Meu artigo no último JL:
O 25 de Abril de 1974 fez
florescer a ciência em Portugal. De facto, o Estado Novo não foi «amigo» da
ciência, como mostra não apenas o reduzido investimento nessa área, mas também o afastamento de numerosos cientistas pela
sua oposição ao regime. A moderna indústria baseia-se na ciência, mas António
de Oliveira Salazar ansiava que Portugal fosse «o magnífico pomar e a
esplêndida horta da Europa» e defendia que «se tivesse de haver competição,
continuaria a preferir a agricultura à indústria». Não admira, por isso, que a nossa
industrialização tenha sido tardia: só em 1963, depois dos outros países industriais
europeus, o valor do produto industrial ultrapassou o da agricultura. Franco
Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros, afirmou em 1969: «A ciência e a
técnica (…) são monopólio dos povos ricos e altamente desenvolvidos». Quanto
muito, a investigação teria relevância no «Ultramar», onde haveria que explorar
os recursos locais, conforme defendeu Marcello Caetano, que foi ministro das
Colónias.
Apesar
de tudo, houve no regime deposto em 1974, alguns esforços em prol da ciência, mais
da aplicada do que da fundamental. Assim, por exemplo, em 1946, foi inaugurado
o Laboratório Nacional de Engenharia Civil e, em 1961, foi inaugurado o Laboratório
de Física e Engenharia Nucleares, em Sacavém, prevendo-se a construção de
centrais nucleares, que nunca se concretizaram. Na medicina, área na qual houve
incrivelmente em 1949 um solitário Nobel português nas ciências (o neurologista
António Egas Moniz), o Estado procurava acompanhar os grandes progressos que se
desenrolaram ao longo do século XX.
Um
forte condicionante do desenvolvimento da ciência era o défice de educação. De
facto, a educação era apenas acessível a uma reduzida fatia da população. Este
estado de coisas só começou a mudar significativamente no início dos anos de
1970 com a reforma do ministro da
Educação José Veiga Simão, o professor de Física da Universidade de Coimbra que
tinha sido o primeiro Reitor da Universidade de Lourenço Marques. Ele pugnou pela
democratização do ensino, incluindo o superior.
Mas Abril foi uma explosão, não só com a criação de um clima de liberdade, indispensável à criação intelectual (em particular nas ciências sociais e humanas), mas também pelo alargamento da escolaridade (o ensino superior aumentou com a criação de novas escolas) e pelo maior investimento na investigação. Este último foi particularmente impulsionado pela entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, antecessora da actual União Europeia, em 1986, quando Mário Soares era primeiro-ministro. Parte dos fundos europeus foi aproveitada para formação de pessoas e criação de infraestruturas científicas e técnicas.
Um ano decisivo foi o de 1995, quando foi criado, no primeiro governo de António Guterres, o Ministério da Ciência e Tecnologia, pasta atribuída a José Mariano Gago, professor de Física da Universidade Técnica de Lisboa. Mariano Gago, que foi ministro em dois governos de Guterres e dois de José Sócrates (nestes, juntando o Ensino Superior), foi, sem dúvida, a figura de mais relevo na ciência em Portugal nos últimos 50 anos. Ele pôs em prática com sucesso um plano de modernização e internacionalização da ciência portuguesa, anunciado no seu Manifesto para a Ciência em Portugal (Gradiva, 1990).
Criou em 1996 a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), herdeira de
organismos como a Junta Nacional para a Investigação Científica e Tecnológica
(JNICT) e o Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC), que tem apoiado
a formação académica, projectos de investigação e laboratórios. Montou um sistema
de ciência e tecnologia, com uma rede de centros de investigação em todas as
áreas, não esquecendo a cultura científica (criou a Agência Ciência Viva,
ultimamente muito apagada). Em 2000 surgiram os primeiros Laboratórios Associados.
Portugal, que tinha entrado para a Organização Europeia de Investigação Nuclear
(CERN) em 1985, entrou para a Agência Espacial Europeia (ESA) em 2000 e para o
Observatório Europeu do Sul (ESO) em 2001. No lado privado, juntando-se à Fundação
Gulbenkian, que desde 1961 detinha o Instituto Gulbenkian de Ciência, um laboratório
de biomedicina, apareceu em 2004 a Fundação Champalimaud, na mesma área.
Para
verificar a transformação que o país realizou na ciência, basta olhar para a
PORDATA e ver que, em 2022 (último ano para o qual há dados), havia quase
60 000 investigadores, ao passo que em 1982 (quando acabou o Conselho da
Revolução) não chegavam a 5000, um aumento de mais de dez vezes. Medidas
inequívocas de produtividade científica são a formação de novos doutores, a
publicação de artigos científicos e o registo de patentes. Em 2022 foram
concluídos 2317 doutoramentos: nos 40 anos entre 1982 e 2022 o número de novos doutorados
aumentou quase 20 vezes. Destaco o facto de hoje haver mais graus de mulheres
do que de homens, reflectindo a ascensão social das mulheres que Abril
proporcionou. Se em 1982 os investigadores em Portugal publicaram 388 artigos,
em 2022 publicaram 30 078, quase 80 vezes mais. Nas patentes houve um
crescimento: se, no início dos anos de 1980, não havia pedidos na Via Europeia,
em 2022 foram 312, das quais foram concedidas 67. Tal crescimento só foi
possível graças a um crescimento da escolaridade da população e, claro, a um grande
salto no financiamento. Em 1982 só se investiu na ciência 0,3% do PIB (dos
quais 0,1% do lado das empresas), mas em 2022 o valor já foi de 1,7% (dos quais
1,1% do lado das empresas), quase seis vezes mais.
Abril
proporcionou, portanto, um big bang da ciência em Portugal. Mas não nos podemos
impressionar pelo crescimento relativamente ao passado (estávamos muito
atrasados!), antes devendo ver os números portugueses à luz de comparações
internacionais, em particular a europeia. O referido investimento de 1,7% está aquém
da média europeia de 2,2% (a Bélgica, a Suécia, a Áustria, a Alemanha e a Dinamarca
lideram, com índices acima dos 3%). Mas há pior: os fundos do Orçamento de Estado
para a ciência são só cerca de 0,4% do PIB, um número comparável com o do
início dos anos 1990, em nítido contraste com a média europeia de 0,7%. No
número de investigadores comparamos bem com a média europeia, se dividirmos
pelo número de pessoas activas, estando, na participação feminina, bem acima da
média europeia. No número de novos doutores, apesar do esforço realizado,
estamos abaixo dessa média. No número total de doutores de pessoas em idade activa
(18 aos 24 anos) ainda estamos abaixo da média europeia (não há, portanto, doutores
a mais!). E, no número de artigos por habitante, conseguimos estar um pouco
acima da média europeia, o que já não acontece se considerarmos os artigos que
estão no top 10% dos mais citados, índice em que estamos um pouco
abaixo: mesmo assim, estes dados mostram que os investigadores em Portugal
conseguem fazer omeletes com poucos ovos. Onde a porca torce o rabo nas
comparações internacionais é nas patentes: a nossa posição ainda é na cauda da Europa.
E o mesmo se aplica a outros índices que traduzem o impacto da ciência na
economia, como o capital de risco aplicado relativamente ao PIB e a exportação
e produtos de alta tecnologia relativa ao total de exportações. O Global Innovation
Index de 2021, que aglomera vários índices de inovação, dá a Portugal o 31.º
lugar no mundo, que corresponde ao 18.º lugar da União Europeia. Há muito
caminho para percorrer.
A ciência, embora tendo crescido bastante desde 1974, conheceu
períodos de retrocesso, designadamente na última década (a intervenção da troika
em 2011 foi um duro golpe do qual tem custado recuperar). Gostaria de dizer que
a ciência portuguesa está bem e se recomenda, mas só posso dizer que se
recomenda. Não está bem: podia e devia estar melhor. Não é só a ligação às
empresas que tem de melhorar (não descurando evidentemente a ciência
fundamental), é também a ligação ao ensino superior, que está subfinanciado, designadamente
através da contratação de doutores, que têm vivido em situação precária, vendo-se
alguns obrigados a emigrar, e o reforço dos Laboratórios de Estado, que têm
sido preteridos em favor dos Laboratórios Associados. O desenvolvimento da
ciência é uma das marcas maiores de Abril. Continuar esse caminho é cumprir uma
das esperanças que se abriram há 50 anos.
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