O programa da RTP "O último apaga a luz" do passado dia 23 de Julho foi iniciado com um tema a que, não obstante a sua importância, não se tem dado grande atenção: a "mudança de fundo" do currículo da escolaridade obrigatória em Portugal (cf. Despacho n.º 6605-A/202, que "procede à definição dos referenciais curriculares das várias dimensões do desenvolvimento curricular, incluindo a avaliação externa"). Vale a pena ver essa parte do programa pelas reiteradas posições opostas que evidencia, posições que são, de imediato, (mal) catalogadas como progressistas umas e conservadoras outras. Pela fuga a esta catalogação, que só pode ser derivada de estudo e análise, destacamos a intervenção da historiadora Raquel Varela, de que extraímos o seguinte:
"Esta alteração curricular representa um empobrecimento radical do currículo, aliás um esfacelamento do currículo. Conhecimento não é informação, são duas coisas completamente diferentes. Se só precisássemos de dar informação às crianças e aos jovens não precisávamos da escola. O currículo é a sistematização daquilo que de mais avançado foi produzido pela humanidade no campo da arte, da ciência, da filosofia (...).
[Esta reforma não é uma surpresa] porque a OCDE tem há muito uma política de, para as classes trabalhadoras e médias; (...) nos colégios privados vai continuar a dar-se o melhor (...), aliás os colégios privados, de elite (…) não cumprem o programa curricular, dão muito mais.
O que nós temos é, de facto, um aligeiramento das aprendizagens porque há um processo de automação em curso, porque Portugal é um país muito dependente, com cada vez menos produção própria e, portanto, às crianças e aos jovens ensina-se cada vez menos, exige-se cada vez menos e paga-se cada vez menos (...). Porquê ensinar-lhes os fundamentos do conhecimento? até porque tudo aquilo que depende dos fundamentos do conhecimento nós vamos comprar lá fora. (…).
Através da educação e da cultura desenvolvemos as funções psíquicas superiores (funções que os animais não têm): memória, atenção dirigida (muito difícil porque os miúdos são hiperestimulados, e a escola devia ser, justamente, o contrário da hiperestimulação dos gadgets), o raciocínio abstracto, o domínio conceptual (...).
Tudo isto exige uma escola muito exigente, muito completa e o currículo é a sistematização do conhecimento.
Isto [que está a acontecer] é tão classista, tão classista... primeiro, eu adorava ter um estudo … não gosto que as pessoas contem a sua vida pessoal (…) mas um estudo transversal, que permitisse saber onde é que as elites intelectuais e políticas do país têm os filhos. Não é preciso individualizar, mas[era importante saber se estão naquele currículo aligeirado [ou se] têm um currículo exigente, para percebermos do que estamos a falar.
O que nós estamos a assistir é as classes trabalhadoras e médias (...) é um povo que (…) aprende a carregar nuns botões, a operar máquinas. E as elites dirigentes dominam o conhecimento.
Isto não é só um problema de desigualdade social isto é um problema de democracia (...)"
Maria Helena Damião e Isaltina Martins
2 comentários:
Quando há uns anos eu aqui no DRN escrevi sobre os méritos da Escola Única, imediatamente um professor de Biologia, de nome José Batista, se disponibilizou a deformar o conceito de Escola Única, porque defendia uma Escola de Classe. Esse professor deve estar muito satisfeito. Na verdade o problema do currículo é apenas um aspecto, que parece ser agora suficiente, para que a Escola não deixe de ser de classe. Outros existem.
Quando os americanos quiseram, no início da década de sessenta do século XX, ser os primeiros a chegar à Lua, decidiram melhorar os currículos das suas escolas secundárias, no sentido de lhes dar um cunho mais científico, apostando forte na matemática e nas ciências experimentais. Em 21 de julho de 1969, os americanos foram realmente os primeiros a chegar à lua.
Neste primeiro quartel do século XXI, os objetivos, no âmbito da educação, do governo socialista português, são muito mais terra a terra do que a subida aos céus. Acima de tudo, pretende-se que os pobres filhos das classes trabalhadoras e exploradas ascendam todos às delícias do ensino universitário, seja através do expediente das quotas reservadas aos alunos dos territórios educativos de intervenção prioritária (TEIP), seja pela erradicação do ensino das escolas secundárias. Como consequência destas políticas inclusivas, os alunos pobres já não podem ser avaliados por aquilo que sabem, ou não sabem, mas somente pela sua criatividade, empenhamento e comportamento em contexto de sala de aula, o que facilita sobremaneira a vida de todos os agentes envolvidos neste processo exigente de ensino/ aprendizagens essenciais, com destaque para os professores dos ensino básico e secundário e educadores de infância, da carreira única, que assim podem assumir livremente, e com propriedade, os seus papéis de palhaços, do circo da educação.
O desenvolvimento económico e cultural do país que se dane!
Mais vale um diploma falso na mão de um pobre aluno do secundário do que todos os conhecimentos escolares que, agora, por despacho, é proibido ensinar.
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