sábado, 2 de dezembro de 2023

A ESCOLA ATRAENTE DE INÍCIO DO SÉCULO XX

Irene Lisboa, em 1926.
Irene Lisboa destacou-se como escritora multifacetada mas o seu nome está indissociavelmente ligado à educação e, de modo mais concreto, ao movimento de renovação da incipiente e tendenciosa escola idealizada pela Primeira República e, depois, pelo Estado Novo.
Como professora (fez o Magistério Primário e exerceu a docência com manifesto empenho até ser afastada por motivos políticos) e pedagoga (estudou Pedagogia, foi bolseira na Bélgica e na Suíça) empenhou-se, em particular, no estudo do desenho infantil e em metodologias que estivessem de acordo com o desenvolvimento da criança, que, então, começava a ser revelado pela moderna Psicologia.
Deixamos ao leitor um extrato de uma palestra com o título A escola atraente, que proferiu no Grémio dos Professores Primários Oficiais, na Sociedade de Geografia, a 5 de Junho de 1926, que revela muito do seu pensamento e do pensamento da altura.

Isaltina Martins e Maria Helena Damião

“- Mas, como eu queria dizer, à roda do ler, escrever e contar se apertam as actividades escolares.
- Lê-se muito, escreve-se muito, fazem-se muitos cálculos, muita contagem. A Escola durante 4 ou 5 anos não faz mais do que obrigar a ler, escrever e contar.
- ¿Ler coisas agradáveis, aprender a ler com pequeno sacrifício? Não, aprender a ler... ler... 
- ¿E escrever?
- Laboriosamente, também. Primeiro riscos e depois letras, palavras, cópias, ditados.
- ¿E contar?
- Contar sem contar... Dizer a numeração, apanhar o mecanismo das operações aritméticas, calcular.
- E sôbre êstes três pilares joguentos assenta a cúpula da instrução.
- Tudo aprendeu, tudo viu e tudo conheceu o aluno que saiu da Escola aprovado.
- Calculou o valor de muitos hectares de terreno, o volume, o pêso de muitos hectolitros de água distilada, o preço de víveres, fazendas, prédios, etc. Escreveu imaginárias descrições, decalcou e copiou desenhos alheios, aprendeu muitas nomenclaturas, decorou preceitos, datas e regras, excitou a imaginação sem a demolhar em observações e materialidades, foi à viva fôrça o ambicioso ludibriado.
- Não é meu intento desclassificar processos e métodos, quaisquer que eles sejam. Só cada professor jungido à sua classe é que sabe a que recursos se pode ater, e quantas vezes não sofre a inanição, o desânimo de todo o bom esfôrço...
- Mas, não sufoquemos a agitação interior, a comunicação de ideais, a ânsia e a fé que criam o assento das conquistas e das melhorias.
- Se o professor quizer...
- Falseará as regulamentações, rejeitará ou não o horário oficial e o programa, alijará a carga de autoridade quando a achar incómoda, espremerá as didácticas e as mecanizações escolares até lhes encontrar suco vital. 
- É tudo mais fácil de dizer que de fazer estáveis vós pensando, se por amabilidade acompanhais a minha parlenda. Também o creio e peço me desculpais os abusivos conselhos. O mal maior, ao que parece, é a impropriedade do que se ensina, o desagregado de matérias, a secura dos assuntos que não correspondem à curiosidade e à espectativa dos espíritos em infância. (...)
- Falarei dos museus. A palavra museu é bafienta, arrasta consigo uma figuração de tranquilidade absoluta. Museus significa: lugar de reserva, vitrines invioláveis, paredes enfeitadas. (...). É estúpido levar crianças à frente de um monumento só porque êle represente descobertas ou conquistas, ou mostrar-lhes paramentos e quadros antes de elas terem a curiosidade de tais assuntos. São as falsas lições de coisas, o teatro com pano de fundo e um único actor: o mestre.
- Mas, fora estes exageros, quantas coisas lindas e agradáveis para mostrar!
- Um passeio pode ser sempre uma festa, tanto que ver e que mexer e que descobrir! Mas à vontade... e para bons sítios...
- As crianças das escolas públicas vivem tão necessitadas de ver árvores e água! Trazem uma bebedeira de alegria quando voltam das saídas e falam que tempos do que fizeram e viram. Pena é que os passeios se não repitam a miúde, normalmente, como hábito escolar. Por via de regra tudo o que se não faz parece difícil de fazer e os passeios ainda estão no número dos actos incómodos. Os meios de transporte são caros... os jardins são longe... nunca faltam impedimentos. Mas os professores de boa vontade vencem-nos, geralmente. E aproveitam do melhor modo o entusiasmo dos alunos. (...)
- Deve haver por êsse mundo interessantíssimas Escolas — sociedades de crianças — onde viver seja criar fôrças de amar, de querer, de gosar.
- Onde os olhos e as mãos façam inventários repetidos ao que topem sem haver quem peça contas, sem o flagelo da ampulheta: passa o tempo... está exgotado o assunto...
- Escolas onde não se coma por esmola, onde se brinque e onde se repouse convenientemente, com mobiliário comum, roupas, plantas e animais domésticos e todos os chamarizes possíveis dos interêsses francos, naturais. Escolas não consideradas fábricas de escreventes, leitores e matemáticos.
- Mas quantos quadros idealistas e romances ainda serão precisos para as impor e generalizar!
- Vale a pena a qualquer, para se não secar de impotência ou desmandar-se, olhar à roda, seccionar o círculo da vida e repisá-lo.
- Por mim... Quando me encontro entre os vinte ou trinta petizes, alegres e pobres, que me chamam mãe por engano e riem, que me pedem histórias e brincadeiras, que me contam mil puerilidades e julgam que os passarinhos os entendem, considero a vida espiritual deles muito mais desafogada que a minha, em criança.
- Eu não andava descalça nem mal vestida e não passava fome, mas sofria atritos sem conta e era rebelde e triste.
- Mais elástica, realmente, é a norma disciplinar actual que permite às professoras alegrar os seus alunos e amá-los.
- Estas e outras observações eu faço pensando que dos pequenos poderes algum benefício urde sempre.
- Não se dirá, senhores, que atraente seja toda a escola onde o espírito afectivo paire, que ele transfigure recintos e cubra falhas. Mas sem êle muito bons propósitos sairiam pecos...” . 

Excertos de “A Escola Atraente”, in Revista Escolar, ano 6.°, n.° 10, 405-419, conforme reproduzido em Investigar em Educação - II a Série, Número 4, 2015, mantendo-se a ortografia. [encontrado aqui )

2 comentários:

Eugénio Lisboa disse...

Que belo gesto o vosso, retrazerem à memória dos vivos um texto dessa admirável escritora e educadora, que o Estado Novo afastou para o limbo! Poeta, prosadora atraente e pessoalíssima, Irene Lisboa foi tão grande, quanto ignorada, no seu tempo. Ignorada pelo público, que lhe não comprava os livros, não pela melhor crítica, que lhe reconheceu o valor insigne. No meu tempo de estudante de engenharia, só consegui comprar alguns dos seus livros em alfarrabistas e nunca esquecerei que um desses exemplares por mim adquiridos, o qual continha uma amistosa dedicatória a alguém, estava completamente por abrir (o destinatário da oferta nem se dignara meter a faca, ao menos numas dezenas de páginas...) Em toda a minha vida, embora tenha conhecido, pessoalmente, vários grandes escritores, nunca fui de andar atrás de conhecê-los. Mas houve uma excepção: Irene Lisboa. Quando, no início de 1955 (encontrava-me então a fazer os meus estágios de engenharia), José Régio veio a Lisboa, disse-me que se ia encontrar com Irene Lisboa, de quem era amigo e grande admirador. Num impulso, muito atípico em mim, logo lhe pedi que me levasse consigo a esse encontro, dada a enorme admiração que nutria pela escritora. Assim se fez e nunca esquecerei a singular impressão que me causou aquela senhora, toda ela electricidade e energia, atropelada pela vida, mas indomável lutadora. Dizendo, a certa altura, a Régio, aludindo a um dos seus livros: "Régio, não se vendeu um único exemplar, nem um só!" Poucos grandes vultos da nossa cultura, ainda por cima, dotados de um enorme poder de atracção, terão sido tão mal amados, tão ignorados ou desprezados pelo grande público como esta grande Irene Lisboa. Paga-se um elevadíssimo preço, quando se é grande, num milieu pequenino, vesgo, mesquinho e vastamente iletrado.
P. S. - Para obviar as insinuações enviesadas do costume, quero esclarecer que, embora tenhamos o mesmo apelido, Irene Lisboa e eu não temos nenhum ramo familiar comum.

Anónimo disse...

Eis o drama do nosso tempo, magistralmente apresentado por Irene Lisboa, em 1926:
"Se o professor quizer...
- Falseará as regulamentações, rejeitará ou não o horário oficial e o programa, alijará a carga de autoridade quando a achar incómoda, espremerá as didácticas e as mecanizações escolares até lhes encontrar suco vital."
O drama é que "os professores" de 2023/ 2024 não querem!

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