Meu artigo sobre Agustina Bessa-Luís, que pre-publico aqui em homenagem a ela. Sairá em breve numa revista de Vila Real, uma vez que corresponde á minha intervenção num colóquio sobre Agustina realizada na UTAD - Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, a convite da Prof.ª Isabel Alves:
Sumário
Motivado pelo uso que
Agustina faz como título de uma trilogia romanesca da expressão da Física
“Princípio da Incerteza”, procurei em duas antologias, uma de textos publicados
e outra de inéditos, de Agustina Bessa-Luís, respectivamente Dicionário Imperfeito e Caderno de Significados, referências à
ciência e à tecnologia. Embora não sejam abundantes, elas são aqui apresentadas
e sumariamente discutidas. Apesar de considerar a ciência um bem e de se servir
de algumas imagens e histórias da ciência, Agustina é crítica do domínio
tecnocrática da sociedade.
Introdução
Agustina Bessa-Luís (1922-2019),
a prolífica escritora portuguesa que se estreou em 1949 com Mundo Fechado (e que, portanto, completa
este ano 70 anos de vida literária), tem sido uma voz centrada na vida dos
portugueses, em particular os de Entre Douro e Minho (é natural de Vila Meã,
Amarante e viveu no Porto). A vida dos seus personagens inscreve-se na história
e na cultura nacionais, que ela conhece como poucos. Como o local é sempre uma parte
do global, a sua prosa ficcional (a única que aqui consideramos; embora também tenha
prosa biográfica, dramatúrgica, cronística e ensaística) não deixa de reflectir
a história e a cultura do mundo, isto é, o mundo de Agustina, o mundo que se
pode encapsular na expressão “alma do Norte”, por muito particular que seja, não
é de modo nenhum fechado.
Ensaio aqui, e apenas em breve
esboço, uma resposta à questão de saber em que medida a cultura científica e
tecnológica, que tanta marca a época contemporânea nu mundo e em Portugal,
aparece no mundo literário de Agustina Bessa-Luís. A cultura nacional não está
historicamente entranhada pela ciência e pela técnica como está em outros
países europeus que protagonizaram primeiro a Revolução Científica e depois a
Revolução Industrial, pelo que, à partida, não se espera que a cultura
científico-técnica seja muito relevante na vida social urdida na ficção de
Agustina, que tem a sua principal origem na realidade do Norte do país. De
facto, não o é. ~
E tal acontece apesar de encontrarmos,
na lista da sua bibliografia literária, o título “Princípio da Incerteza”, o
nome que deu a uma trilogia formada pelos romances Joia de Família (2001), que foi Grande Prémio de Romance e Novela
da Associação Portuguesa de Escritores), A
Alma dos Ricos (2002) e Os Espaços em
Branco (2003), os dois primeiros adaptados ao cinema por Manoel de Oliveira
(1908-2015), o realizador do Norte amigo
de Agustina, sob os títulos de, respectivamente, O Princípio da Incerteza (2002) e Espelho Mágico (2005). É sabido que esse título vem da área da Física,
mais precisamente do nome de um enunciado apresentado pelo físico alemão Werner
Heisenberg (1901-1976), em 1926, segundo o qual posição e a velocidade de uma
partícula quântica são complementares: maior conhecimento da sua posição corresponde
ao menor conhecimento da sua velocidade
e, vice-versa, o maior conhecimento da sua velocidade corresponde ao menor
conhecimento da sua posição. Embora se
chame princípio, a verdade que esse enunciado pode ser deduzido de princípios
mais fundamentais da teoria quântica, sendo, portanto, mais uma lei do que um
princípio. E, ao contrário do que normalmente se diz, ele não resulta da
perturbação do observador no acto de medir, sendo antes uma fatalidade do estranho
mundo quântico. Talvez mais adequado do que incerteza seria o termo “indeterminação”,
uma vez que não se pode determinar em simultâneo os valores das duas grandezas
físicas, que se dizem por isso complementares.
Essa lei da física
quântica, que viola o nosso senso comum pois, para um objecto macroscópico,
podemos conhecer ao mesmo tempo posição e velocidade, que deu o título a uma
trilogia literária e a um filme não passa de uma metáfora, sendo em vão que se
descortina alguma relação com o mundo quântico das partículas nos romances e no
filme. Tal apropriação literária de expressões da física está longe de ser
inédita. Ela encontra-se noutras obras literárias como, precisamente a mesma
expressão, O Princípio da Incerteza (1993) do escritor francês Michel Rio
(nascido em 1945) ou a peça de teatro Copenhaga
(2000) do dramaturgo inglês Michael Frayn (nascido em 1933). Se a relação com a
física quântica é algo difusa em Rio, embora menos do que em Agustina pois ele
refere vários físicos, essa relação é, pelo contrário, mais nítida em Copenhaga, peça que em Portugal foi representada
no Teatro Aberto em Lisboa em 2003 encenada por João Lourenço e com a
participação da actriz Carmen Dolores e dos actores Paulo Pires e Luís Alberto
(a primeira coroou com essa actuação a sua longa e bem sucedida carreira). Com
efeito, esta peça trata a incerteza tanto na física como nas relações humanas:
o contexto é o encontro que teve lugar em Copenhaga em 1941 entre o próprio autor
do Princípio da Incerteza e outro físico mais velho, que de certo modo tinha
sido seu mestre, o dinamarquês Niels Bohr (1885 – 1962). O encontro real deu-se
durante a Segunda Guerra Mundial, sendo o discípulo o representante do ocupante e o mestre o representante
do ocupado. Os dois têm segredos atómicos e da conjugação das suas vontades
pode depender o futuro do mundo. Os dois antigos amigos saíram separados. Mas,
como em todas as relações humanas, resse desenlace não podia ser previsto:
estava indeterminado.
Na trilogia de Agustina
há também uma contínua incerteza a
respeito do futuro, tal como há nas sociedades. Sabemos umas coisas e outras
não. Há coisas que vamos saber. E há outras que ficam por saber, que talvez nunca
venhamos a saber. No mundo, marcado pela incerteza, do romance, por vezes nem sequer
é oferecida ao leitor a certeza de um desfecho. É precisamente isso o que
acontece na trilogia “O Princípio da Incerteza.” Na história de Joia de Família encontram-se a
corrupção, a delinquência e o crime, tal como de resto na vida real moderna. Surge
até um incêndio numa casa de alterne do Norte que se assemelha ao que aconteceu
realmente em 1997 numa casa desse tipo em Amarante (curiosamente denominada Mea Culpa), um desastre em que morreram
treze pessoas. Por seu lado, em A Alma
dos Ricos o tema central é o mistério da alma feminina (saliente-se que a
mulher ocupa um lugar relevante em toda a ficção de Agustina), uma alma que,
num país eivado de vícios, pode ser tão submissa como rebelde e tão religiosa
como pagã. Em Os Espaços em Branco continuam a perpassar alguns tópicos da modernidade
lusitana como os centros comerciais, o comércio de droga, a imigração, todos
eles epifenómenos de uma sociedade profundamente desigual onde coabitam novos pobres
e novos ricos. Os romances da trilogia são
independentes, embora existam personagens que reaparecem. O painel dos três fornece
um retrato desalentado da contemporaneidade portuguesa, onde uma sociedade de
raiz antiga se encontra sujeita, de um modo muitas vezes desditoso, a novas influências
e ocorrências. O tema central é, como sempre na escritora de Vila Meã, a alma
humana, do Norte, portuguesa e universal. Agustina escreve em Alma dos Ricos sobre um dos personagens:
"Ela tomara um caminho tão
solitário como o das estrelas e não havia uma fórmula para o descrever e
compreender.” Numa entrevista à jornalista Maria Augusta Silva, a
escritora sumariou assim o seu “Princípio da Incerteza”: “Para
mim, o Ser é infinito, tem uma história que se desenvolve, mas sem remate. É
uma trilogia tocada pela asa da incerteza.”
Em vez de me deter na complexa e incerta estrutura de a trilogia O Princípio da Incerteza, que só a análise
literária poderá aspirar a fazer (ver, por exemplo, Agustina Bessa-Luís: A Paixão da Incerteza, de José Manuel Heleno,
publicado pela Fim de Século em 2002) procurando em que medida o título encontra
ressonâncias no conteúdo e na forma, limito-me a analisar aqui dois dicionários
de citações de Agustina Bessa-Luís procurando influências da ciência e da tecnologia:
o Dicionário Imperfeito e o Caderno de Significados.
O corpus é reconhecidamente muito
limitado e não dará suficiente conta da riqueza da obra agustiniana. O Dicionário Imperfeito foi publicado em 2008
na Guimarães, integrado na colecção Opera
Omnia. Nesse volume, que resulta de uma ideia do marido
da escritora, Alberto de Oliveira-Luís (1945-2017), encontram-se ordenados alfabeticamente
por assuntos alguns excertos significativos da obra da escritora, formando como
que uma antologia temática da obra publicada. Por outro lado, o Caderno de Significados, saído também na
Guimarães, mas em 2014, contém, também ordenados por assuntos, um conjunto de
escritos soltos e inéditos de Agustina, retirados de notas ou de margens de
livros, sendo por isso uma espécie de pensamentos ambulantes. A selecção,
organização e fixação de textos foi do referido Alberto de Oliveira-Luís em colaboração com Lourença Baldaque (nascida em 1979), a jovem
escritora que é neta de Agustina, filha da sua única filha, Mónica Baldaque.
Escolhi nesses dois volumes algumas passagens que referem a ciência e
a tecnologia pois julgo que elas ajudam a perceber melhor onde se situa a
escritora perante essas grandes forças modeladoras do mundo moderno.
Literatura e ciência
É óbvio que ciência e literatura são diferentes, pois a primeira
pretende descrever o mundo natural e a segunda mundos interiores. Além disso, a
ciência lida com o objectivo, ao passo que a segunda lida com o subjectivo. Mas,
numa entrada do Caderno de Significados
intitulada “A Ciência da Literatura”, datada de 1984 (pp. 15-16), Agustina diz curiosamente
que “a literatura é uma ciência”, acrescentando “encíclica”, isto é. que
circula:
“A
literatura é uma fisionomia interior. Vemos como as mulheres são dispostas a
conservar um rosto e não a criar um rosto. A
literatura tem que criar o rosto; manifestar nela a marca que está no fundo de
todos os seres e que é a inteligência. Por isso digo que a literatura é uma ciência,
uma ciência encíclica em que a arte da palavra origina a tão bela cultura
externa que os gregos admiraram. Quanto mais a alma humana estiver distribuída
por harmoniosos laços de pensamento, vontade e paixões, mais a literatura será
obra digna dos homens e das mulheres que a fizerem.”
Agustina fala dos antigos gregos, sentindo com
eles uma proximidade que o físico Erwin Schroedinger (1887- 1961), co-autor da teoria quântica com
Heisenberg, já sentiu quando escreveu A
Natureza e os gregos (original de 1951) e que todos nós devíamos sentir por
sermos seus herdeiros. A palavra “ciência” antes
de ganhar o significado que lhe deu a modernidade, associado ao exercício do
método científico, significava pura e simplesmente conhecimento, racionalidade
do mundo congeminada pelo homem. E se “ciência” vem do latim “scientia”, a
palavra grega correspondente é “logos,” que é não só pensamento, mas também
“razão” e “palavra”. Nesse sentido antigo de ciência, a literatura é ciência
uma vez que é conhecimento. Na obra que nos chegou de Aristóteles encontra-se a
Física e está também a Poética. Claro que a ciência moderna tenta separar o
pensamento das vontades e paixões, mas a literatura vem-nos justamente lembrar
que eles são inseparáveis ou, pelo menos, que não são facilmente separáveis.
Embora
sejam diferentes, ciência e literatura podem e devem cruzar-se. É natural que
se cruzem, é bom que se cruzem .A literatura apropria-se não só de expressões
da ciência (como se viu atrás com o “Princípio da Incerteza”) como de temas
científicos, assim como a ciência vai, amiúde, buscar termos e temas à
literatura (o nome “quarks” dado a partículas elementares foi retirado pelo
físico norte-americano Murray Gell-Mann (1929-1919) ao escritor irlandês James
Joyce (1882 – 1941), autor de Finnegans Wake
(publicado em 1959; nele está a frase “three
quarks for Mustere Mark…”, sendo quark uma palavra inventada para rimar com
Mark). Num saboroso texto, mais longo e
sem data, do mesmo Caderno (pp. 75-77) sobre os críticos literários,
Agustina fala primeiro da electricidade de Benjamin Franklin e depois da
retractação de Galileu Galilei, duas das lendas da ciência moderna (itálicos
meus):
“Tenho para mim que os críticos são pessoas
que não contemplam as árvores. Pessoas assim andam perto de enlouquecer e
sofrem de dores de cabeça permanentes. As
árvores, como objectos que atraem e repelem a eletricidade, como bem reparou o
bom Benjamin Franklin, estão em condições de servirem de meio curativo a
certas moléstias cerebrais que produzem a crítica
A
crítica é uma agressividade emparedada em bibliotecas. Já que falamos do bom
Benjamin Franklin, digamos o que ele pensava das polémicas, ou, por assim
dizer, dos críticos. “As pessoas de juízo – diz ele -, segundo o que pude
apreciar, raramente caem no vício de discutir, salvo os advogados, os
universitários e os que se criaram em Edimburgo.” O que se segue esta reflexão
é um assunto muito interessante que redundou em discussão sobre se serão as
mulheres dotadas para o estudo. Dado que Edimburgo, que se chamou a Nova
Atenas, não é lugar de fácil acesso aos portugueses para que aí se viciassem no
hábito de fazer críticas e de discutir, em suma, restam-nos os advogados e os
universitários como adeptos dessa ciência. Eu não me refiro ao espírito de
contradição, bem entendido. Esse é um exercício usado pelos poucos povos da
diáspora e que tem como objectivo manter o espírito afinado e pronto a
socorrer-se de invenções que protejam a sua liberdade. A crítica é outra coisa.
O crítico é, provavelmente, alguém, que sem o ter lido, adivinhou o pensamento
de Ariosto: ”Há entre nós mágicos e feiticeiras, mas ninguém o pode saber “. O
critico julga que é um desses mágicos, laboriosos e úteis na sua integridade e
capazes de transformar mercúrio em oiro; capazes de fazer de uma obra
resplandecente de erros e suspiros de desistência, algo como um projeto para
voar sem hélice nem motor, velas, asas ou ventos vários.
A
obra é violável, mas não culpada. Não está sujeita a tribunal, ainda que possa
ser ajuizada. Escreve-se sem extraordinária ousadia e sem esperança, porque a
vida nos parece insuficiente e a verdade insustentável, não nos seus direitos,
mas na sua prática. De resto, entre verdade e fanatismo não cabe a espessura de
uma unha. O que nos faz pensar que Galileu
foi muitíssimo sábio em moderar o ímpeto das suas afirmações. A terra não é
assim tão redonda, nem o sol tão imóvel. A ciência é o menos exacto dos jogos
para crianças.”
A última frase mostra bem como a escrita de Agustina
é, por vezes, aforística, procurando desconcertar-nos com analogias inesperadas.
No Dicionário Imperfeito encontram-se
amiúde definições aforísticas de termos do universo da ciência, tais como razão
e sabedoria. Vejamos dois em que aparece o feminino, omnipresente na sua obra. Diz
a respeito da razão (p. 147): “A razão é
como a mulher honestíssima e sem parentes, que em tudo está falta de auxílio e
de liberdade.” E diz a respeito da sabedoria (p. 265): “Seduz mais da que a
mulher; até porque mais depressa se atinge a sabedoria do que se encontra uma
mulher perfeita.”
Apesar de não aparecer muito na obra de Agustina, a ciência é
iniludível. A escritora fala dela como um bem humano, relacionando-o com o
progresso, que na sua opinião (e nisso não está seguramente sozinha) deveria
ser mais global e menos particular (p. 49):
“Contradição
fascinante na sociedade moderna: promovendo-se a repartição dos bens, tanto das
nações como dos indivíduos, não se consideram parte integrante desses bens as
descobertas da ciência. O campo da investigação científica deveria cair sob a
responsabilidade duma cidade universal que legislasse a respeito da força dos
bens humanos e a massa total do progresso.”
Encontram-se no mesmo Dicionário alguns exemplos do uso literário de conceitos
científicos, como o movimento e o tempo. Sobre o movimento escreve (p. 185): “Eu admiro os grandes parados. São pessoas de
grande perspicácia. O movimento produz calor, mas não aguça a inteligência.” E sobre o tempo (pp. 289-290):
“Não sei se alguma vez escrevi para me opor ao
tempo. Não sei se o tenho como adversário e o que ele significa. A importância
que nós damos ao tempo está radicada nas nossas tendências destrutivas. Quanto
mais a expansão de uma vida é reprimida, parece que o grau da sua tendência
aumenta. A noção de tempo aumenta com a decomposição de uma força que,
inicialmente, não se dirigia à destruição, mas à expansão da própria vida.
Quanto mais plenamente se realiza uma vida, a função destrutiva do tempo tem
menos efeito em nós.”
A sua visão de tempo não podia deixar de estar conotada
com os conceitos de entropia e de neguentropia (respectivamente, desordem e
ordem, estando o aumento da primeiro
ligado, pela Segunda Lei da Termodinâmica, à evolução de sistemas
isolados e a segunda associada ao fenómeno da vida, que só pode funcionar em
sistemas abertos). Schroedinger tratou o fenómeno da vida no seu livro Que é a Vida (original de 1943), onde propôs
de forma pioneira que as bases materiais da hereditariedade deviam assentar no
mundo físico-químico das moléculas. Sabemos hoje, graças à moderna genética,
que isso é verdade. Devo lembrar neste contexto que a Segunda Lei da Termodinâmica foi referida pelo químico e escritor inglês Charles
P. Snow (1905-1980) em 1959, quando proferiu em Cambridge a sua famosa
conferência sobre As Duas Culturas (original
saído no mesmo ano de 1959), que deu origem a um acalorado debate. Snow disse
aí que desconhecer a Segunda Lei era equivalente a desconhecer Shakespeare,
transmitindo a ideia de que tanto se era analfabeto por ignorar a ciência como
por se ignorar a literatura.
Continuando o “passeio” sobre as referências de
Agustina a temas de ciência, veja-se o que ela diz sobre a água, na entrada
sobre “Mar” (pp. 176-177), que hoje já não é o elemento fundamental dos gregos,
mas sim uma substância química, que é indispensável à vida tal como a
conhecemos. Agustina parte do Genesis
para terminar numa referência pessoal que surpreende por terminar num tom
científico:
“Depois a origem histórica do mar não me
parece real, porque apartar a terra das águas nunca foi obra acabada; há ainda
lugares pantanosos em que a separação não se fez, e há areias movediças e
tundras, que já vi no cinema. A água brota e corre de toda a parte, o que dá a
ideia de que a terra está embebida, encharcada, empapada em água. Então a
separação não foi realizada e nós próprios somos feitos de água na maioria dos
casos. Que eu não; a água não me afecta, não tenho de todo uma natureza
linfática; está comprovado por análise de laboratório, perfeitamente idónea.”
Sobre o evolucionismo (p. 102), que entre nós no
século XIX foi talvez mais recebido com mais entusiasmo nos círculos literários (a geração de 70, onde
pontificavam Antero de Quental e Eça de Queiroz) do que nos círculos científicos,
não consegue esconder o seu espanto, perante os caprichos do acaso conjugada
com a adaptação ao ambiente:
“A
Natureza é desassossegada. Desta vez é uma lauta informação que nos afirma que
a baleia era um mamífero dos lodaçais do Nilo, talvez um dos famosos cães
caçadores de peixe, que ladram e bebem ao mesmo tempo das águas sombrias. Nesse
caso, a metamorfose não deu azo a melhoramento algum; não se pode dizer que a
baleia de bossas se parece a uma borboleta.
Mas
porque se mudam os cães do Nilo em baleias cinzentas? A natureza não tem
espírito prático; tem só uma função económica de ajustador de contas com o
acaso. Se o meio ambiente é piscícola, então renuncia-se à zona pélvica e
crescem barbatanas em vez de pés. Dá-me que pensar se o homem criou alma porque
não se adapta. Se não é uma criatura rebelde ao mando do ambiente e, portanto.
uma criatura falhada.”
Muito nítido em Agustina, como não podia deixar de ser, por se tratar
de um tema muito comum na literatura contemporânea, é a crítica do domínio da
técnica na sociedade actual. Segundo ela, o império da máquina coloca em
perigo a criatividade (pp. 62-63):
“Parece-me
que com o crescente domínio da técnica, com os fáceis recursos do turismo
intelectual, desaparece o tipo criador, mais próximo do lunático do que do
grande organizador de fachadas culturais; mais perto da renúncia do que da
glória missionária.”
Não poderíamos esperar que Agustina distinguisse ciência da técnica,
pois as duas estão intimamente associadas na perspectiva do público comum. Mas
talvez pudéssemos esperar que ela reconhecesse criatividade na ciência. Se as
artes, em particular a literatura, exigem imaginação, o cientista tem também de
ser imaginativo uma vez que ele mais não faz do que buscar a extraordinária
“imaginação da Natureza”.
Sob o título “Tecnocracia” (p. 287) encontra-se esta descrição
agustiniana desse fenómeno, que é uma crítica acesa, onde surge o caso
português (entre nós a técnica veio abruptamente alterar velhos hábitos):
“Dissipação
colectiva e social, a nível muitas vezes gigantesco e que se propaga de
inúmeras maneiras: desde a febre modernizador de mobiliário e figurino técnico
até ao empreendimento de obras inúteis, quase sempre registadas como obras
artísticas. Um pais de clima moderado como o nosso começa a julgar-se humilhado
se não possui aquecimento central e climatização. A experiência pessoal da
realidade está em causa porque o primitivismo das aspirações impede que o homem
crie o encontro da pessoa com o seu próprio mistério. Todas as religiões tinham
em si um conteúdo grosseiro que era o de pôr a divindade à disposição do
individuo ou da colectividade. Há hoje uma forma de religião nesta tendência
pré-lógica e primitiva, de pôr o culto da técnica acima da moral social. Por
outras palavras, o selvagem atualiza-se, mas não se emenda.
Não
se pode imaginar uma senhora Thatcher em Portugal: aquele carácter persistente
de quem contempla o país como um bom assado que é preciso vigiar como um
imperativo da vida quotidiana, não existe nos Portugueses. Não somos assíduos
no termóstato, a margem de erro é-nos bastante indiferente. O sequestro do
pensamento, que existe em toda a convicção firme, aborrece-nos de morte. Digam
o que disserem, a era dos tecnocratas vai passar quase despercebida;
preferimos, qualquer que seja o grau de cultura, a linguagem liberta em que se
constrói o dia-a-dia””
Agustina critica claramente
o desperdício na sociedade técnica, uma sociedade da abundância (p. 78):
“Uma
tentação imediata do nosso tempo é o desperdício. Não é só o resultado duma
invenção constante da oferta que leva ao apetite do consumo, como é, sobretudo,
uma forma de aristocracia técnica. O tecnocrata, novo aristocrata da
inteligência artificial, dos números e dos computadores, propõe uma sociedade
de dissipação. Propõe-na na medida em que favorece os métodos de maior
rendimento e a rapina dos recursos naturais. As hormonas que fazem crescer uma
vitela em três meses, as árvores que dão fruto três vezes por ano, tudo obriga
a natureza a render mais. Para quê? Para que os alimentos se amontoem nas lixeiras
e os desperdícios de cozinha ou de vestuário sirvam afinal para descrever o bluff da produtividade.”
Finalmente, as ameaças à humanidade colocadas
pela ciência e da técnica, não poderiam deixar de ser referidas pela escritora.
Com o conhecimento mais profundo da Natureza abrimos a possibilidade de
libertar forças naturais contidas até então. Sobre o grande poder de destruição
da ciência e tecnologia, bem representado pela bomba de Hiroshima (p. 133) escreve Agustina, que tinha 23 anos
em 1945, quando esse evento catastrófico, seguido pelo de Nagasaki, colocou
termo à Segunda Guerra Mundial :
“Eu senti que se começava um mundo diferente,
que aquilo marcava realmente uma nova etapa. Eu não sabia dizer como, mas foi
perfeitamente um sentimento de angústia imensa que eu tive nessa altura. Não
pensando sequer nas circunstâncias, porquê nós não tínhamos acesso a esse
acontecimento como um espectáculo. Hoje é uma coisa que se faz muito; é o
acontecimento dramático como um espetáculo, e é uma forma de o banalizar. Foi
um acontecimento como facto histórico, como facto de um poder que se tinha
agigantado de uma maneira tão desmedida que me deu a impressão de que, com toda
a minha capacidade e apetite e vontade de intervenção quase, digamos, mágica,
como na juventude se pode entender o que é a nossa intervenção no mundo, que
ficava em causa. Havia toda essa força brutal que punha em causa toda a
categoria do espírito. Essa foi as maiores emoções da minha vida.”
O caso português
Agustina
interessa-se sobremaneira pelo “caso português”, isto é, com a nossa realidade,
como já atrás foi mencionado. Fala com ironia fina da familiaridade do
português com o mistério, quer dizer, a nossa falta de familiaridade com a
ciência, que continuamente se esforça
por dissipar o mistério:
“O
português sente-se à vontade com o que não entende; na realidade está sempre
mais perto do nomear os mitos do que os meteorologistas ou o presidente da
câmara. Se as tempestades destruíam as colheitas e as vacas abortavam, era
certo que havia culpado na aldeia geral. Em geral uma pessoa de mau parecer,
coxa ou enfezada e que enriquecera depressa. Era expulso da terra e tudo
voltava à normalidade. A sociedade não admite incoerências.”
Duvida que os portugueses sejam atreitos aos
segredos que associa à investigação (pp. 271-272):
“Nasce-se
investigador como se nasce para a astronomia: é o gosto da dedução que faz o
cientista, antes de o estudo fazer o perito. Alguém que tem um segredo profundo
torna-se automaticamente interessado nos segredos dos outros. Eu penso se
realmente os Portugueses sabem cultivar o segredo e fazer dele a impureza
necessária ao desejo de clarificação.
(…)
Afinal ninguém sabe bem o que é o mundo e como surgiu; nem o que é a sida, o
cancro ou uma simples constipação. Mas todos se comportam como grandes
confidentes do segredo em que vivemos e convivemos.”
Em suma, os
portugueses têm as suas particularidades.
Conclusões
Agustina Bessa-Luís é sobretudo uma escritora das
relações humanas, profundamente conhecedora da realidade histórica e cultural
portuguesa. Lendo as suas obras pode-se conhecer melhor como é Portugal e os
portugueses, em particular o Norte onde surgiu Portugal. Embora o país só a
espaços, como no tempo dos Descobrimentos, tenha sido cientificamente criativo,
o facto é que sempre cá existiu ciência, quanto mais não fosse a ciência que
era importada sob a forma de conhecimento e que era transmitida em escolas de
vários níveis ou, a partir do século XIX, a plétora de aplicações técnicas
disponibilizadas no mercado. Nos tempos contemporâneos a presença da ciência
avolumou-se no mundo e, sobretudo após o 25 de Abril de 1974, em Portugal, em resultado de uma convergência
de Portugal com a União Europeia e o resto do mundo mais desenvolvido. É, por
isso, natural que na literatura de Agustina, como na de outros autores nacionais
seus contemporâneos, se encontrem ecos da ciência e da técnica. Se por vezes ela
se manifesta só no uso de termos da ciência como metáforas de belo efeito, como
“O Princípio da Incerteza,” que alude a um anunciado da física quântica que é
mais exacto do que muitas referências a ele de carácter impressionista levam a
crer, noutras vezes encontram-se pontes com a ciência em textos que são
eminentemente literários, por serem imaginativos e estarem repletos de belas figuras
de estilos.
Na prosa de Agustina que se encontra concatenada
no Dicionário Imperfeito e no Caderno de Significados, encontram-se diversas
referências à ciência e à tecnologia. Deposita esperança na primeira, que é um
bem que deve ser partilhado pela humanidade, e desconfiança na segunda, que é
potenciadora de males, apesar de a distinção não ficar nitidamente
estabelecida. Numa sociedade bastante tradicional como a portuguesa a invasão
da ciência e da técnica suscita naturais inquietações.
Bibliografia
Agustina Bessa-Luís, Dicionário Imperfeito, selecção e organização de Manuel Vieira da
Cruz e Luís Abel Ferreira, Lisboa: Guimarães, 2008.
Agustina, Caderno
de Significados, selecção e organização e fixação de texto de Alberto Luís
e Lourença Baldaque, 2013.
Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza, constituído por Jóia de Família, Lisboa: Guimarães,
2001, A Alma dos Ricos, Ibidem, 2002 e
Espaços em Branco, Ibidem, 2005.
Agustina Bessa-Luís, Entrevistada por Maria
Augusta Silva, http://www.casaldasletras.com/Textos/AGUSTINA%20BESSA%20LUIS.pdf
Robert
Crease, “Too confidente about uncertainty”, Physics
World, Dez 2001, p. 18 http://www.robertpcrease.com/wp-content/upload/2012/06/Too-Confident-About-Uncertainty.pdf
Carlos Fiolhais, “O Princípio da
Incerteza”, In O Primeiro de Janeiro, 2003
Michael Frayn, Copenhagen, London: Anchor, 2000.
José
Manuel Heleno, Agustina Bessa-Luís: A
Paixão da Incerteza, Lisboa, Fim de Século, 2002
Michel
Rio, O Princípio da Incerteza, Lisboa:
Teorema. 1997
Erwin Schroedinger, A Natureza e os Gregos e Ciência e Humanismo, Lisboa: Edições 70,
1989.
Erwin Schroedinger, O que é a vida? Espírito e Matéria, Lisboa: Fragmentos, 1989. Ver
também: idem, Vida, Espírito e Matéria, Lisboa: Europa-América, 1963.
C. P. Snow, As
Duas Culturas, Lisboa: Presença, 1996.
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