Merecia, há muito, uma reedição este livro, Como Bola Colorida. A Terra, Património da Humanidade, da autoria do Professor Galopim de Carvalho, publicado pela primeira vez na Âncora Editora em 2007. De facto, a expressão “há muito” não será a mais apropriada do ponto de vista de um geólogo, já que este lida com intervalos temporais de milhões de anos. Do ponto de vista da história da Terra, a edição e a reedição deste livro sobre as Ciências da Terra são praticamente simultâneas. Seja como for, a necessidade de reeditar esta obra diz bem do interesse que ela merecidamente continua a suscitar no público.
A expressão Coma Bola Colorida, uma citação de um famoso verso do
poema “Pedra Filosofal” de António
Gedeão, pseudónimo literário de Rómulo de Carvalho, o professor de Ciências
Físico-Químicas que é o patrono da
cultura científica em Portugal, refere-se ao nosso planeta, que tem belas cores: decerto o azul do mar e o
verde da vida, mas também as cores das rochas, que podem ir dos tons claros do
quartzo aos escuros do basalto, passando pelos cinzentos e rosa dos granitos e
pelos tons vermelhos da algumas argilas (pois as há multicolores!). Mas uma
criança que quisesse agarrar no nosso planeta teria de ter um tamanho
gigantesco. Basta pensar que a bola onde vivemos tem cerca de 6400 quilómetros
de raio, ao passo que uma bola de futebol adequada a uma criança terá cerca de
20 centímetros de raio. Um rapaz ou uma rapariga poderão ter entre um metro e
um metro e meio. Feitas as devidas proporções, a altura da criança teria de ser
à volta de 40 mil quilómetros, o que, parecendo muito, não é nada à escala do Sistema
Solar: é um décimo da distância entre a Terra e a Lua.
Uma metáfora impressionar-nos-á tanto mais quanto mais fora da realidade
estiver. E é indiscutivelmente uma bela metáfora aquela que Galopim de Carvalho
escolheu, em 2006, para título do seu livro, publicado quando se comemoravam os
cem anos do nascimento de Rómulo de Carvalho. A nossa “bola colorida” já deu 17
voltas ao Sol deste então. Estamos todos mais velhos. Mas na Terra não se nota
muito. Só não está na mesma devido às modificações que lhe fizemos, das quais a
mais grave será o aumento desmesurado dos gases de efeito de estufa, como o
dióxido de carbono, na atmosfera. Mas, para quem tem 4,54 mil milhões de anos
de idade, como é o caso do nosso astro, 17 anos não são nada, absolutamente
nada. O livro mantém-se novo, tendo a revisão sido menor: naquilo que está bem
não se deve mexer. Em particular, o prefácio de José Mariano Gago tem plena
actualidade, pelo que se mantém rigorosamente na íntegra. Ao relê-lo, senti
saudades do seu autor: faz-nos falta aqui neste nosso quinhão do planeta para
avivar a luz da ciência. Foi ele que instituiu, em 1996, o Dia Nacional da
Cultura Científica, precisamente no dia de aniversário de Rómulo de Carvalho, para
prestar justa homenagem aquele que, além de professor e poeta, foi também um
grande divulgador de ciência.
O geólogo Galopim de Carvalho, a quem um dia chamei “Mestre das Pedras e
das Palavras” por ser tão exímio com as primeiras como com as segundas, é, na
esteira de Rómulo, um grande divulgador de ciência. Com uma vivacidade que tem
resistido ao passar dos anos (para ele os anos que sejam abaixo de um milhão
não são relevantes!), tem-nos dado o melhor do seu saber e talento quando nos descreve
a incrível variedade da Terra e nos conta o longuíssimo processo histórico que
moldou o nosso lugar no espaço. Neste livro, que acresce a mais de três dezenas
de outros seus títulos, Galopim traz-nos, num português de lei, uma síntese dos
resultados mais importantes das Ciências da Terra: a estrutura, a dinâmica, a pluralidade de
paisagens do nosso planeta, incluindo as pródigas marcas da vida que é quase
tão antiga como ele. Galopim de Carvalho usa um recurso que Rómulo de Carvalho (por
coincidência, partilham o mesmo apelido!) também usava desenvoltamente e que
devia ser mais comum na divulgação da ciência entre nós: recorre à história da ciência.
Mostra assim que a ciência é uma conquista humana, um conjunto de conhecimentos
que foram duramente extraídos da Natureza pelos cérebros e mãos de diligentes seres
humanos ao longo do tempo, uns na peugada dos outros, num empreendimento
contínuo e a continuar. Mais importante que os conhecimentos, são os métodos
para os obter. Sim, é contada em traços gerais a história da Terra, mas é
também contada a história da tomada de consciência da historicidade geológica,
que é muito recente. Com efeito, foi só no século XIX que os geólogos se
aperceberam da enormidade da nossa história planetária, ultrapassando antigos preconceitos,
alguns de raiz bíblica. Os geólogos que olharam para as modificações lentas e
graduais da Terra foram-lhe dando uma idade aproximada que nada tinha a ver com
as mitologias e que excedia mesmo largamente a que era estimada por físicos e químicos
com base em considerações termodinâmicas. E era mais fiel a sua cronologia, justificada
pela acumulação de observações de lagos e oceanos, vales e montanhas, estratos
e fósseis, etc. do que a dos seus colegas físico-químicos, fundada em modelos
matemáticos.
Ao Terra tem sido palco de um rol de
acontecimentos, não raro surpreendentes: arrefecimento a partir de uma massa
ígnea inicial, impacto com outro astro para originar a Lua, quedas de meteoroides,
formação dos oceanos, surgimento dos primeiros organismos, início da
fotossíntese e oxigenação da atmosfera, proliferação da vida com a «invenção»
do sexo, extinções maciças por razões em parte misteriosas, movimentos de
placas tectónicas e outros, sismos e vulcões, idades do gelo, e, nos nossos tempos,
as transformações de responsabilidade humana que alguns julgam merecer um novo
período geológico: o Antropoceno. Se hoje sabemos algumas coisas sobre estes fenómenos
foi graças aos esforços de homens e mulheres cujos nomes vêm referidos neste
livro. Mestre Galopim é o nosso guia nessa viagem nas páginas que se seguem,
destacando naturalmente os sítios e eventos em Portugal, onde está ou de onde
vem a maioria dos seus leitores. Ele preocupa-se
com a fácil compreensão por parte de quem lê, nunca subestimando a inteligência
dos leitores, uma regra básica na divulgação científica. Por exemplo, tem o
cuidado de nos explicar, recorrendo a grãos de arroz e a badaladas de sinos, o
que significa um milhão de anos, que afinal é uma «migalha» na história da
Terra. Para nos acicatar a imaginação, fala de um bolo de aniversário para a Terra
com 4540 milhões de velas. São, indiscutivelmente, muitas velas! Quando os
dinossauros desapareceram, o bolo «só» tinha 4474 milhões de velas.
Se com José Mariano Gago a ciência entrou nas nossas casas, é preciso que
ela entre mais e que fique bem instalada. Galopim de Carvalho é um exemplo
inspirador de como é possível, com vista a tal desiderato, fazer bem-sucedida
divulgação de ciência, num país em que largos sectores são avessos à ciência. São
utilíssimos livros como este que descrevem em linguagem simples o chão que
pisamos, o seu início e as suas metamorfoses, as suas riquezas e misérias, os
seus encantos e mistérios. Em meu nome e – seja-me permitido – em nome de todos
os leitores expresso-lhe a minha, a nossa, gratidão, por tudo o que temos aprendido
dele e com ele. Sei que a vida humana é um lampejo em comparação com o tempo da
Terra, mas desejo que, no seu caso, esse lampejo se prolongue, prosseguindo a iluminação
que tem espalhado. Desejo que o «Mestre das Pedras e das Palavras» continue a
ajudar-nos a compreender o nosso planeta não só com a sua grande sabedoria, mas
também com a sua enorme jovialidade e a sua extraordinária simpatia.
Carlos Fiolhais
Coimbra, 15 de Dezembro de 2023
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