Meu artigo no último JL:
O historiador norte-americano Raymond Grew, professor emérito da
Universidade de Michigan e especialista em história social da Europa
Mediterrânica, escreveu na abertura do livro que coordenou Food and Global
History (Routledge, 1999): “A história da alimentação é um assunto da moda
e também o é a história global. Embora os dois se juntem naturalmente, a sua
combinação é explosiva. Intersectam-se tão facilmente já que cada um estende
tentáculos relevantes que ultrapassam as fronteiras convencionais de tempo,
regiões e especialização académica. (…) É notável que estes tópicos complexos,
eruditos e exigentes sejam apelativos para um vasto público. (…) Leitores que
normalmente fugiriam das abstracções da análise social e para quem os
pormenores da história constituiriam um fardo têm, no entanto, especial apetite
por ler sobre os alimentos e os hábitos alimentares de outras eras e culturas.”
Em Portugal, apesar de haver numerosos estudos parcelares, ainda não há uma
história da alimentação portuguesa. Mas uma obra muito recente avança decididamente
nessa direcção. Dirigido por José Eduardo Franco e coordenado por Isabel
Drumond Braga, o primeiro professor de História da Universidade Aberta e a
segunda professora de História na Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, intitula-se História Global da Alimentação Portuguesa (Temas e
Debates). Com 608 páginas e 69 autores (59 nacionais e 10 estrangeiros) é um
painel de 101 artigos temáticos, de meia dúzia de páginas, apresentados numa sequência
cronológica (embora a data escolhida para cada artigo seja, por vezes, meramente
convencional). Trata-se de um bom aproveitamento da tal “combinação explosiva”
de que fala Grew entre alimentação e história do mundo. O livro, que pretende
chegar a um grande número de leitores sem abdicar do rigor científico, oferece
um menu muito variado, onde cada um poderá “deglutir” o que for mais do seu
agrado.
O modelo do livro é a História Global de Portugal, saída na mesma
editora (e também no saudoso Círculo de Leitores) em 2020 e que teve a direcção
de José Eduardo Franco, José Paiva (professor da Universidade de Coimbra) e de
mim próprio, que, por sua vez, se inspirou na Histoire Mondiale de la France
(Éditions du Seuil, 2017), da responsabilidade do historiador francês
Patrick Boucheron. A História Global é uma corrente recente da historiografia
que privilegia as circulações e os contactos, em vez de se ater às fronteiras
nacionais. A História Global de Portugal já continha artigos sobre
alimentação, entre os quais um da própria Drumond Braga sobre o arroz
português, que resulta de uma circulação global (há outros sobre: o açúcar da ilha
da Madeira; as especiarias da Índia em Garcia de Orta; o vinho do Porto, que
originou a primeira região demarcada do mundo; e o bacalhau, um peixe de águas
remotas que se tornou uma marca da cozinha nacional). Mas, no volume agora
vindo a lume, a coordenadora soube reunir-se de um conjunto de autores que nos
fazem, metaforicamente falando (pois é de «pão» para o intelecto que se trata),
“crescer a água na boca”. Merece encómio o trabalho dos responsáveis desta
edição pelo modo como prepararam este lauto repasto.
O livro começa no alvor da nacionalidade com alimentos muito antigos: o
pão, o mel e o queijo. Podia – foi uma opção editorial – ter começado antes,
como começou a História Global de Portugal, dizendo como se comia na
pré-história (há revelações recentes de restos de caranguejo comidos por
neandertais numa gruta de Sesimbra, há 90.000 anos) ou pela Antiguidade
Clássica (no ano passado foi em Braga recriado um banquete romano, com Gustatio,
Primae-Mensae e Secunda-Mensae). Mas, a História Global da
Alimentação Portuguesa contém vários outros alimentos: na linha
cronológica seguida, açúcar, leite, caça, especiarias, caldos, azeite, sal,
café, cacau, cerveja, água, vinho, chá, conservas, arroz, fruta, peixe, frango
e ovos (a edição beneficiou do mecenato da empresa Lusiaves), hambúrguer (sim,
do McDonald’s!), batata e cuscuz (estes dois vêm no fim só por causa dos
recentes Anos Internacionais da UNESCO sobre eles). Mas o livro também aborda a
cozinha e a mesa: o fumeiro; a mesa régia; os ofícios de cozinha; a matança de
animais; os conventos; a comida de rua; a comida em barcos e aviões; os cafés,
tabernas e restaurantes; o gelo e a refrigeração; as porcelanas e pratarias; a
etiqueta e os menus; os mercados; os electrodomésticos; o vegetarianismo e a comida
biológica; a comida no teatro, cinema e televisão; a higiene e regulação, a dieta
mediterrânica, etc. Encontram-se múltiplas ligações da comida à religião, não
só católica, mas também judaica e muçulmana. Enfatizam-se os cruzamentos
protagonizados pelos portugueses com povos de outros continentes, em especial da
América do Sul (Brasil), mas também de África e do Extremo Oriente: os
portugueses descobriram comidas alheias e proporcionaram a descoberta das suas.
O leitor interessado por livros de cozinha encontrará referências aos
clássicos: O Livro de Receitas da Infanta D. Maria (1565, manuscrito); a
Arte de Cozinha (1680, primeiro livro impresso), de Domingos Rodrigues; as
Receitas… (1715, manuscrito), de Francisco Borges Henriques; a Arte
do Cozinheiro e do Copeiro (1841), do 1.º Visconde de Vilarinho de
São Romão; a Arte da Cozinha (1876), de João da Matta; A Cozinheira
das Cozinheiras (1932), de Rosa Maria (pseudónimo do editor); O Livro de
Pantagruel (1945), de Bertha Rosa Limpo; os livros de Maria de Lurdes Modesto
e de Maria Odette Cortes Valente, desde os anos de 1960; e as revistas Banquete
e Teleculinária, nos anos de 1960 e de 1970.
Um artigo que me suscitou particular atenção, entre tantos e tão saborosos,
é o que aborda o restaurante português em Roma, aberto em 2010. Achei curiosa a
escolha, já que, embora a cozinha portuguesa nunca se tenha internacionalizado
como a italiana, existem vários restaurantes portugueses espalhados pelo globo.
Quando estudava na Alemanha ia de propósito a Mainz comer no restaurante “O Galo.”
E, um dia, de visita a Silicon Valley, comi, em São José da Califórnia, o
melhor bacalhau à Gomes de Sá da minha vida, num restaurante madeirense.
Esqueci-me do nome, mas não do sabor.
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