sexta-feira, 24 de março de 2023

«ABERTO TODOS OS DIAS» DE JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES

 


 

Meu artigo no último As Artes entre as Letras:

O livro Aberto todos os dias (Quetzal) é o mais recente do médico-poeta portuense João Luís Barreto Guimarães, distinguido no final de 2022 com o prémio Pessoa. Confirma o que já se sabia: o autor é um dos mais originais poetas portugueses da actualidade. Os leitores que, levados pela leitura deste livro ou dos outros mais recentes (Mediterrâneo, 2016; Nómada, 2018; e Movimento, 2020, todos do prelo da Quetzal e todos não só premiados como objecto de traduções noutras línguas), queiram conhecer a obra integral de um autor que ensina poesia aos estudantes de Medicina tê-la-ão no volume de poesia reunida a sair muito em breve. O tema maior do seu discurso poético é o tempo. O poeta serve-se de momentos do quotidiano para, usando por vezes fina ironia, falar da condição humana no tempo que corre.

A capa - lindíssima -  do livro é a Vista de Delft do pintor holandês Johannes Vermeer. Pintou um panorama da sua cidade, segundo um físico que estudou o assunto, às 8 h da manhã do dia 3 de Setembro de 1659, deixando-nos uma obra prima que pode ser vista na Mauritiushuis em Haia (ou, por estes dias, na grande exposição de Vermeer no Rijksmuseum de Amesterdão). Trata-se de um quadro famoso na história da literatura pois o escritor francês Marcel Proust estava apaixonado por ele a ponto de o ter referido num dos volumes (A Fugitiva) de Em busca do tempo perdido. Ele conta aí um episódio autobiográfico: quando foi visitar uma exposição em Paris que exibia o referido quadro com o intuito de observar um pedaço de muro amarelo que lá aparece, sentiu-se indisposto. No romance, o narrador descreve um escritor nessa situação que coloca num dos pratos de uma balança esse bocadinho de muro, magnificamente pintado, e no outro prato toda a sua vida, e a seguir falece repentinamente. Esse pedacinho de muro pode representa os pormenores  da vida que Barreto Guimarães observa e transmuta em poesia tal como Vermeer transformou um muro em arte pura.

Escritos em tempos de Covid (a nuvem negra paira por cima do quadro!), os poemas deste livro celebram o regresso à vida «aberta todos os dias». Divide-se em quatro partes, retiradas de locuções latinas usadas no Renascimento como máximas: «locus amoenus», lugar ameno; «beatus iles», bendito aquele; «tempus fugit», o tempo voa; e «carpe diem», goza o dia. ´É precisamente nesta última arte que aparece o poema que dá o título ao livro. É bem representativo da poesia do cirurgião plástico que, sem pertencer a nenhuma escola literária, tem projectado no estrangeiro a poesia em português. Vale a pena ler o seu início:

«O mundo/ aberto lá fora. Difícil cansar-me dele/ O céu/ a entrar pela janela. O músculo do homem comum./ As laranjeiras de Córdova. Brindar com/ água da/ chuva. Os peixes do Nilo urinando na/ mesma água onde nadam. O vinho que fez/ um estágio nas caves do Douro/ e passou./ A lua a quem eu uivo cada noite/ (em segredo). Um relâmpago à janela:/ electrocardiograma/ de Deus (…).»

Chama deste logo a atenção os diferentes tamanhos dos versos que assinalam um ritmo variável, num poema que é afinal uma lista de coisas do mundo, erguidas, como o poema diz no final, «com a luva/ da linguagem.» A ironia sobre o vinho do Porto exemplifica o humor do poeta (o humor não passa de uma maneira de resistir ao tempo, isto é, de ignorar a morte). O uso de parêntesis, como na frase sobre o uivo é um dos seus artifícios (há mesmo um poema intitulado «entre parêntesis») ) E a metáfora do electrocardiograma é uma imagem forte, que serve para mostrar como é forte o coração de Deus.

Mais adiante no mesmo poema cruzam-se duas famosas estátuas: «(…) A Vitória de Samotrácia parecendo atrasada/ perguntando quelle haure est–il? à estátua da/ Vénus de Milo.» Não se deixar de sorrir, em primeiro lugar por as duas serem motes literárias – a Vitória de Samotrácia equivale a um automóvel de corrida para Filipo Marinetti no seu Manifesto Futurista e a Vénus de Milo equivale à Vénus de Milo para Álvaro de Campos; depois, porque nenhuma das Vénus pode usar relógio de pulso por não terem braços: e, finalmente, por as duas, feitas de puro mármore de Paros, serem perfeitamente intemporais. Como podem quaisquer estátuas gregas querer saber das horas?

O tempo é um dos grandes mistérios do mundo e, por isso, um tema cont8nuado da poesia. Na Segunda Lei da Termodinâmica, a única lei física que permite distinguir entre passado e futuro, aparece uma grandeza chamada entropia que cresce inexoravelmente nos sistemas isolados.  Charles P. Snow disse, na sua famosa conferência de 1959 sobre «as duas culturas», que não conhecer Shakespeare era tão grave como não conhecer a Segunda Lei. A entropia é uma medida da desordem, isto é, o futuro distingue-se do passado por ser mais desordenado. O poeta do Porto joga com o tema universal da desordem quando refere a desordem dos «barcos na Cantareira», das árvores de fruta no pomar ou dos amigos sentados a uma mesa, em três dos poemas. A tensão entre ordem e desordem está, de resto, omnipresente.

Para os seres humanos, o grande problema do tempo é não serem eternos. O tema da morte é eloquentemente tratado no poema «Comentário sobre os velhos» (o poeta é irónico: «Alguém tem de/ ir à frente. a ir alguém/ que vão/ os velhos (…) ) ou no poema «Auto-retrato (ao cinquenta e cinco anos)» (“A/ cada noite que passa os pés/ensaiam no leito/ a sua/ posição final. A estátua definitiva (…)».  A ironia aqui é o poeta dizer que acordamos, normalmente, com os pés em forma de V de vitória (ou em forma de W, se há dois corpos, acrescenta num parêntesis).

Um grande poeta a seguir com grande atenção. Ainda tem muito tempo pela frente…

4 comentários:

Anónimo disse...

Ainda há originais? Pensei que, depois de Pessoa, os poetas tivessem esgotado. Afinal, talvez não...

Anónimo disse...

O tempo é círculo e rotação e vazio. Tudo na mesma equação.

Anónimo disse...

Tenho apreciado a literatura. Não que me detenha sobre o seu conteúdo, que é banal, mas paro e reparo na forma e a forma, esse recipiente do nada, é que é fascinante, é que é o escritor.
Diz Barreto Guimarães: “Alguém tem de amar o banal.” “Alguém tem de amar o vulgar e o que é feio” e lendo-o, elevo-me, como ele, sobre o hálux, tentando manter-me firme, para observar a nesga de céu presa no arco dos braços. Posição que nem música é, sequer. E reconheço o incómodo da amargura de estar e a consciência da finitude que impregna a intelectualidade cheia das formas do vazio, cheia de quem o escreve.
F.C.

Carlos Ricardo Soares disse...

Os poetas são incompreendidos. Mas ser incompreendido é da natureza das coisas vivas, sobretudo da tentativa de comunicação. Quem compreende a música? Quem compreende os filósofos? Ou os pintores? Ou os cientistas? Mas quem garante que não é mudado pelo contacto e pela percepção das coisas, das linguagens, das imagens, dos sons, das cores?

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