de Literatura numa escola secundária de um bairro parisiense pobre, mesmo que os seus colegas lhe sugerissem que, para ser inovadora e motivadora, deveria proporcionar mais ´hip-hop´ e menos Shakespeare. Este é o mesmo grito do professor de música Alberto Royo quando, num acalorado debate televisivo, perguntava de que maneira inovadora poderia ensinar uma sonata aos seus alunos sem os enganar, isto é, não buscando
diversão mas, sobretudo, a aprendizagem para poderem passar para um outro nível de fruição.

Assim, não é de estranhar o mal-estar docente a que assistimos (…), professores obrigados a educar sem transmitir (…). Diz-se que são imprescindíveis para salvar as trajectórias dos estudantes, ainda que sejam responsabilizados pelo seu baixo rendimento. Salvadores mas culpados. Além disso, são instados, a partir dos organismos internacionais a aumentar o grau de autonomia do seu exercício e juízo profissional ao mesmo tempo que se obrigam a prestar mais contas, num 'tsunami' burocrático que os sufoca. Autónomos, mas burocratizados. Diz-se que são as pedras angulares do sistema educativo, mas espera-se que sejam facilitadores, sem intervir na construção autónoma da aprendizagem dos alunos, numa espécie de apagamento da sua função de transmissores da cultura e do saber. Pedras angulares mas prescindíveis.

A autoridade docente residia na sua tarefa clássica de transmitir. Num contexto de multiplicação de tarefas, a sua missão descentra-se, polarizando o debate entre a educação tradicional e progressista, entre inovar e conservar, entre ‘professáurios’ e ‘eduinovadores’, e entre conteúdos e competências. Discussão mentirosa porque é impossível educar, do mesmo modo que é impossível inovar no vazio, ou ser competente sem tem nada na cabeça.

Um docente que passa oito horas por dia com crianças e jovens quer que o deixem exercer a sua função, que não é a de psicólogo nem terapeuta, ainda que o seu trabalho tenha um efeito sanador. 
 
Desejemos que os professores transmitam, elogiemos a sua tarefa, permitamos, promovamos e possibilitemos, desde a política e desde a sociedade, que a sua milenária tarefa siga o seu curso."
 
Tania Alonso Sáin

2 comentários:

António Pires disse...

Por hipótese académica, aceitemos então que a função principal do professor, qual seja ensinar, está completamente esgotada com o advento da Inteligência Artificial. Então, será que não está na hora de desmobilizar a maioria do imenso exército de professores que foram formados - quantas vezes em Universidades! - para ensinar? Convém lembrar que uma das maiores fatias de despesa do Estado foi identificada, nos tempos da troika, com os vencimentos dos mais de cem mil professores e educadores de infância, que nessa altura já pouco ensinavam. Para tomar, apenas, conta das crianças e jovens, sem transmitir conhecimentos, por vezes difíceis de ensinar, tenho para mim que um corpo de cerca de 60 mil coachers e mentores seria mais do que suficiente para trazer a felicidade às escolas, partindo do pressuposto que o número de educadores de infância até poderia aumentar.
Neste quadro, a falta de professores é um mito.

Helena Damião disse...

Prezado António Pires
A contradição é evidente: reconhece-se (ainda?) que a falta de professores é um aspecto crítico dos sistemas educativos, afirmando-se, em simultâneo, que a sua função não é ensinar, ou não é ensinar segunda a ideia de ensino que temos em mente e que inclui levar conhecimentos aos alunos. Logo, sim: tutores e mentores (que, de resto, já estão nas escolas) poderão "apoiar" os alunos, já que se supõe que eles são autónomos.
Cordialmente,
MHDamião

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