terça-feira, 28 de março de 2023

O ESTRANHO SORRISO DE QUEM SE FAZ PASSAR POR ESCRITOR-RELÂMPAGO

"Com a tecnologia da criatividade, podemos dar textos a um computador 
e ele consegue gerar um texto relativamente diferente 
sobre uma determinada temática, 
os escritores podem vir a perder o emprego".
Paulo Novais (2022, 13).
(Presidente da Associação Portuguesa de Inteligência Artificial)

Tem vindo em quase todos os jornais: "já há muitos livros «escritos» pelo ChatGPT à venda na Amazon", noticia a Agência Lusa, com base na Agência Reuters. Seriam, em finais de Fevereiro, aproximadamente duzentos, mas como se diz que um livro demora cinco minutos a escrever, neste momento o número será muito mais elevado. As categorias são diversas: auto-ajuda, receitas e dietas, para miúdos, ficção científica, mas também contos e romances e... poesia!

Exemplos:

- "ChatGPT on ChatGPT: The AI Explains Itself" ("ChatGPT sobre ChatGPT: A Inteligência Artificial Explica-se"). O título diz tudo!
- "The "Wise Little Squirrel" ("O Esquilozinho Sábio"), "assinado por um vendedor de Nova Iorque, que tinha o sonho de escrever um livro (ao lado). 

Li que os programas de "inteligência artificial generativa", geram (convém distinguir "gerar" de "criar"), a partir de instruções breves e simples textos na estrutura pretendida e com a prosa afinada. Geram de tudo: documentos de estudo, planificações e exames para todas as áreas e níveis de ensino, bem como sumários; teses, monografias, ensaios e outras exigências académicas do nível superior; mas também artigos "científicos" e de "opinião; não faltando peças jornalísticas, recensões críticas; e, como se previa, livros. Tudo isto consta despudoradamente na internet, sublinhado por expressivos sorrisos, como os das fotos abaixo.

Imagem recolhida aqui (vídeo)
Bem podem sorrir os fotografados: sem sentido do que é a criação humana, sem consciência do que significa negá-la, sem experiência do penoso e moroso exercício que é a escrita, e sem exigência na apreciação da mesma, obter um livro, com imagens e capa sugestivas, no tempo em que o comum dos mortais demora a tomar um café, só pode conduzir ao contentamento ingénuo.

Diz-se nas notícias que quem usa este tipo de programas não são os escritores-escritores. Percebe-se! Será quem, por lhe faltar "engenho e arte", nunca conseguiria ser escritor, acrescendo que não tem a mais pálida noção do que isso é. Mas, tem, em contrapartida, o descaramento para se fazer passar por tal. O mesmo vale para os (pseudo) professores, investigadores, jornalistas...  Na posse dos meios, a legitimidade dos fins não interessa, avancemos! Até porque o negócio promete.

Mas a questão também se coloca da parte dos compradores-leitores. O nível de exigência de uma boa parte é raso ou pouco mais do que isso. Tenho por critério de avaliação os livros que se anunciam como muito vendidos: os títulos pirosos e as capas garrido-florescentes com que somos "atacados" à entrada de certas livrarias, mais parecem a aura dos seus autores, muitos deles "autores". Lembro que os "escritores fantasma" não são invenção recente.

Voltando às notícias que motivaram este texto, no que respeita aos escritores, lê-se: a "situação é vista como uma ameaça para os escritores", "estes livros inundarão o mercado e muitos autores ficarão desempregados". Reconhecem-no o acima citado professor universitário português e Presidente da Associação Portuguesa de Inteligência Artificial, bem como uma directora executiva da maior e mais antiga organização de escritores profissionais dos Estados Unidos. 

Deixando de lado a questão de se ser escritor é um "emprego", termino dizendo que talvez seja assim, mas não tem de ser assim: em nome da honestidade e da inteligência, em nome do pensamento livre e criativo, os políticos, os legisladores e os professores podem - e, portanto, devem - fazer alguma coisa. A primeira coisa que têm de fazer, de modo empenhado e consistente, é interrogar o que é ser-se humano e como, na medida das suas atribuições e possibilidades, são capazes de preservar a humanidade do humano.
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Citação in Prospecto do 2.º Congresso das Escolas, Conferência I (Paulo Novais), página 13.

8 comentários:

Anónimo disse...

Na vertente de produção de livros, em enormes quantidades, a máquina "intelegente" é, sem dúvida, imbatível. Já, quanto à originalidade e qualidade literárias dos livros, tenho muitas dúvidas. Mesmo eu, que não sou escritor - apesar de, até à presente data, ser um dos autores que mais manuais de física vende, respaldado em leis esquerdistas, do Governo da Geringonça da Catarina Martins, do Jerónimo e do Costa, que, para garantirem o sucesso educativo aos pobrezinhos, ofereceram, com o dinheiro do Estado, manuais escolares a toda a gente -, não acredito que uma "máquina inteligente", programada para escrever a minha biografia o faça com mais originalidade e, até, mais qualidade literária, do que eu sou capaz, com a minha inspiração e o meu vagar.
À máquina, falta-lhe vida!

Carlos Ricardo Soares disse...

Há livros que podem ser imensas coisas diferentes, tantas quantos os seus autores. Mas há livros que não podem ser muito diferentes uns dos outros. E há livros que são iguais aos outros, que se reproduzem uns aos outros. A IA vai ser muito útil e eficaz na multiplicação de livros, ou, para ser mais rigoroso, na reprodução e multiplicação de discursos de toda a tipologia. Ela até pode substituir-se aos livros que não queremos ler, contando-nos a história, ou a moral da história, ou alguns aspectos, interpretações da narrativa, e talvez fornecer-nos uma crítica literária, ou científica, etc.. O leitor é e será sempre a chave do problema. Sem leitor, passe a expressão, não há livro lido. Com a inteligência artificial o problema amplifica-se, porque, no livro escrito por um autor, escritor humano, ainda que não seja original, nem criativo, nem obra de arte, nem recomendável, há pelo menos uma pessoa, a que o escreveu, que leu, muito ou pouco, mas leu. Com a IA, há leituras de outro tipo, para leitores de outro tipo, sendo a IA o leitor que todos os escritores e autores vão ter a satisfação de ter, se pensarmos que ela lê tudo, porque deve e pode ler tudo, até estes comentários que vamos deixando em rodapé. Um dia talvez estejamos todos preocupados apenas com a "opinião", a análise e o enquadramento que a IA faz de qualquer assunto, incluindo aqueles sobre os quais nos pronunciamos. Os humanos são propensos a inventar e a criar entidades e máquinas e estruturas, umas mais abstractas do que outras, que adoptam religiosamente como dogmas tutelares que transcendem tudo. Nada que seja estranho à nossa natureza, à natureza.

Helena Damião disse...

Prezado Leitor Carlos Ricardo Soares, concordando com o conteúdo do seu comentário, sublinho essa possibilidade - se ela não é já realidade - de a máquina formar opiniões que conduzirão o pensamento humano. Talvez pela educação, orientada por ideias humanista, pelo cultivo do conhecimento e pela estimulação do amor ao mesmo, possamos manter-mo-nos humanos, fragilmente humanos. Cumprimentos, MHDamião

Carlos Ricardo Soares disse...

Helena Damião, o humano, ou melhor, o ser humano, o Homem, na sua fragilidade humana, enquanto instância viva, individual, sede e fonte de tudo o que significa e é valor, jamais deverá ser retirado do vértice-topo da hierarquia dos valores, que não partilha com mais nenhum outro. O cristianismo teria realizado este desiderato, mas ainda vai a tempo, se tivesse abandonado a ponte para se ligar a Deus, como se isso fosse impensável naquela época e naquela cultura. Substituir o indivíduo humano por Deus parece-me ser a inversão do cristianismo, fazer da doutrina cristã mais um desenvolvimento da religião hebraica, do judaísmo. Mas o cristianismo, como o entendo cada vez mais, é a doutrina que veio colocar o homem, ser humano, indivíduo, no seu devido lugar, no lugar de Deus. Nenhuma inteligência, humana ou sobre-humana, nenhuma criação, invenção, ou força, poderá reclamar dele, de cada um de nós, uma sujeição, ou uma servidão potestativa, sem o seu, o meu, o nosso consentimento. Esta é a fonte de todos os conflitos, mas também é a fonte da dignidade e a marca da humanidade.

Anónimo disse...

Por vida, entende o quê?
Há quem nasça, cresça, procrie, envelheça e morra, sendo feliz. Literalmente.
O ser humano é a máquina mais velha do mundo e tornar-se-á obsoleto, quer só cumpra rotinas biológicas, quer viva. Qualquer máquina inventada pensará melhor, será mais inteligente, arranjará melhores soluções e, se calhar, até sentirá, desde que lhe sejam incluídos, nos circuitos, o tal do sentir.

Anónimo disse...

Viver é sentir um amor platónico por alguém, ou sentir amor pela física, quer estejamos a falar de uma pessoa ou de todo o Universo!
Uma máquina, mesma que venha a "sentir", nunca terá os sentimentos humanos. Para escrever uma bela história de amor original, o autor tem de ter o sentido do belo e ter experimentado o sentimento do amor. Senão, a densidade da narrativa vai ficar próxima da do hidrogénio, em condições normais de pressão e temperatura. Já para escrever receitas culinárias não originais, o recurso à inteligência artificial é capaz de ser uma boa opção.

Helena Damião disse...

Caro Leitor Carlos Ricardo Soares, sem retomarmos a lógica antropocêntrica - que coloca o ser humano no centro do universo - o momento não pode deixar de nos impelir a uma profunda reflexão acerca do que somos como humanos no mundo, o que queremos ser e que mundo queremos deixar para o futuro. Não chegaremos, por certo, "à resposta", mas precisamos de pensar. As ciências sociais e humanas - a antropologia, a filosofia, a ética, a história - são absolutamente necessárias, precisamos de as chamar. Cordialmente, MHDamião

Anónimo disse...

"Uma máquina, mesmo que venha a "sentir", nunca terá os sentimentos humanos."
Tem a certeza? Mesmo que Alguém a faça à nossa imagem e semelhança?
Eu ainda não percebi bem o que é um ser humano. Uma máquina biológica feita à imagem e semelhança de "Deus"? "Deus" quem? Nós?
Há deles que não têm sentimentos humanos. Há outros que obedecem tanto que parecem bon-ecos. Há outros que desobedecem tanto que não cabem em lugar nenhum. Há ainda outros que não pensam ou não sabem pensar. Há uns que só têm necessidades e emoções que não chegam a ser sentimentos. No início, no meio ou no fim, todos se avariam.
O que é, realmente, um ser "humano"? Náufrago do "sentir"...

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