No passado dia 22 de Junho, saiu no jornal Sol um artigo da minha colega Célia Oliveira, psicóloga, especialista em Memória. O título é Crenças e evidências sobre o papel da memória na aprendizagem escolar. A altura para ter em conta o seu conteúdo é, mais uma vez, muitíssimo oportuna: ressurgem no discurso político e social, mas também académico, as ideias de que a memória não é precisa para aprender, que memorizar impede a compreensão e a criatividade, que memorizar perturba a aprendizagem profunda, que todo o conhecimento de que precisamos está por aí, na internet, no google, pelo que precisamos de saber pesquisar, não decorar...
"A memória humana é o produto singular de uma simbiose entre aprendizagem, recordação e esquecimento. Esta definição, de Robert Bjork (2011), ilustra a indissociabilidade dos processos de memória e de aprendizagem. Porém, o papel da memória na aprendizagem escolar continua a ser alvo de controvérsia e de crenças cientificamente infundadas. Partindo de asserções populares, ilustram-se duas dessas crenças, às quais se contrapõe a evidência científica.
1.ª crença: «Para aprender, não interessa decorar, mas sim, compreender».
Evidência: A aprendizagem é indissociável da memória. A dicotomia entre aprendizagem e memória corresponde a uma visão, redutora e cientificamente ultrapassada, que atribui à memória uma função estática de mera reprodução da informação. Contudo, a maioria das aprendizagens académicas (e não só) resulta da intervenção de estratégias mnésicas diversificadas e flexíveis, essencialmente baseadas na atribuição de significado a uma nova informação (por exemplo, por associação com conhecimento prévio ou através da prática variada). Estas estratégias determinam a informação que será retida (ou ‘decorada’) e reativada sempre que o conhecimento for recuperado e utilizado. Assim sendo, aprender implica necessariamente ‘memorizar’, isto é, formar uma nova memória.
2.ª crença: «A informação está toda no Google. O que interessa é a criatividade e a capacidade de resolver problemas».
Evidência: A memória sustenta o pensamento complexo. A crença na dispensabilidade da memória humana é incompatível com o que cientificamente se sabe: o conhecimento é a matéria-prima do pensamento e da generalidade das competências cognitivas complexas. A disponibilidade de informação na memória é condição sine qua non para pensar criativamente, ativar conhecimento para resolver problemas, fundamentar uma argumentação ou construir um pensamento crítico. Ninguém compreende ou raciocina no vazio conceptual. A aquisição de conhecimentos está na base, não só da maioria das aprendizagens, como do desenvolvimento intelectual. Mesmo a informação que aparentemente se esqueceu influencia a capacidade de realizar novas aprendizagens.
Numa época em que as aprendizagens escolares foram severamente comprometidas e em que a recuperação das mesmas é um desiderato social, o conhecimento dos processos de memória constitui uma mais-valia para a promoção de aprendizagens sólidas e duradouras. Neste sentido, torna-se fulcral reconhecer e reabilitar o papel da memória na aprendizagem escolar.
Aprender é memorizar. Saber é recuperar da memória o que se aprendeu. ‘Saber de cor’ é, por isso, essencial.
4 comentários:
Não se aborreçam se eu disser que, relativamente às memórias e às aprendizagens, não tenho grandes dúvidas de que a maioria das pessoas constroem as suas memórias e fazem as suas aprendizagens de um modo mais ou menos espontâneo, não rigidamente deliberado, num processo interactivo, em grande parte cultural, social, de comunicação linguística, mas não só, sem saberem o que são a memória e as aprendizagens, ou como se processam e o quanto isso é importante para elas.
Saber algo de cor e salteado pode ter interesse em alguns casos, sendo vantajoso identificar essas situações para reforçar a memorização de cor, nesses casos. Por exemplo, se quero dizer ou declamar um poema, cantar uma canção, posso não ter outro remédio, assim como se pretendo representar uma personagem numa peça de teatro falada, ou se me exigem num exame que saiba a tabuada de cor, ou, como antigamente, o código da estrada de cor. Em nenhum destes casos, todavia, a capacidade para papaguear as falas e os textos fornece qualquer indício, e menos ainda garantia, de que corresponde a outra aprendizagem para além disso.
Compreender o poema, a canção, a personagem, a multiplicação e os números, as regras de trânsito e a importância e significados disso tudo, pode, simplesmente, não ter sido alcançado.
Se for um sábio a ouvir, ou um professor a ler a resposta do aluno, até pode ficar deslumbrado com o que ouve, ou lê, e recolher do que ouve, ou lê, imensos ensinamentos, mandamentos e julgamentos, que nunca lhe tinham ocorrido, embora sendo sábio e não saiba nada daquilo de cor.
Mas quem fala de cor para o sábio, pode, muito simplesmente, não saber nada daquilo que diz. Aqui, as semelhanças do que fala de cor com um robot parecem-me evidentes. O “papagaio” bem podia começar por dizer “eu sou um robot” e não fazer nenhuma ideia do que estava a dizer e menos ainda da razão pela qual o sábio desatara a rir.
Já as semelhanças do sábio com um robot não são nenhumas e talvez um robot nunca venha a ser sábio porque, dificilmente ou nunca, virá a ter a noção e a ser capaz de compreender as linguagens que opera automaticamente.
Quem é autómato, não é gago.
Não tenho a certeza de que um sábio não seja um autómato. Pode ser gago, fluido e até humano ou extra-humano, mas isso não nos dá a certeza de que não saiba tudo isso de cor.
O "penso, logo existo" cartesiano, pouco ou nada diz sobre quem somos, ou melhor, sobre saber quem somos. Em certo sentido, e em alguma medida, as coisas não são o que/como pensamos/sabemos que são. Relativamente àquilo que sabemos ser um autómato, ou aos autómatos conhecidos, não deve ser difícil distingui-los de um sábio. Se o sábio for um tipo de autómato que desconhecemos, aí, não vejo maneira de termos a certeza.
Que somos nós sem memória? Pergunte a um doente de Alzheimer. Se não memorizo o que compreendo, como avanço e aprofundo? Como comparo, como integro novos conhecimentos? Como canto o fado de olhos fechados e digo um poema de Florbela Espanca sem olhar a Via Láctea e fechar os braços de infinito. Há alturas em que o papel está a mais, condiciona e atrapalha.
Caminhamos para:
Alguém fez, não sei o quê, nem onde, nem quando, nem com quem, nem porquê, mas que fez, fez. Compreendo que fez.
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