Texto recebido do leitor Fernando Tenreiro, publicado no site de A Bola "Espaço Universidade" no dia 18 deste mês.
O Modelo de Desporto Português está falido! Sem a sua reforma, as selfies não produzirão medalhas olímpicas e esconderão a destruição de valor desportivo e juvenil!
Em Portugal a prática desportiva dos jovens é um território mal-amado como demonstram os resultados nacionais que situam o país nos últimos lugares europeus. Enquanto os países europeus da dimensão de Portugal conseguem que 7 a 10 dos seus jovens ganhem medalhas em cada sessão dos Jogos Olímpicos, ultimamente Portugal apenas consegue que 1 dos seus jovens seja medalhado. Avaliando o desempenho de Portugal pelo dos outros países, nos mais de 100 anos de história olímpica, houve centenas de jovens portugueses que não viram o seu potencial desportivo concretizado enquanto todos os outros países ofereceram a centenas dos seus jovens as condições para conquistarem medalhas olímpicas.
As muitas respostas erradas os líderes desportivos afirmam “saber” que Portugal não ganha mais medalhas olímpicas porque é um país pequeno, porque os portugueses não têm os genes ou a cultura correctos e outras respostas desleais relacionadas com a não existência de talento juvenil.
As estatísticas da prática desportiva sugerem que o Modelo de Desporto Português tem limitações graves e não cria valor desportivo equivalente a outros países europeus. Outra resposta plausível é que mesmo que seja descoberto um talento desportivo, as condições da produção desportiva dos clubes, das associações e das federações são muito difíceis e quando desacompanhadas de boas políticas públicas, como acontece há décadas, as organizações desportivas, clubes, associações e federações, arriscam destruir o valor desportivo dos jovens talentos.
Trago o exemplo de jovens atletas que praticam modalidades que integram o programa dos Jogos Olímpicos de verão que não identificarei, nem os atletas.
Chamemos Abel ao primeiro jovem praticante desportivo por ter sido um campeão nos escalões etários e nas especialidades da actividade desportiva em que competiu. Abel teve muitas lesões, que se seguiram umas às outras, perdeu oportunidades de evoluir desportivamente mais depressa e, apesar desse historial, foi ganhando os jogos e as competições que havia para ganhar. Numa das últimas lesões enquanto atleta disse ao treinador do clube que tinha dificuldade em treinar porque ainda não se tinha curado. O treinador disse-lhe: “tu gostas é de estar lesionado!”. Este comportamento do treinador entre outras situações, que o Abel “já esqueceu”, levaram-no a recear o treinador do clube. No clube, Abel sempre teve um treinador, não tinha outras especialidades para o nível de competição que foi alcançando e não lidava com especialidades médicas acontecendo-lhe e a outros colegas terem de treinar e competirem recorrentemente sem curarem a lesão anterior. A estrutura técnica da federação, o diretor técnico nacional, com quem o atleta também contactou apoiou o comportamento do treinador do clube. Abel quis afastar-se do treinador que receava e falhou propositadamente uma competição. Nem a estrutura dirigente ou técnica do clube, nem os responsáveis ou técnicos do alto rendimento da federação dialogaram simultaneamente com o atleta e o treinador do clube, assumindo a perda desportiva do atleta. Muito menos o lado humano do Abel.
O Abel não está sozinho. Outro atleta e outra modalidade, o Inácio, só à terceira costela fraturada, os médicos decidiram fazer a prescrição da osteodensitometria confirmando-se os graves problemas de osteoporose. Hoje o atleta continua a praticar desporto de alto nível sozinho, pagando do seu bolso a sua preparação e a medicação adequada à sua condição clínica. As fraturas de stress são comuns em demasiados atletas, chamemos-lhes os Zorros, para percorrer as letras do abecedário de A a Z, quer devido aos erros dos treinos promovendo atividades que contrariam as capacidades físicas do atleta, que deveria ser preservado, quer pelas carências de especialistas que são exigidas no treino de alto rendimento desportivo e que Portugal não oferece o nível de excelência médica que é exigido aos atletas cumprir desportivamente.
A existência de treino e competição na condição de lesionado também é referida por especialistas em seguros indicando haver modalidades desportivas onde a integridade dos jovens era falseada e a criarem problemas para toda a sua vida ao terem lesões mal curadas e consecutivas até à destruição dos tecidos, do atleta e das suas legítimas aspirações desportivas.
A complexidade do crescimento músculo-esquelético estará a ser desconsiderada ao nível dos clubes, das associações e das federações a quem falta capacidade de responder ao nível das exigências do alto rendimento desportivo moderno, cujo principal obstáculo radica na ignorância da política pública desportiva alicerçada quer na jurisdicionalização abstrata do acto desportivo, quer na austeridade bruta e ignorante da criação e preservação de valor humano desportivo.
Falando com treinadores das modalidades encontram-se situações em que a nova direcção da federação ao chegar despediu a equipa técnica anterior e nomeou outra jovem e imberbe ou outra velha e relha cheia de vícios e truques e de resultados habitualmente baixos ou nulos. Estes treinadores referem que nos contactos internacionais que tiveram, observaram que as equipas técnicas preservam-se, investindo e acumulando saber e experiência.
Noutra dimensão internacional as equipas de treinadores são plurais e acompanham ao pormenor o treino dos atletas verificando o impacto dos treinos e competições na fisiologia do atleta para aquilatar se a carga foi demasiada, o que a acontecer levaria à fadiga dos corpos e a lesões pela continuação de esforços excessivos do treino e da competição. O mesmo se passa com determinados exercícios que se sabem exigir demasiado e que essas equipas internacionais acompanham todo o seu desenrolar e aos respectivos resultados na preservação do atleta, sempre na procura de resultados superiores.
O desporto português fala há décadas da importância da descoberta de talentos, do seu desenvolvimento e não tem processos complexos de avaliação dos resultados. Os resultados que as estatísticas do desporto evidenciam são que, se porventura existe sucesso na descoberta e no desenvolvimento dos jovens talentos, também se verificam fracassos que inviabilizam essa descoberta de talentos e que o desenvolvimento ao longo dos anos de prática desportiva oferecida pelo Modelo de Desporto Português acaba por anular os propósitos iniciais da sua descoberta, por benévolos que tenham sido. As estatísticas desportivas são claras no domínio dos resultados.
Há modalidades desportivas como a natação, o ténis e o basquetebol, por exemplo, que possuem uma aura de excelência devido ao sucesso europeu e americano e cujos atletas e equipas nacionais nunca se afirmaram nas competições internacionais sustentadamente apesar do significativo financiamento público realizado. Há casos como o Hipismo que foi a primeira modalidade a ganhar 3 medalhas olímpicas para Portugal há 100 anos e que nunca igualou esses resultados e existe a Vela, de um país que se diz de marinheiros, que tem uma situação semelhante. Há uma responsabilidade federada que é incapaz de atender aos limites da produção dos clubes na base e que os governos não têm a capacidade de precaverem e melhorarem.
Outra dimensão relacionada com os talentos é o negócio da prática desportiva das crianças e dos jovens que se deixa como exemplo de destruição de capital desportivo por valorização do negócio imediato de vários agentes e parceiros que a estrutura clubística e a federada não têm capacidade de combater e o Estado português olimpicamente ignora.
Hoje o Abel não compete, tem dores de roturas e excessos passados e sentimentos de culpa do receio que teve do treinador e do desinteresse do clube e da federação desportiva. O ‘receio humano’ que se apreende de António Damásio ao Expresso desta semana. Abel de vez em quando pratica a sua atividade de eleição e os receios repovoam-lhe o espírito, sem remorsos e certo de ter sido coerente. Permanece-lhe o amargo de resultados e marcas que lhe fugiram apesar do seu empenhamento, mesmo naqueles momentos que lhe exigiam o que agora ele tem a consciência plena que eram os erros do treinador do clube e da estrutura federada que não preservaram e potenciaram as suas capacidades e o capital humano desportivo que acumulou.
O Abel fez-se um jovem adulto de sorriso fácil, dedicado, individual e socialmente responsável, focado no seu trabalho, afectuoso e capaz de surpreender positivamente, mesmo quando as situações do seu trabalho lhe são adversas e ele contraria-as com inteligência, como o desporto lhe ensinou.
Neste artigo procurei demonstrar que muito há que fazer em toda a estrutura de produção do Modelo de Desporto Português, para além do discurso obcecado sobre os talentos e a sua especialização precoce.
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