domingo, 5 de março de 2023

UM JOSÉ CRAVEIRINHA CENTENÁRIO BREVE TESTEMUNHO

Por Eugénio Lisboa

Assinalar – celebrar – o centenário de José Craveirinha tem, para mim, um sabor agridoce. Como fomos contemporâneos, conterrâneos, amigos, assíduos conviventes de um saboroso convívio e opositores a um mesmo regime, que ambos detestávamos, falar num José Craveirinha centenário torna-me, a mim, bastante antigo (roubo este “antigo”, em vez de idoso, ao Rui Knopfli). 

José Craveirinha foi, em grande parte da sua poesia, um poeta da indignação e da luta. Com uma vigorosa e bem apetrechada eloquência, ele soube encolerizar admiravelmente o seu discurso poético, fazendo dele uma coisa que muita poesia comprometida não conseguiu fazer: uma síntese bem fundida de vituperação e arte poética, que lhe dá singular poder. 

Não basta estar indignado, para ser um grande poeta da indignação e da imprecação. Muito menos, de uma comovida mobilização, em grande estilo. Para isso, é preciso ser poeta, isto é, dominar a linguagem poética e os recursos da sua retórica. Há grandes poetas indignados, como foi, por exemplo, Pablo Neruda, que foi também grande poeta, na secção não indignada do seu lirismo. E há também gente justamente indignada que faz má poesia da indignação.

O escritor inglês, George Orwell, pediu emprestado ao seu paradoxal contemporâneo, G. K. Chesterton, uma expressão rica de significado, referindo-se aos “good bad books” (bons livros maus), ou seja, livros que, por diversas razões, são importantes e duradouros, embora, como objectos literários, sejam mais ou menos descartáveis. 

Um exemplo, entre muitos que poderia dar, é o do célebre A CABANA DO PAI TOMÁS. Este romance, sobre a escravatura nos Estados Unidos da América, publicado em 1852, da autoria da escritora Harriet Beecher Stowe, foi um dos grandes mobilizadores que levaram à guerra civil que, entre outras coisas, terminou com a escravatura, naquele país. Foi, portanto, um livro importante, um livro “bom”, mas ninguém ousaria classificá-lo como uma obra-prima da literatura americana. A CABANA DO PAI TOMÁS é, pois, aquilo que Chesterton cunhou como um “good bad book”. Eu preferiria chamar-lhe um “importante mau livro”. 

Trata-se de livros despretensiosos, literariamente, mas úteis, ao longo de um período bastante alargado. Deste tipo de obras, diz Orwell, sucintamente: “a espécie de livros que não tem pretensões literárias, mas que permanece legível, quando outras produções mais sérias perecem.” 

A este grupo de livros, não pertencem só livros de combate e indignação política. Orwell cita como exemplos, os livros com o protagonista Sherlock Holmes ou o ladrão de casaca Raffles. Poderíamos juntar-lhes os livros de Emílio Salgari, de Júlio Verne ou, na poesia, Castro Alves, bem menor, como poeta, do que outros grandes nomes da poesia brasileira. Nomes muito badalados do neorrealismo português foram “importantes” mas não necessariamente grandes poetas ou ficcionistas.

Mas o caso que eu hoje gostaria de pôr em paralelo com José Craveirinha é o do seu homólogo Agostinho Neto. Foram ambos lutadores pela independência dos seus respectivos países, Moçambique e Angola. E ambos utilizaram, como arma mobilizadora de luta, a poesia. Mas uma diferença fundamental os separa: SAGRADA ESPERANÇA, de Neto é um “good bad book”, ao passo que a poesia de José Craveirinha é um “good good book”. Craveirinha usa de uma sábia e extremamente eloquente arte poética, para veicular a indignação que o consome, ao passo que a oficina poética de Neto é indigente ou mesmo inexistente.

Pode haver, nisto tudo, alguma inevitável injustiça, mas a injustiça faz parte do nosso mundo. Orwell vai até ao ponto de dizer que A CABANA DO PAI TOMÁS tem grandes possibilidades de sobreviver às literariamente aclamadas obras de uma Virginia Woolf ou de um George Moore. Às vezes, o excesso de excelência pode ser mais mortífero do que a falta dela, se houver outros factores de apelo. 

Duvido que alguns excelentes escritores angolanos do nosso tempo tenham vida garantidamente mais longa do que Agostinho Neto, o qual, na minha opinião, é, como poeta, uma figura insignificante. José Craveirinha apostou, por via do seu talento, nos dois tabuleiros: o da luta, que é sempre apelativa, e o da arte poética, o do grande domínio da palavra sonora – talvez bebida em Junqueiro e Hugo –, o domínio do “som” (parafraseando Valéry), em suma, o de uma oficina bem apetrechada. 

Dito o que, termino este breve testemunho com esta proposta um tanto subversiva: tudo visto, tendo lido e relido a poesia deste meu Amigo, creio, hoje, que, de um ponto de vista propriamente poético, o Craveirinha lírico do seu admirável MARIA, obra de final de vida (1998), é o que de melhor, mais depurado e mais belo ele nos deixou.

Eugénio Lisboa

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