quarta-feira, 26 de junho de 2019

PORTUGAL EM MACAU


Meu texto no último "As Artes entre as Letras" (na figura romagem dos alunos de Macau à gruta de camões no dia 10 de Junho):


O dia 10 de Junho sente-se de uma outra maneira quando se está em Macau, a região administrativa especial da China que durante séculos teve administração portuguesa. A bandeira portuguesa foi içada logo de manhã no Consulado Geral de Portugal em Macau e Hong Kong (onde também funciona o Instituto Português do oriente – IPOR) situado na Baixa macaense, na rua com o nome bem português de Pedro Nolasco da Silva, um professor, escritor e tradutor macaense que viveu na segunda metade do século XIX e início do século XX (foi provedor da Misericórdia e primeiro director da Escola Comercial, que ficou com o seu nome). A banda da polícia macaense, com uniformes não muito diferentes da antiga Polícia de Segurança Pública, interpretou a “Portuguesa.”
A seguir realizou-se  a romagem à designada “gruta de Camões” (perguntei se Camões tinha estado mesmo ali ou tudo não passava de uma lenda e percebi logo que não era pergunta que ali se pudesse fazer: claro que esteve para o meu interlocutor e não só esteve como escreveu parte dos “Lusíadas”). Situa-se no muito agradável jardim de Luís de Camões não muito longe do Consulado (aliás tudo em Macau é relativamente perto se não se atravessar o mar para ir às  duas ilhas, Taipa e Coloane), onde, ao que me disseram, os chineses vêm passear os passarinhos em gaiolas tal como nós passeamos os cães).  No interior de formações rochosas – não é bem uma gruta, mas sim três rochedos -  está um busto em bronze do poeta nacional, conforma a representação tradicional, que coroa um pedestal que tem inscritas as primeiras estrofes dos Lusíadas, conveniente traduzidas em chinês na face posterior. Lembrei-me do quadro “Camões na gruta de Macau”,  do pintor Francisco Metrass, expoente do romantismo português pertencente às colecções do Museu Nacional de Arte Contemporânea, que mostra o poeta pensativo,  com a pena na mão e o manuscrito do poema épico caído, acompanhado pelo seu escravo Jau. De acordo com uma tradição há muito instituída, as crianças das escolas luso-chinesas de Macau vão no dia 10 de Junho levar uma rosa a Camões. Foi essa tocante cerimónia que assisti este ano. Que outro país celebra o seu dia nacional na data de aniversário da morte de um poeta? Com as crianças e  jovens estava uma boa representação da comunidade portuguesa em Macau, ciosa das suas tradições lusas, mas com vidas perfeitamente integradas na realidade do território chinês.

Pormenores curiosos: no largo que dá acesso ao jardim, chamado Praça Luís de Camões, existe também um antigo solar que pertenceu a um rico comercial português e que foi depois sede local da Companhia das Índias Orientais (o que explica o pequeno cemitério protestante próximo) e que é, desde 1989, sede da Fundação Oriente. Surpreendeu-me aí um marco dos correios vermelhos à antiga portuguesa que estava em tão bom estado que fiquei com a ideia que ainda funciona. Não muito longe, ergue-se a Igreja de Santo António, uma das mais antigas da cidade e que foi o primeiro local onde os jesuítas se instalaram na cidade  (é célebre a fachada sobrevivente da grande igreja jesuíta, as ruínas de São Paulo, que não fica longe). Hoje essa parte do património histórico classificado pela UNESCO justifica o nome da freguesia de Santo António, que dá para o porto interior. Contaram-me que, sendo Santo António “capitão” foi exército português, antes da transferência de Macau para a China realizava-se no dia de Santo António, a 13 de Junho (muito próximo do dia de Camões) uma cerimónia em que o Presidente do Leal Senado de Macau dava o soldo ao santo, seguindo-se curta procissão desde a Igreja até à Praça de Camões.

Ao fim da tarde do dia 10 de Junho realizou-se na Residência Oficial do Cônsul. Português em Macau, que, nesta data é Paulo Cunha Alves. Uma recepção à comunidade portuguesa, pois o dia se chama de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas. A residência fica na Rua Comendador Kou Ho Neng, mais a sul, na freguesia de São Lourenço,  com estupendas vistas para o mar – vê-se do terraço a torre panorâmica, a longa ponte para a Taipa e, do outro lado, o cimo do Hotel Grande Lisboa muito perto do famoso Casino Lisboa, para lá do Lago Nam Van, que resultou de aterros.  Vê-se a nova Macau, que coexiste com a antiga. Quem foi Kou Ho Neng? Tendo vivido, como Nolasco da Silva, na passagem do século XIX para o XX, foi um empresário chinês, que ganhou concessões para a exploração do jogo em Macau, para o comércio de ópio (ainda hoje  há jogo, como toda a gente sabe, mas já não há ópio, pelo menos que se veja) e que foi dono de uma rede de lojas de penhores, com ligação óbvia ao jogo, e de uma empresa de navegação a vapor.
A Residência do Cônsul, de estilo neoclássico, construída cerca de 1870, já foi residência, hotel, sanatório e liceu (aí ensinou Camilo Pessanha, o poeta de Coimbra que aqui morreu). Está muito bem conservada, incluindo a calçada à portuguesa com uma fonte. Hoje, para além de residência oficial, é um centro de cultura, que exibe exposições de artistas chineses, que a comunidade ou outras pessoas podem visitar. Puviram-se no dia 10 de Junho passado, depois dos hinos chinês e português, os discursos do cônsul e do chefe de executivo de Macau, com um brinde final à amizade luso-chinesa. A comida era evidentemente portuguesa, isto é, arroz de pato em vez de pato à Pequim e vinhos do Douro e Alentejo em vez de vinho de arroz, não faltando no final os pasteis de nata, famosos em Macau, a acompanhar a bica. A bandeira portuguesa tremulava no mastro, enquanto Macau anoitecia e as feéricas luzes da trepidante cidade se acendiam.




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