Carta do Professor Louis Germain (na fotografia) ao seu antigo aluno Albert Camus, em resposta à que este lhe escreveu logo que soube que lhe havia sido atribuído o Prémio Nobel (ver
aqui e
aqui). A tradução é de Milton Joel Henriques Soares, professor e tradutor, a quem o
De Rerum Natura muito agradece.
Meu querido jovem,
(...) Não sei como exprimir-te a alegria que me deste com o teu gesto gracioso, nem sei como te agradecer. Se fosse possível, daria um forte abraço ao menino grande que te tornaste e que continuará sempre a ser para mim "o meu pequeno Camus".
(...) Mas quem é Camus? Tenho a impressão de que aqueles que tentam compreender a tua personalidade, de facto, não o conseguem. Sempre foste instintivamente retraído em revelar a tua natureza e os teus sentimentos. Fá-lo ainda melhor porque és simples e direto. E de uma bondade acima do normal! Fiquei com estas impressões de ti nas aulas.
Um pedagogo que quer fazer o seu trabalho de forma consciente nunca descura a oportunidade de conhecer os seus alunos, os seus filhos, e dá-se a conhecer incessantemente. Uma reação, um gesto, uma atitude podem revelar muita coisa. Creio, portanto, conhecer bem o menino simpático que eras. E uma criança contém muitas vezes as sementes do homem que em que se tornará. O teu gosto em estar na sala de aula emanava por todos os lados. O teu rosto manifestava otimismo. E, ao analisar-te, nunca suspeitei da verdadeira situação da tua família, só tive uma mínima perceção quando a tua mãe veio falar comigo para te inscrever na lista de candidatos às bolsas de estudo. Isto foi precisamente quando estavas prestes a deixar-me. Mas, até então, parecias-me estar na mesma situação que os teus colegas. Tinhas sempre o que era necessário. Tal como o teu irmão, andavas cuidadosamente vestido. Acho que não poderia tecer mais belo elogio à tua mãe.
Vi a lista cada vez maior de livros que te são dedicados ou que falam sobre ti. E dá-me uma satisfação enorme ver que a tua fama (que é a verdade) não te subiu à cabeça. Mantiveste-te o Camus: bravo. Acompanhei com interesse as muitas peripécias da peça que adaptaste e encenaste: Les Possédés. Gosto demasiado de ti para não te desejar o maior sucesso: aquele que mereces.
Malraux também quer dar-te um teatro. Sei que é uma paixão tua. Mas serás capaz de gerir todas estas actividades ao mesmo tempo? Receio que te empenhes demasiado. E, permite que o teu velho amigo constate, tens uma linda esposa e dois filhos que precisam do seu marido e pai. A este respeito, vou contar-te o que o nosso diretor do Magistério dizia às vezes. Ele era muito, muito rígido connosco, o que nos impedia de ver, de sentir, que ele nos amava realmente. "A natureza tem um grande livro no qual regista meticulosamente todos os excessos que cometemos”. Confesso que este sábio conselho me reteve muitas vezes no momento em que estava prestes a esquecê-lo. Por isso, digamos, tenta manter em branco a página que te está reservada no Grande Livro da Natureza.
A Andrée lembrou-me que te vimos e ouvimos num programa literário de televisão sobre Les Possédés. Foi comovente ver-te responder às perguntas que te eram postas. E, apesar de tudo, fiz a observação maliciosa de que não terias ideia de que, eventualmente, eu estaria a ver-te e a ouvir-te. Isto compensou um pouco a tua ausência de Argel. Há muito tempo que não te víamos...
Antes de terminar, gostaria de te dizer o quão angustiado estou, como professor laico, face aos planos ameaçadores que estão a ser elaborados contra a nossa escola. Ao longo da minha carreira, creio ter respeitado o que há de mais sagrado nas crianças: o direito de procurar a sua própria verdade. Amei-vos a todos e creio que fiz tudo o que estava ao meu alcance para não exprimir as minhas ideias e, assim, pesar na vossa jovem inteligência. Quando se falou de Deus (estava no programa), eu dizia que alguns de nós acreditam e outros não. E que, na plenitude dos direitos, cada um faz o que entende. Da mesma forma, para o capítulo sobre as religiões, limitei-me a indicar as que existiam, às quais pertenciam aqueles a quem lhes apetecia pertencer. Para ser honesto, acrescentei que havia pessoas que não praticavam nenhuma religião. Sei bem que isso não agradava àqueles que queriam transformar os professores em prosélitos religiosos e, para ser mais exacto, prosélitos da religião católica.
No Magistério de Argel (na altura situado no Parque de Galland), o meu pai, como os seus colegas, era obrigado a ir à missa e a comungar todos os domingos. Um dia, farto deste constrangimento, meteu a hóstia "consagrada" num livro de missa e fechou-o! O director do Magistério foi informado desse acontecimento e não hesitou em expulsar o meu pai da escola. É o que pretendem os defensores da "escola livre" (livre… de pensar como eles).
Com a composição da actual Câmara dos Deputados, receio que o plano maléfico seja bem sucedido. [O jornal] Le Canard Enchaîné noticiou que, numa região, uma centena de turmas de escolas laicas estão a funcionar com um crucifixo pendurado na parede. Vejo isto como um abominável atentado à consciência das crianças. Como é que será, talvez, daqui a algum tempo? Estes pensamentos entristecem-me profundamente.
Quero que saibas que, mesmo quando não estou a escrever, penso frequentemente em todos vós.
A Madame Germain e eu enviamos-vos aos quatro um abraço bem forte.
Com muito carinho,
Germain Louis
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