terça-feira, 28 de março de 2023

A Lei da Gravitação como Exemplo de Uma Lei Física

Extracto de «O que é uma Lei Física?», recente reedição da Gradiva, tradução e prefácio de Carlos Fiolhais  (sem notas nem figuras):

«É estranho que, nas raras ocasiões em que me pedem para tocar bongo em público, o apresentador nunca ache necessário referir que também trabalho em física teórica. Penso que, provavelmente, a razão se deve ao facto de respeitarmos mais as artes do que as ciências. Os artistas do Renascimento diziam que a preocupação central do homem devia ser o homem. Existem, contudo, outras coisas interessantes no mundo. Os próprios artistas apreciam o pôr do Sol, as ondas do mar e o movimento das estrelas nos céus. Há, portanto, boas razões para falar, por vezes, de outras coisas. Basta contemplá‑las para sentir um certo prazer estético. Mas existe também um ritmo e um padrão nos fenómenos naturais que não é evidente para toda a gente, mas apenas aos olhos do cientista: a estes ritmos e a estes padrões chamamos «leis físicas». Pretendo discutir nesta série de palestras as características gerais das leis físicas, colocando‑me num nível mais geral do que o estudo das próprias leis. De facto, vou considerar a Natureza em resultado de uma análise pormenorizada, mas desejo analisar principalmente os seus aspectos mais gerais. 

Contudo, um tema tão geral tende a tornar‑se demasia‑ do filosófico. Para se ser considerado um filósofo profundo é necessário tão‑só dizer generalidades compreensíveis por toda a gente. Gostaria de ser bastante específico e de ser compreendido de uma maneira honesta, e não de uma maneira vaga. Assim, nesta primeira palestra vou tentar apresentar, em vez de generalidades, um exemplo de uma lei física, de modo a que fiquem com um exemplo, pelo menos, das coisas sobre as quais vou falar em geral. Posso voltar mais tarde a utilizar este exemplo para descer ao pormenor ou para tornar mais concreto algo que de outro modo permaneceria demasiado abstracto. Como exemplo particular de uma lei física escolhi a teoria da gravitação, isto é, dos fenómenos da gravidade. Não sei por que razão fiz esta escolha. De facto, tratou‑se de uma das primeiras grandes leis a serem descobertas e tem uma história interessante. Podem dizer‑me: «Sim, mas então trata‑se de algo antiquado. Preferia aprender alguma coisa da ciência mais moderna.» Ciência mais recente talvez, mas não mais moderna. A ciência moderna segue exactamente a mesma tradição da descoberta da lei da gravitação. Poderia falar apenas de
descobertas mais recentes. Não me sinto, porém, mal a discutir a lei da gravitação, porque, ao descrever a sua história e os seus métodos, o modo como foi descoberta, a sua essência, estou a ser totalmente moderno. 

Esta lei tem sido considerada «a maior generalização alcançada pela mente humana». Podem adivinhar já, a partir da minha introdução, que estou mais interessado na maravilha de uma Natureza que obedece a uma lei tão elegante e simples do que propriamente na mente humana. Deste modo, preocupar‑me‑ei, não tanto com o facto de sermos tão inteligentes para a termos descoberto, mas  mais com a inteligência que a Natureza tem de possuir para lhe obedecer. 

A lei da gravitação afirma que dois corpos exercem um sobre o outro uma força que é inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles e directamente proporcional ao produto das suas massas. Matematicamente, podemos traduzir essa grande lei pela seguinte fórmula:

 F = G m m' / r^2 

A força é igual a uma determinada constante multiplicada pelo produto das duas massas e dividida pelo quadrado da distância. Se acrescentar agora que um corpo responde a uma dada força acelerando, ou melhor, que a taxa de variação da velocidade é directamente proporcional à força e inversamente proporcional à massa (a velocidade variará tanto mais quanto menor for a massa), então disse tudo o que é preciso dizer sobre a lei da gravitação. O resto é uma consequência matemática destas duas coisas. Sei, no entanto, que as pessoas que não dominam a matemática não conseguem descortinar imediatamente todas as consequências destas duas afirmações. Por isso, quero contar‑lhes sucintamente a história dessa descoberta, quais são algumas das suas consequências, qual foi o seu efeito na história da ciência, que mistérios essa lei encerra, que aperfeiçoamentos Eins‑ tein lhe introduziu e qual a relação dessa lei com outras leis da física. 

A história é, resumidamente, a seguinte: os antigos começaram por observar o movimento aparente dos planetas no céu e concluíram que todos, incluindo a Terra, giravam à volta do Sol. Esta descoberta foi mais tarde efectuada independentemente por Copérnico, depois de as pessoas a terem já esquecido. A questão que então surgiu foi esta: como é exactamente o movimento dos planetas em torno do Sol, isto é, qual é o seu tipo de órbita? Será que se movem ao longo de uma circunferência com o centro no Sol ou ao longo de uma outra curva qualquer? Qual é a sua velocidade? Etc. As respostas a estas perguntas não foram imediatas. Depois de Copérnico houve grandes discussões sobre se, de facto, os planetas, incluindo a Terra, andavam à volta do Sol ou se era a Terra o centro do Universo, etc. Nessa altura, um sujeito chamado Tycho Brahe arranjou uma maneira de responder à questão. Pensou que talvez fosse boa ideia observar o céu com muita atenção e registar as posições exactas dos planetas. Talvez assim as teorias concorrentes pudessem ser comparadas. É esta a chave da ciência moderna. Foi este o início da verdadeira compreensão da Natureza — da ideia de observar as coisas, registar os pormenores e esperar que, com base na informação as‑ sim recolhida, seja possível uma decisão em favor de uma ou de outra interpretação teórica. Assim, Tycho, que era rico e possuía uma ilha perto de Copenhaga, instalou nessa ilha grandes círculos metálicos e observatórios especiais, tendo registado, noite após noite, as posições dos planetas. Só por meio de um trabalho árduo como este podemos descobrir qualquer coisa. 

Esses dados foram todos reunidos, tendo ido parar às mãos de Kepler, que tentou analisar o tipo de movimento dos planetas em torno do Sol por um método de tentativa e erro. A certa altura, julgou que tinha sido bem‑sucedido; pensou que os planetas descreviam órbitas circulares centradas no Sol. Mais tarde, Kepler reparou que um planeta, creio que Marte, estava deslocado de oito minutos de arco e pensou que Tycho Brahe não podia ter efectuado um erro desse tamanho e que a conclusão encontrada não devia estar certa. Assim, em virtude da grande precisão das experiências, foi capaz de avançar com uma nova tentativa, tendo acabado por descobrir três coisas. Em primeiro lugar, descobriu que os planetas se moviam em elipses à volta do Sol, ocupando o Sol um dos focos. Uma elipse é uma curva que todos os artistas conhecem, pois trata‑se de um círculo alongado. As crianças também a conhecem, já que lhes foi ensinado que, se colocarem um anel numa corda, com as duas pontas fixas, um lápis metido no anel permitirá desenhar uma elipse (fig. 1). 

Os pontos A e B são os focos. A órbita de um planeta em torno do Sol é uma elipse com o Sol num dos focos. Pode‑se perguntar em seguida: como é que o planeta se move ao longo da elipse? Anda mais depressa quando está perto do Sol? Ou anda mais depressa quando está longe? Kepler também encontrou a resposta a esta questão (fig. 2).

Descobriu que, representando a posição de um planeta em dois instantes, separados por um determinado intervalo de tempo, digamos, três semanas, marcando a seguir noutro sítio duas outras posições do planeta, separadas igualmente por três semanas, e, finalmente, desenhando linhas (em linguagem técnica, chamadas «raios vectores») do Sol para o planeta, a área delimitada pela órbita do planeta e pelos dois raios vectores separados por três semanas é a mesma em qualquer parte da sua órbita. Assim, o planeta tem de andar mais depressa quando está próximo do Sol e mais devagar quando está afastado, de modo a que a área varrida seja sempre a mesma. 

Muitos anos mais tarde, Kepler descobriu uma terceira lei, que não dizia apenas respeito ao movimento de um planeta à volta do Sol, mas relacionava os vários planetas uns com os outros. Segundo esta regra, o tempo que um planeta demora a dar uma volta completa ao Sol está relacionado com o tamanho da órbita; esse tempo varia com a raiz quadrada do cubo do tamanho da órbita, entendendo‑se por tamanho da órbita o eixo maior da elipse. Kepler tinha, portanto, descoberto três leis, que podem resumir‑se, dizendo que a órbita é uma elipse, que áreas iguais são varridas em intervalos de tempo iguais e que a  duração de uma volta completa varia com a potência três meios do tamanho da órbita, isto é, com a raiz quadrada do cubo do eixo maior. Estas três leis de Kepler fornecem uma descrição completa do movimento dos planetas em torno do Sol.

 A questão que se colocou a seguir foi: qual é a causa do movimento dos planetas em torno do Sol? No tempo de Kepler, algumas pessoas responderam a esta pergunta dizendo que, escondido atrás de cada planeta, havia um anjo, que, ao bater as asas, o empurrava ao longo da órbita. Como vamos ver, esta resposta não está muito longe da realidade. A única diferença reside no facto de os anjos estarem numa posição diferente e de as asas empurrarem o planeta para dentro. 

Entretanto, Galileu estudava as leis do movimento dos objectos vulgares existentes na Terra. Ao estudar estas leis e ao fazer um certo número de experiências para saber como é o movimento de bolas em planos inclinados, a oscilação dos pêndulos, etc., Galileu descobriu um grande princípio, o chamado «princípio da inércia», que consiste no seguinte: se nenhuma força actuar num objecto a mo‑ ver‑se em linha recta com uma determinada velocidade, o objecto continuará a mover‑se eternamente na mesma linha recta e à mesma velocidade. Por muito inacreditável que tal possa parecer a alguém que já tenha tentado fazer rolar indefinidamente uma bola, no caso ideal, em que não há influências estranhas, tais como o atrito do solo, etc., esta continuaria eternamente a rolar com uma velocidade constante. 

O passo seguinte foi empreendido por Newton, que considerou o caso em que o objecto não se move em linha recta, concluindo ser então necessária uma força para alterar a velocidade. Por exemplo, uma bola acelerará se for empurrada na direcção em que já se move. Se se observa uma mudança de direcção, é porque foi exercida uma força lateral, a qual pode ser medida como o produto de dois factores: um é a taxa de variação de velocidade com o tempo, chamada «aceleração»; o outro é um coe‑ ficiente chamado «massa», ou «coeficiente de inércia». É fácil medir uma força. Por exemplo, se se fizer girar à volta da mão uma pedra atada a um fio, verificar‑se‑á que é necessário puxar o fio. A razão desse facto é que, embora a grandeza da velocidade não mude enquanto a pedra dá a volta, muda a respectiva direcção; tem, portanto, de existir uma força a puxar sempre para dentro, sendo esta proporcional à massa. Se pegarmos em dois objectos diferentes e fizermos girar primeiro o mais pequeno e depois o maior com a mesma velocidade em torno da cabeça, concluiremos que a segunda força é maior do que a primeira, sendo tanto maior quanto maior for a massa. Esta é uma maneira de medir as massas: só se tem de ver qual é a força necessária para mudar a velocidade. A partir daqui, para dar um exemplo simples, Newton verificou que não é necessária qualquer força, para fazer com que um corpo se mova tangencialmente: se não houver qualquer força, o corpo continuará em linha recta. Mas, de facto, os planetas não se movem em linha recta; encontram‑se, passado algum tempo, não nas posições onde estariam no caso de não haver forças, mas mais próximos do Sol (fig. 3). Por outras palavras, a sua velocidade, o seu movimento, foram deflectidos para o Sol. Assim, tudo o que os anjos
têm de fazer é bater as asas sempre em direcção ao Sol.

(...)»

10 comentários:

Eratóstenes disse...

Em face desta escorreita apresentação de Feynman, afigura-se-me lícita a questão:
Quem tem mais força:
- A Filosofia, a Matemática, a FÍSICA, ou a Monodocência?
O aluno médio, de qualquer uma das nossas escolas EB 1,2, 3 + S + JI, responderá, de jato:
- Monodocência.
Hoje em dia, até nas escolas básicas do primeiro ciclo e jardins de infância, com muitos dos seus docentes detentores de mais do que uma licenciatura, e muitos também doutorados em ciências da educação, todos sabem, incluindo os encarregados de educação, que histórias da carochinha bem contadas estimulam redes neurais e
reforçam sinapses que gravam competências nos circuitos cerebrais dos pequenos aprendizes, tais como: tocar e cheirar o papel do livro.
E como trata a sociedade os profissionais por detrás da difusão de tamanha sabedoria?
Rebaixa-os ao ponto de os considerar profissionalmente iguais a professores de Matemática, ou de Física, ou de Química, do ensino secundário!
Tamanha desconsideração não existe no mundo civilizado! Existe em Portugal!

Eratóstenes disse...

Truz-truz, está aí alguém?

Anónimo disse...

Vou explicar ainda mais devagar, essa grandeza de velocidade a que me treinei com distinção, por virtude profissional. Como já sabia que um anjo me iria fazer a crítica, é que escrevi:
“reforçando sinapses que gravam competências linguísticas, entre outras, nos circuitos cerebrais, tais como: blá, tocar no livro, cheirar o papel”
"Entre outras competências" Truz, truz, truz, truz?
“Em vez de fazer apelo à capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar os limites e os condicionamentos.” João Paulo II, na encíclica Fides et ratio, no livro de Umberto Eco "Construir o inimigo e outros escritos ocasionais", página 56, Gradiva
Quem tem mais força?

Anónimo disse...

MONODOCÊNCIA!

Eratóstenes disse...

Eratóstenes

Eratóstenes disse...

Estou azabumbado com tanta monodocência, Manifestamente, Vossa Excelência está encarrilada na rota da Verdade. Espero que um dia ultrapasse o pequeno escolho no caminho que ainda não a deixa compreender porque é que a carreira única dos professores dos ensinos básico e secundário e dos educadores de infância é absurda!

Eratóstenes disse...

Na entrada de 29 de março de 2023, às 23:08, onde se lê "Eratóstenes", não deve ler-se "Eratóstenes".

Eratóstenes disse...

Errata: na mensagem anterior, onde está uma vírgula, em "monodocência", devia estar um ponto final.

Empédocles disse...

Compreendo.. O preconceito tem pouco fundamento e é gago. Quando o dissecamos não deita sumo.
É inacreditável o elitismo de um país tão pequeno, sem horizontes.

Anónimo disse...

Obrigada pelo ponto final, um critério de delimitação bem escolhido. Quem explica muito bem estes cortes é o Christian Metz, mas no âmbito do cinema. A "grande sintagmática", as ordenações sequenciais, as mudanças de plano, os sons, as segmentações baseadas em sinais de pontuação que não são sinais de pontuação.
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