quinta-feira, 7 de setembro de 2023

"HOMEM AUMENTADO, NÃO MELHORADO"

"Atentem no imenso progresso da ciência e da técnica. Vão dar-nos a imortalidade ou, pelo menos, vai dá-la a uma elite que tem o poder e o dinheiro, vão dar-nos a possibilidade de estarmos sossegados porque  a inteligência artificial vai ocupar-se de todos os problemas materiais e técnicos e nós podemos começar a preparar as nossas viagens à Lua, aos planetas (...).  

É aquilo que se chama o transumanismo, isto é, uma visão do homem aumentada, aumentada quantitativamente, mas infelizmente diminuída qualitativamente porque esse homem que recupera o tema do domínio do mundo, esse homem que por razões puramente quantitativas esquece que aquilo de que precisamos agora não é de um homem aumentado mas de um homem melhorado pela solidariedade e pela fraternidade."

Disse Edgar Morin em Lisboa há dois dias (ver aqui). 

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

A humanidade, em geral, as sociedades humanas, os grupos, as tribos, têm uma longa e antiquíssima tradição de regulação pela violência e por formas mais ou menos violentas de coerção. Diria que, se há aspectos das culturas que evidenciam uma espantosa eficácia, nenhum é tão notável e ostensivo como a eficácia dos aparelhos de repressão e de controlo social e de regulação da força, mormente das forças armadas, cujo expoente de institucionalização, nacional e internacional, só será comparável aos aparelhos e estruturas financeiras internacionais e, ainda assim, talvez por serem dimensões sóciopolíticas que se interpenetram inextricavelmente.
O indivíduo, nesta equação, só adquiriu algum peso ou expressão, muito recentemente e quase acidentalmente, ou nem tanto, na discussão e debate das questões dos direitos, liberdades e garantias. Se há domínios em que a humanidade e a civilização é indiscutivelmente devedora à filosofia e às actividades críticas do pensamento, o dos direitos, liberdades e garantias merece grande destaque (apesar de haver ainda quem não entenda o papel e a importância da filosofia).
Na minha perspectiva, a civilização começou no momento em que foi institucionalmente reconhecido ao indivíduo humano, no sentido de todo e qualquer indivíduo humano, um estatuto jurídico susceptível de ser invocado e susceptível de ser feito valer, perante o Estado, ou equivalente, ou perante um tribunal.
Terá sido nesse momento que a história assistiu ao nascimento de uma nova era, ao triunfo do pensamento sobre o poder das armas, ainda que apenas sob a forma de pensamento e não das armas. Quando falo em armas, estou a pensar também na ciência e na tecnologia, estas sim, parte do arsenal bélico.
Quanto às questões suscitadas por E. Morin, as sociedades humanas sempre foram baseadas na solidariedade e na fraternidade, mesmo naqueles tempos remotos que comecei por referir. Essa solidariedade e fraternidade de armas é um dos pilares em que assentam as sociedades humanas e, inclusivamente, dele derivou a necessidade de reconhecimento dos direitos fundamentais, primeiro do cidadão e, depois, do indivíduo, da pessoa humana. Nenhum destes direitos foram ou são oferecidos gratuitamente por ninguém, e menos ainda por uma estrutura armada de tipo estadual cuja eficácia coerciva já assinalei. Mas foi necessário, e muito importante, mobilizar a eficácia das estruturas armadas, em que os humanos são exímios, para promover e garantir os direitos e liberdades individuais.
Deste modo, o triunfo do pensamento sobre o poder das armas tem vindo a fazer-se com a mobilização deste poder e através deste poder. É um triunfo coercivo, ou, pelo menos, coercível.
Naqueles aspectos em que os humanos não são coercíveis, nem faria sentido que o fossem, como são certas afectividades, amizades, amores, qualquer lei do amor, ou da fraternidade, (só metaforicamente pode ser tida por lei, à luz da qual seremos julgados) terá a eficácia que os indivíduos lhes derem. Mesmo as religiões só poderão esperar algum sucesso de pacificação social e de melhoria do homem se forem universais, caso contrário, serão estruturas discriminatórias dos amados e dos outros, promovendo a discórdia, a hostilidade e o conflito.

Carlos Ricardo Soares disse...

A Declaração Universal dos Direitos do Homem é uma Declaração dos Direitos do Homem, é coercível, é uma lei universal, que proíbe a humilhação, o vexame, a crueldade, que se inflija sofrimento, que se usurpe a liberdade e não se respeite a dignidade do indivíduo. Estamos a falar do indivíduo humano, não estamos a falar de nenhum deus, nem de nenhuma igreja, Estado ou Organização. Aliás, foi para proteger o indivíduo de estruturas sociais como estas que esses direitos foram consagrados. Para protegê-lo de outras estruturas poderosas também têm sido criados mecanismos legais e institucionais que é importante promover e salvaguardar, como instituições e organizações de defesa do consumidor, sindicatos, etc..
As preocupações de E. Morin parecem ter mais a ver com aquilo que devem ser os valores e os objectivos e a educação dos indivíduos, como se fosse uma realidade a alienação geral aos mecanismos do poder do dinheiro e seja importante que o indivíduo e a sociedade não percam a noção de que há coisas vitais que ninguém, nem nenhuma ciência, ou tecnologia, religião ou partido, dinheiro ou poder, farão por nós: pensar, sentir, filosofar, viver.

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