quarta-feira, 5 de junho de 2019

ANTÓNIO SÉRGIO - QUE HERANÇA?


Enviado a pedido do “De Rerum Natura”, transcreve-se um texto, publicado originalmente no “Jornal de Letras”, da autoria do crítico e ensaísta literário, Eugénio Lisboa, sobre este vulto das Belas-Letras. Escreveu Eugénio Lisboa nesse texto:

"Durante os nove anos que decorreram entre o falecimento de sua mulher e excelsa companheira, Luisa Epifânio da Silva (1960) e o seu próprio falecimento (1969), António Sérgio viveu mergulhado numa profunda depressão, sendo então dado a desvalorizar completamente o seu legado intelectual. 

Este grande e empenhado pedagogo, este notável campeador melhorista, este lutador incansável por uma constante vivificação de um espírito crítico desperto e apto a exercitar-se a todo o momento, caiu numa total descrença quanto ao valor da obra insigne a que tão apaixonadamente se entregara.

O António Sérgio da razão clara e límpida – que os bergsonistas quiseram, patuscamente, apear - , o António Sérgio racionalista esforçado, que terçara, contra o Estado Novo, armas bem afiadas e sistematicamente exibira uma afrontosa, limpa e fresca coragem, que lhe valeu exílios galhardamente assumidos, o impecável socialista libertário (que os marxistas “engagés” dificilmente digeriam), o vigoroso polemista que defrontara Bento Caraça e Abel Salazar – transformou-se, naqueles nove anos de penoso apagamento, num farrapo deprimido e descrente do valor da sua obra e acção.

Deixou de escrever, deixou de conviver, deixou de lutar, quase deixou de existir. Foi o doloroso e arrastado obscurecimento de um grande espírito.

A pergunta escaldante que nos fica é esta: teria ele razão em descrer tão profundamente do fruto que dera a sua obra de pedagogo e exímio agitador intelectual? Seria aquela sua descrença, mais do que o subproduto de uma funda depressão, a visão objectiva de um claro fracasso? O vigor da sua esbelta acção ter-se-ia afundado na areia? 

A julgar pela longa travessia do deserto que a sua aura tem vindo a sofrer, bem se podia ser levado a crer que o grande ensaísta não teria pecado por pessimismo exagerado. Nos últimos anos, quase se não tem falado nos Ensaios, ou aludido, de passagem, sequer, ao autor dos mesmos. Ou, quando surgiu uma aparente excepção a esta regra, foi, por exemplo, para se publicar um indescritível pastelão intitulado O Essencial sobre António Sérgio, que não passa de um aparatoso chorrilho de inconcebíveis dislates. Verdadeiramente, uma coisa infame. 

Estará Sérgio, o autor de alguns dos mais luminosos ensaios sobre factos da nossa cultura e de algumas das mais belas páginas de análise literária que entre nós se escreveram, reduzido a isto: um persistente e maldoso silêncio só interrompido, ocasionalmente, por um acervo de disparates? Será esta a sua desafortunada herança?
Sérgio foi, é bem certo, vítima de uma certa característica da intelectualidade portuguesa: uma quase total falta de autonomia de pensamento da parte dos consumidores de cultura. Aliás, o próprio António Sérgio pôde experimentar, em sentido inverso, ou seja, sendo ele o causador e não a vítima, o que isto pode significar, quando publicou o seu célebre ensaio sobre “o caprichismo romântico” de Guerra Junqueiro. 

Nessa altura, no auge da sua fama e influência, o autor dos Ensaios, ao infligir essa crítica acerada às pretensões filosofantes do bardo de A Velhice do Padre Eterno, para sempre o afastou das luzes cintilantes da ribalta. Pela acção dessa única crítica, Sérgio “arrumou” Junqueiro, para sempre, de modo inapelável. Não houve, até muito recentemente, uma alma que se atrevesse, nem com pinças, a pegar no autor do “Melro”. Porque uma voz autorizada e influente criticou um poeta, esse poeta ficou completamente obliterado. 

Não é caso único: Almada fez o mesmo a Dantas  e Eduardo Lourenço quase conseguiu o mesmo com a presença. Desde que um intelectual aparatoso lance uma “fatwa” a um autor ou movimento literário, em Portugal, é caso arrumado. Ninguém vai querer verificar se Dantas terá escrito, por acaso, um punhado de páginas notáveis, se Junqueiro terá, porventura, assinaláveis qualidades poéticas ou se a tese de Lourenço terá pernas para andar.

Lançada a maldição, os pestiferados ardem e queimam quem deles se tente aproximar. Sérgio teve, a lançar-lhe “fatwas”, não um mas três grupos de pessoas: os nacionalistas, os bergsonistas e os marxistas. Uns por uma razão, outros por outra, houve três sectores ansiosos por consumar o apagamento do autor dos Ensaios. Três áreas de influência a desejarem o silêncio de um grande espírito fazem muito silêncio.

Sérgio, provavelmente, para além da depressão, pressentia também as forças que, contra ele se amotinavam. Ele sabia, de resto o que tinha feito a Junqueiro e as consequências duradouras disso, embora, neste caso, tivesse tido o cuidado de não confundir os inegáveis dotes poéticos do autor de Pátria com as suas pretensões pedagógico-filosofantes. De nada valeu este escrúpulo: varrida a testada, Junqueiro apagou-se por inteiro.
Seja como for, parece-me flagrantemente injusto o quase total silêncio que desceu sobre a obra e a figura deste grande inquietador e clarificador intelectual. As páginas que nos deixou – e não só nos Ensaios – são peças de um perene interesse. O que escreveu sobre Antero, Oliveira Martins ou Eça de Queirós merece uma séria, aturada e meticulosa visita. As páginas que nos deixou sobre o cooperativismo, a História de Portugal, as suas “cartas de problemática”, as suas considerações sobre educação, o seu acutilante intervencionismo político, de um vigor e de uma claridade estimulantes, não devem ficar esquecidos a ganhar poeira nas esquecidas prateleiras das bibliotecas.

É um escândalo que se não faça uma edição crítica de toda a sua obra. Parece-me, por exemplo, dificilmente explicável que, entre os autores que a Fundação Gulbenkian tem revisitado, para fins de reedição, ainda se não tenha lembrado de fazer figurar o nome cimeiro de António Sérgio. Vieira de Almeida, Sílvio Lima, Delfim Santos, Eduardo Lourenço têm merecido a atenção da meritória Fundação. Repito: custa-me a compreender a ausência de Sérgio. Estará, para sempre, amaldiçoado?
“António Sérgio”, observou Magalhães Vilhena, “ocupa na história das ideias em Portugal uma posição singular. Nada talvez a defina melhor do que a distância imensa que o separa do vivaz e culto mas limitado António Verney, do enciclopedista «estrangeirado» Ribeiro Sanches, da fluidez filosofante e do confucionismo «teórico» de Oliveira Martins, do diletantismo metafísico-social do malogrado Antero.” Sérgio é, realmente, um caso singular, que não merece ser apagado do nosso horizonte de seus herdeiros.

O filósofo coimbrão Sílvio Lima, ele próprio um admirável ensaísta, afirma, no seu belo Ensaio sobre a Essência do Ensaio, o seguinte: “Em nosso juízo, é António Sérgio quem, no panorama nacional, mais fina e profundamente encarna, pratica e apostoliza a atitude ensaística.” Mas esclarece: “António Sérgio é, por estrutura temperamental, ou por invencível vocação, um pedagogo-nato, um apóstolo reformista. Isto é só isto. Os seus ensaios sobre economia, história, política, literatura, filosofia, não são o trabalho especializado de um profissional de economia, história, política, literatura, filosofia, mas sim o trabalho exemplificativo, ilustrativo da técnica, ou modo, como se deve aplicar o método ensaístico aos vários domínios do saber, isto é, do processo como se organiza a cultura.”
Resta-me desejar, a assinalar este cinquentenário da morte do grande ensaísta, que se reedite criticamente a sua obra e que esta não deixe de ser visitada pelos leitores de hoje, que nela poderão beber estímulos da mais variada natureza. Polémico, no melhor sentido, o autor dos Ensaios desafia-nos constantemente a um combate frutuoso, estimulante e criativo". 

1 comentário:

Da Palha disse...

Os intelectuais não se deprimem. São lúcidos. Compreendem a cave, o tapete vermelho e as pulsões viscerais que elevam o pensamento ao estado superior. Inconformam-se de ser, o que aos outros parece triste.

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