T. aconselhou, então, que se forrassem as paredes
com pele humana: um outro achou ostentosa a pele
humana, e disse, beatificamente, que, como mais
modesta
e mais duradoura lhe parecia preferível
a pele catedrática. Outro instou para que se forrasse
o quarto com as folhas dos compêndios: eu opus-me
severamente a isso, dando as mesmas dolorosas razões
que daria um preso se lhe quisessem forrar as paredes
da enxovia com um tecido feito dos seus próprios remorsos.
Carta a Carlos Mayer
A passagem em epígrafe indicia, de maneira inequívoca, que, para o grande poeta satírico que foi Eça, não havia limites para o atrevimento da sua língua mordaz. Desde afirmar, em certo momento de indignação, que a bandeira portuguesa, em vez de cinco quinas, devia ter cinco nódoas, até pedir a Ramalho Ortigão que fizesse desbocada chantagem com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Andrade Corvo, pedindo-lhe que lhe pagasse (a ele, Eça), se não quisesse que este publicasse um romance que deixaria a reputação de Portugal pelas ruas da amargura – valia tudo. Sem excluir que disse, em carta a Pinheiro Chagas, que “o nosso império no Oriente fora um monumento de ignomínia.”
A vigorosa defesa que fez, em Cuba, dos trabalhadores chineses oriundos de Macau, miseravelmente exploradas pelos cubanos, fê-lo em termos que os diplomatas não costumam afagar. Livros como A RELÍQUIA, ou A CAPITAL ou O CONDE DE ABRANHOS ou O CRIME DO PADRE AMARO, não costumam ser currículo academizável ou panteonável.
Eça era destemidamente atrevido e a sua graça reguila era um dos seus irresistíveis encantos. Este impenitente Gavroche, que sempre suscitou admirações de gente de paladar linguístico apurado, mas nunca o “entusiasmo” de multidões, merece, como ninguém, que o deixem fora das pompas solenes de um cortejo panteónico.
Eça foi sempre um “gamin” de alto gabarito: deixem, pois, continuar a sê-lo, à revelia das recomendações “catedráticas” daqueles cuja pele serviria bem para forrar as paredes de um quarto, mas para pouco mais.
Eça de Queiroz e a pompa não são miscíveis.
Quem não compreendeu isto não compreendeu nada da sua obra.
Podem ter escrito muito sobre ele, mas não escreveram, de modo nenhum, SOBRE ELE PROFUNDO.
Ponham-se agora a catar nos textos, a ver se ele, em algum lado, disse ou não disse, explicitamente, que quereria ir ou não ir para o Panteão. Não hão-de ir longe. Não é aí que se encontra a resposta.
Eugénio Lisboa
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