segunda-feira, 26 de julho de 2021

OTELO: A AUDÁCIA DE FAZER

 

Novo texto de Eugénio Lisboa: 

Há serviços tão grandes que não se
podem pagar a não ser com ingratidão.
Alexandre Dumas 

Morreu no passado dia 25 Otelo Saraiva de Carvalho, nascido em Lourenço Marques, como eu, tendo frequentado o mesmo liceu que eu frequentei (ele, seis anos mais novo), de certo modo, moçambicano, sem deixar de ser português, mas com a marca distintiva dos ali nascidos: uma certa candura, simplicidade, afectuosidade e fácil entrega, em suma, uma total falta de ronha, em língua de boa cepa moçambicana. Coração na boca, capaz dos maiores dislates, mas não intrinsecamente mau, bem ao contrário.

Sem grande cultura, nem mesmo cultura política, superficial, susceptível de derivas perigosas, impulsivo, mas invulgarmente audacioso e determinado no fazer, como poucos portugueses: a maioria acomodou-se, durante décadas, sem grandes problemas de consciência, no seio de um regime pífio, provinciano, inculto, censório, persecutório, sem ambição, dispensando sem escrúpulos os melhores e apaparicando os medíocres acomodatícios, imitando timidamente os fascismos disponíveis no mercado, mas com uma falta de visão de dona de casa pobre (mas agradecida), sem ideias e odiando quem as tivesse, um regime sufocante, vergonhoso mas sem vergonha – em suma, um pântano mal cheiroso e venenoso.

Um regime em que os meus textos, que me tinham custado anos e anos de estudo empenhado e amoroso, eram trucidados às mãos de censores boçais e analfabetos, desconfiados de tudo e da própria sombra. Um regime em que o acesso aos livros e à cultura em geral era brutalmente vigiado e reprimido por incompetentes caninamente obedientes à voz do dono. 

Tudo perpetrado, de alma contente, a bem da Nação. O homem do leme, Salazar, no seu casamento de conveniência com a Igreja Católica de Cerejeira, fora ao ponto de dizer que quem não era católico era antipatriota. Isto explica o aparecimento de tantos Tartufos, logo apostados em parecer mais devotos que os devotos. O mérito era secundário ou mesmo perigoso. Nos estudos, se um aluno se destacava em conhecimento e rebeldia, logo aparecia um ou outro professor colado ao regime, que avisava: “Cuidado! De pequenino é que se torce o pepino…” A mediocridade, por outro lado, sossegava e era abençoada.

Uma guerra absurda e mortífera – que o tiranete de Santa Comba sempre soubera que não ia acabar bem – arrastava-se, perante os olhos de uma comunidade internacional que nos condenava sem apelo e nos remetia para um patético “orgulhosamente sós”. E deixando um rasto pavoroso de mutilações físicas e psíquicas, que ficariam a marcar pela vida fora os por elas atingidos.

Otelo e outros capitães souberam ousar pôr fim a tudo isto. Não é pouco, ao fim de 48 anos de opressão, de Caxias, Peniche e Tarrafal a bem da Nação, 48 anos de terror e desmotivação, aparecer alguém a ter a audácia de achar que podia pôr termo ao absurdo, mostrando como fazê-lo e fazendo-o. “Um herói”, disse-o Romain Rolland, no seu romance Jean-Christophe, “é aquele que faz o que faz. Os outros não o fazem.” 

Otelo e os seus companheiros de Abril fizeram o que havia a fazer: o que a maioria dos portugueses não fizera, o que, para não poucos, viria a constituir uma encapotada afronta.

Antes do 25 de Abril, quando eu ia lá fora encher-me do que não havia em Portugal, acesso livre à cultura, sem o intermediário de vigilantes, quando ia a Paris, a Londres, a Roma, a Bruxelas, e quando me perguntavam qual era a minha nacionalidade, tinha vergonha de dizer que era português. Depois do 25 de Abril, passei a ter menos vergonha e até a ter algum orgulho. 

Fiquei, em suma, com uma dívida insanável para com Otelo e os capitães de Abril. E nunca gostaria de a pagar com a moeda mais em uso nestes casos: a ingratidão, que Dumas denuncia na epígrafe que colei a este texto. Com isto, não quero encobrir os actos ulteriores de Otelo, que totalmente repudio. Quero muito lisinhamente não ser ingrato.

Otelo, a despeito de tudo o que, depois, fez, de tonto, de perigoso e de mal, foi, com outros, o herói que pôs fim ao reino da estupidez e da vergonha. Regatear-lhe reconhecimento, a pretexto de derivas mal congeminadas, pode ser mesquinho e tortuoso (ou simplesmente exercício de má pontaria). 

Não houve quase nunca heróis quimicamente puros, embora um Salgueiro Maia, rara excepção, se tenha aproximado muito desse ideal. 

Dos gregos antigos, de Alexandre da Macedónia, de Júlio César até Napoleão e, mais recentemente, George Patton ou MacArthur (na segunda guerra mundial), não há heróis puros, repito. A todos eles se podem pôr as mais severas reservas. A coragem e a audácia têm o seu preço elevado, no equilíbrio instável dos temperamentos dos homens não vulgares. Não compreender isso é não compreender nada. É querer comer o bolo e guardá-lo. É ser ingrato.

“Não há um único dos que comigo aprenderam a disparar, que depois não faça de mim o alvo”, observou o acutilante Montherlant, que nunca teve frio nos olhos. No exercício quotidiano da mesquinhez e da ingratidão, há não sei quantos a quem Otelo restituiu a liberdade e que lhe agradecem escoicinhando-o e, às vezes, insultando-o. 

Não nos enterneçamos: as coisas são o que são e os homens são o que podem ser.

Eugénio Lisboa

3 comentários:

Mário R. Gonçalves disse...

Herói? Não. Herói é outra coisa. É uma palavra grande de mais. A um herói não se está grato, nem há ingratidão; celebra-se, ponto. Otelo fez tudo bem e depois fez tudo mal para ser herói. Celebrá-lo, seria celebrar também esse tudo mal. Otelo vai ser, isso sim esquecido.

Carlos Ricardo Soares disse...

Este texto é uma homenagem eloquente e muito elucidativa a Otelo, ao Oscar, do 25 de abril de 1974.
A minha juventude e educação religiosa católica, da época, não me permitiam simpatizar com revolucionários. Até o ensino da história, que nos era ministrado, por padres, ou seus apaniguados, ou outros que tais, grados ao regime (pude reconhecer mais tarde) tratava, quase sempre, os revolucionários e os rebeldes como Judas. Levei tempo a compreender que era fácil inverter os papéis, como eles faziam e tratar os revolucionários como Jesus.
A ordem estabelecida define sempre os rebeldes e os opositores e os contestatários e os insubmissos e os revolucionários, como um grande problema de “lesa majestade”, ou de heresia, ou de excomunhão, ou de traição. Se essa ordem for rigidamente hierárquica, reage acidamente a qualquer atitude de desrespeito. Não reage com discussão de argumentos. O respeito, ou o respeitinho é uma estratégia ardilosa, mas muito eficaz para manter cada boneco no seu papel.
Hoje, pelo balanço que faço daquilo que Otelo representa e do papel que teve, nos contextos em que operou, mas sobretudo pelo que fez, por sua iniciativa e responsabilidade, considero-o um herói que tinha consciência disso e que desprezava, simplesmente, a caterva de carreiristas, de seguidistas e de camaleões oportunistas de que se viu rodeado, enfrentando-os, mas sem poder livrar-se deles.
De qualquer modo, Otelo seria capaz de pactuar com adversários?
Parece-me que o mal dele eram os adversários. Não há adversários perfeitos.
E nem os que pareciam segui-lo e pretendiam arregimentá-lo com promoções e “espólios” de guerra, deixavam de ser vistos como uma espécie de cobardes a quem dizia não.
Há pessoas que até na amizade veem uma forma de conluio indigno, de manipulação e de suborno incompatível com a rectidão e a probidade. É como se tivessem escrúpulo de serem desonestos e desleais e isso os impedisse de aceitar qualquer outro compromisso que não seja lutar contra os desonestos e desleais, ainda que lhes não tenham feito directamente qualquer mal.
Otelo parecia ter fobia a que, sequer, tentassem passar-lhe a mão pelo pêlo.
Assim, não lhe restavam alternativas. Do mesmo modo que não se pode ser equidistante de tudo, não se pode ser contra tudo.

António Ladrilhador disse...

Apreciei a sua visão da pessoa e da personalidade do Tenente-Coronel Saraiva de Carvalho, e subscrevo inteiramente, como não poderia deixar de ser, quanto refere relativamente ao papel fundamental desempenhado na conceção e execução da Revolução de Abril.
Abordando alguns outros aspetos, refleti, de forma que procurei tornar objetiva e desapaixonada, em https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2021/07/otelo-o-espinho-que-nem-morte-arrancou.html, que o convido a visitar e, se algum valor encontrar no escrito, a comentar.

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