Meu artigo no último As Artes entre as Letras:
O livro Aberto todos os dias (Quetzal) é o mais
recente do médico-poeta portuense João Luís Barreto Guimarães, distinguido no
final de 2022 com o prémio Pessoa. Confirma o que já se sabia: o autor é um dos
mais originais poetas portugueses da actualidade. Os leitores que, levados pela
leitura deste livro ou dos outros mais recentes (Mediterrâneo, 2016; Nómada,
2018; e Movimento, 2020, todos do
prelo da Quetzal e todos não só premiados como objecto de traduções noutras línguas),
queiram conhecer a obra integral de um autor que ensina poesia aos estudantes
de Medicina tê-la-ão no volume de poesia reunida a sair muito em breve. O tema
maior do seu discurso poético é o tempo. O poeta serve-se de momentos do
quotidiano para, usando por vezes fina ironia, falar da condição humana no
tempo que corre.
A capa - lindíssima
- do livro é a Vista de Delft do pintor holandês Johannes Vermeer. Pintou um panorama
da sua cidade, segundo um físico que estudou o assunto, às 8 h da manhã do dia
3 de Setembro de 1659, deixando-nos uma obra prima que pode ser vista na
Mauritiushuis em Haia (ou, por estes dias, na grande exposição de Vermeer no
Rijksmuseum de Amesterdão). Trata-se de um quadro famoso na história da
literatura pois o escritor francês Marcel Proust estava apaixonado por ele a
ponto de o ter referido num dos volumes (A
Fugitiva) de Em busca do tempo
perdido. Ele conta aí um episódio autobiográfico: quando foi visitar uma exposição
em Paris que exibia o referido quadro com o intuito de observar um pedaço de
muro amarelo que lá aparece, sentiu-se indisposto. No romance, o narrador descreve
um escritor nessa situação que coloca num dos pratos de uma balança esse bocadinho
de muro, magnificamente pintado, e no outro prato toda a sua vida, e a seguir falece
repentinamente. Esse pedacinho de muro pode representa os pormenores da vida que Barreto Guimarães observa e
transmuta em poesia tal como Vermeer transformou um muro em arte pura.
Escritos em tempos
de Covid (a nuvem negra paira por cima do quadro!), os poemas deste livro celebram
o regresso à vida «aberta todos os dias». Divide-se em quatro partes, retiradas
de locuções latinas usadas no Renascimento como máximas: «locus amoenus», lugar
ameno; «beatus iles», bendito aquele; «tempus fugit», o tempo voa; e «carpe diem»,
goza o dia. ´É precisamente nesta última arte que aparece o poema que dá o título
ao livro. É bem representativo da poesia do cirurgião plástico que, sem
pertencer a nenhuma escola literária, tem projectado no estrangeiro a poesia em
português. Vale a pena ler o seu início:
«O mundo/ aberto lá
fora. Difícil cansar-me dele/ O céu/ a entrar pela janela. O músculo do homem
comum./ As laranjeiras de Córdova. Brindar com/ água da/ chuva. Os peixes do Nilo
urinando na/ mesma água onde nadam. O vinho que fez/ um estágio nas caves do Douro/
e passou./ A lua a quem eu uivo cada noite/ (em segredo). Um relâmpago à janela:/
electrocardiograma/ de Deus (…).»
Chama deste logo a
atenção os diferentes tamanhos dos versos que assinalam um ritmo variável, num
poema que é afinal uma lista de coisas do mundo, erguidas, como o poema diz no
final, «com a luva/ da linguagem.» A ironia sobre o vinho do Porto exemplifica
o humor do poeta (o humor não passa de uma maneira de resistir ao tempo, isto
é, de ignorar a morte). O uso de parêntesis, como na frase sobre o uivo é um
dos seus artifícios (há mesmo um poema intitulado «entre parêntesis») ) E a
metáfora do electrocardiograma é uma imagem forte, que serve para mostrar como
é forte o coração de Deus.
Mais adiante no
mesmo poema cruzam-se duas famosas estátuas: «(…) A Vitória de Samotrácia
parecendo atrasada/ perguntando quelle haure
est–il? à estátua da/ Vénus de Milo.» Não se deixar de sorrir, em primeiro
lugar por as duas serem motes literárias – a Vitória de Samotrácia equivale a
um automóvel de corrida para Filipo Marinetti no seu Manifesto Futurista e a Vénus de Milo equivale à Vénus de Milo para
Álvaro de Campos; depois, porque nenhuma das Vénus pode usar relógio de pulso por
não terem braços: e, finalmente, por as duas, feitas de puro mármore de Paros,
serem perfeitamente intemporais. Como podem quaisquer estátuas gregas querer
saber das horas?
O tempo é um dos grandes
mistérios do mundo e, por isso, um tema cont8nuado da poesia. Na Segunda Lei da
Termodinâmica, a única lei física que permite distinguir entre passado e futuro,
aparece uma grandeza chamada entropia que cresce inexoravelmente nos sistemas
isolados. Charles P. Snow disse, na sua famosa
conferência de 1959 sobre «as duas culturas», que não conhecer Shakespeare era
tão grave como não conhecer a Segunda Lei. A entropia é uma medida da desordem,
isto é, o futuro distingue-se do passado por ser mais desordenado. O poeta do Porto
joga com o tema universal da desordem quando refere a desordem dos «barcos na Cantareira»,
das árvores de fruta no pomar ou dos amigos sentados a uma mesa, em três dos
poemas. A tensão entre ordem e desordem está, de resto, omnipresente.
Para os seres
humanos, o grande problema do tempo é não serem eternos. O tema da morte é
eloquentemente tratado no poema «Comentário sobre os velhos» (o poeta é
irónico: «Alguém tem de/ ir à frente. a ir alguém/ que vão/ os velhos (…) ) ou
no poema «Auto-retrato (ao cinquenta e cinco anos)» (“A/ cada noite que passa
os pés/ensaiam no leito/ a sua/ posição final. A estátua definitiva (…)». A ironia aqui é o poeta dizer que acordamos,
normalmente, com os pés em forma de V de vitória (ou em forma de W, se há dois
corpos, acrescenta num parêntesis).
Um grande poeta a
seguir com grande atenção. Ainda tem muito tempo pela frente…
4 comentários:
Ainda há originais? Pensei que, depois de Pessoa, os poetas tivessem esgotado. Afinal, talvez não...
O tempo é círculo e rotação e vazio. Tudo na mesma equação.
Tenho apreciado a literatura. Não que me detenha sobre o seu conteúdo, que é banal, mas paro e reparo na forma e a forma, esse recipiente do nada, é que é fascinante, é que é o escritor.
Diz Barreto Guimarães: “Alguém tem de amar o banal.” “Alguém tem de amar o vulgar e o que é feio” e lendo-o, elevo-me, como ele, sobre o hálux, tentando manter-me firme, para observar a nesga de céu presa no arco dos braços. Posição que nem música é, sequer. E reconheço o incómodo da amargura de estar e a consciência da finitude que impregna a intelectualidade cheia das formas do vazio, cheia de quem o escreve.
F.C.
Os poetas são incompreendidos. Mas ser incompreendido é da natureza das coisas vivas, sobretudo da tentativa de comunicação. Quem compreende a música? Quem compreende os filósofos? Ou os pintores? Ou os cientistas? Mas quem garante que não é mudado pelo contacto e pela percepção das coisas, das linguagens, das imagens, dos sons, das cores?
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