quinta-feira, 13 de junho de 2019

"Um novo «eduquês» que apelidaram de autonomia e flexibilidade escolar"

"O regresso do «eduquês»" é o título de um artigo que saiu ontem no jornal Observador, assinado por Luís Filipe Torgal, professor de História em Oliveira do Hospital, mestre em História Económica e Social Contemporânea e doutorado em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra. Investigador colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20). Tomei a liberdade de transcrever uma parte substancial desse artigo e de mudar o seu título, usando uma frase que marca a diferença entre o antigo "eduquês" e o novo "eduquês".
"O Governo e os seus leais funcionários do Ministério da Educação, pressionados pelas organizações internacionais e por uma nebulosa ideologia igualitarista escorada em pretextos economicistas, decidiram declarar guerra ao insucesso escolar. Para isso, criaram um novo «eduquês» que apelidaram de autonomia e flexibilidade escolar dos ensinos básico e secundário  designação desvendada num pacote prolixo de diplomas mais ou menos herméticos plagiados de documentos curriculares provenientes de meia dúzia de países mais ilustra-dos e prósperos do que Portugal e inspirados nas filosofias da Escola Moderna.  
A Escola Moderna não é invenção nova, pois remonta ao início do século XX. Foi uma notável filosofia educativa teorizada por diversos pedagogos e bafejada por ideologias anarquistas e socialistas. Ajudou a combater o ensino elitista, magistral, teórico, confessional, misógino, empedernido e repressivo de outros tempos. Abraçou extraordinários desígnios humanistas já incorporados nos sistemas educativos contemporâneos. Mas também conceções controversas, românticas e lunáticas. Por exemplo, José Pacheco, missionário nacional da Escola Moderna e criador da Escola da Ponte, a qual, entretanto, deixou para pregar a sua boa nova no Brasil, defende, nutrido de certezas, uma escola sem divisão de ciclos de ensino, sem turmas, nem aulas, sem horários, nem testes, sem exames, nem reprovações, onde os alunos brincam a aprender e são felizes. Os políticos que nos governam ainda não arriscaram promulgar este modo final da história da educação.  
De todo o modo, algumas das teorias, crenças, métodos e técnicas psicopedagógicas mais arrojadas da Escola Moderna têm sido experimentadas na educação pré-escolar e também no 1.º ciclo do ensino básico. Nestes níveis, os educadores e professores regem, em cada ano, uma turma composta por um número limitado de crianças com quem partilham muitas horas diárias durante um ou mesmo quatro anos letivos (...). Todavia, a partir do 2.º ciclo do ensino básico, quase tudo se altera (...). Os alunos passam a ter múltiplas disciplinas lecionadas por diversos professores. Muitos dos novos docentes convivem com os seus alunos apenas 50 ou 100 minutos semanais. Estes professores, ao longo do ano letivo, têm bem mais de 100 alunos de níveis e tipos de ensino distintos e de origens socioeconómicas diferenciadas. O volume e o grau de profundidade dos conhecimentos a estudar tornam-se mais extensos, densos e complexos.  
Podem estes últimos professores desenvolver com os seus alunos «pedagogias construtivistas» sistemáticas e proporcionar-lhes um ensino «lúdico» e individualizado? Podem estes professores avaliar os seus educandos segundo os modelos de avaliação usados pelos educadores do pré-escolar ou dos professores do 1.º ciclo? Não, não podem (...). As realidades e problemas enfrentados pelos professores variam em função dos níveis de ensino, das disciplinas, teóricas ou práticas, dos tipos de ensino, regular ou profissional, que lecionam, do número e das características dos alunos com quem trabalham. Ignorar tais factos é incorrer num lamentável equívoco. 
Por esta razão, o ardiloso engenho curricular Autonomia e Flexibilidade Escolar tornou a escola num processo kafkiano e numa Torre de Babel onde ninguém se entende. Ninguém se entende e poucos vislumbram a forma e o conteúdo da maioria das medidas e instrumentos de trabalho fabricados com a intenção de, alegadamente, promoverem melhores aprendizagens e avaliações mais rigorosas. Entre outras razões, porque essas medidas e instrumentos são opacos, absurdos e inexequíveis, nas escolas atuais e no sistema educativo vigente. 
A linguagem de cada agente da escola muda em função das suas responsabilidades. O Governo, os seus fiéis funcionários e os «pedagogos de gabinete» comprometidos com o Ministério da Educação ordenam o cumprimento das políticas educativas que engendraram, mas não sabem como as executar. 
Os inspetores escolares pressionam as escolas para cumprir o «eduquês» da tutela, mas ignoram como o concretizar. Os formadores encartados do Ministério da Educação foram formatados e são ressarcidos para doutrinar os professores no novo «evangelho» que aqueles também desconhecem como operacionalizar. Os diferentes professores não enxergam processos de realizar as diretrizes vertidas no novo aparato educativo legal. Os diretores escolares  há muito arredados da sala de aula –, comprimidos pela tutela, pelos inspetores e os professores, batem-se pelo cumprimento das normas legais vertidas na manhosa Autonomia e Flexibilidade Escolar, também eles sem saberem que caminhos ou vielas seguir para satisfazer os seus enigmáticos desígnios.  
Assim vai a escola pública, transformada num patético laboratório de políticas educativas negligentes e incongruentes, onde os alunos e os professores assumem o papel de cobaias. Quais as consequências de toda esta fantasia? Descrédito do conhecimento, sucesso educativo fraudulento, reprodução de assimetrias sociais – circunstâncias que se vão tornando mais explícitas entre professores, alunos e encarregados de educação, embora sejam menos percecionadas ou então olimpicamente ignoradas pela opinião pública e a opinião publicada."

3 comentários:

Abraham Chevrolet disse...

A experiência é a mãe de todas as coisas...e o que não pode ser posto em causa já não é Ciência.

Anónimo disse...

Resumindo e concluindo:
-A Escola vai nua!
Já lá diz o bom povo português: "O pior cego é aquele que não quer ver!".
Luís Filipe Torgal descreve magistralmente, em poucas palavras, o quadro cómico-trágico quotidianamente vivido pelos professores e alunos das escolas secundárias, conforme poderia ser facilmente comprovado in loco pelos inspetores escolares, estivessem eles mais interessados naquilo que se ensina e aprende na escola do que no número e posição correta das vírgulas em atas de áreas disciplinares dedicadas à autonomia e flexibilidade curricular. Haja coragem de chamar os bois pelos nomes: flexibilidade e autonomia são palavras difíceis demais para designar um neologismo absurdo em contexto escolar - facilitismo!

Era uma vez no oeste disse...

Um dia de escola num mundo ao contrário.
Palavras para quê?
https://www.youtube.com/watch?v=USK1VjV-nO8

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