segunda-feira, 3 de junho de 2019

CIÊNCIA E TECNOLOGIA EM AGUSTINA BESSA-LUÍS



Meu artigo sobre Agustina Bessa-Luís, que pre-publico aqui em homenagem a ela. Sairá em breve numa revista de Vila Real, uma vez que corresponde á minha intervenção num colóquio sobre Agustina realizada na UTAD - Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, a convite da Prof.ª Isabel Alves: 

Sumário

Motivado pelo uso que Agustina faz como título de uma trilogia romanesca da expressão da Física “Princípio da Incerteza”, procurei em duas antologias, uma de textos publicados e outra de inéditos, de Agustina Bessa-Luís, respectivamente Dicionário Imperfeito e Caderno de Significados, referências à ciência e à tecnologia. Embora não sejam abundantes, elas são aqui apresentadas e sumariamente discutidas. Apesar de considerar a ciência um bem e de se servir de algumas imagens e histórias da ciência, Agustina é crítica do domínio tecnocrática da sociedade.

Introdução
Agustina Bessa-Luís (1922-2019), a prolífica escritora portuguesa que se estreou em 1949 com Mundo Fechado (e que, portanto, completa este ano 70 anos de vida literária), tem sido uma voz centrada na vida dos portugueses, em particular os de Entre Douro e Minho (é natural de Vila Meã, Amarante e viveu no Porto). A vida dos seus personagens inscreve-se na história e na cultura nacionais, que ela conhece como poucos. Como o local é sempre uma parte do global, a sua prosa ficcional (a única que aqui consideramos; embora também tenha prosa biográfica, dramatúrgica, cronística e ensaística) não deixa de reflectir a história e a cultura do mundo, isto é, o mundo de Agustina, o mundo que se pode encapsular na expressão “alma do Norte”, por muito particular que seja, não é de modo nenhum fechado.

Ensaio aqui, e apenas em breve esboço, uma resposta à questão de saber em que medida a cultura científica e tecnológica, que tanta marca a época contemporânea nu mundo e em Portugal, aparece no mundo literário de Agustina Bessa-Luís. A cultura nacional não está historicamente entranhada pela ciência e pela técnica como está em outros países europeus que protagonizaram primeiro a Revolução Científica e depois a Revolução Industrial, pelo que, à partida, não se espera que a cultura científico-técnica seja muito relevante na vida social urdida na ficção de Agustina, que tem a sua principal origem na realidade do Norte do país. De facto, não o é.  ~

E tal acontece apesar de encontrarmos, na lista da sua bibliografia literária, o título “Princípio da Incerteza”, o nome que deu a uma trilogia formada pelos romances Joia de Família (2001), que foi Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores), A Alma dos Ricos (2002) e Os Espaços em Branco (2003), os dois primeiros adaptados ao cinema por Manoel de Oliveira (1908-2015), o realizador do Norte  amigo de Agustina, sob os títulos de, respectivamente, O Princípio da Incerteza (2002) e Espelho Mágico (2005). É sabido que esse título vem da área da Física, mais precisamente do nome de um enunciado apresentado pelo físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976), em 1926, segundo o qual posição e a velocidade de uma partícula quântica são complementares: maior conhecimento da sua posição corresponde ao menor  conhecimento da sua velocidade e, vice-versa, o maior conhecimento da sua velocidade corresponde ao menor conhecimento da sua posição.  Embora se chame princípio, a verdade que esse enunciado pode ser deduzido de princípios mais fundamentais da teoria quântica, sendo, portanto, mais uma lei do que um princípio. E, ao contrário do que normalmente se diz, ele não resulta da perturbação do observador no acto de medir, sendo antes uma fatalidade do estranho mundo quântico. Talvez mais adequado do que incerteza seria o termo “indeterminação”, uma vez que não se pode determinar em simultâneo os valores das duas grandezas físicas, que se dizem por isso complementares.

Essa lei da física quântica, que viola o nosso senso comum pois, para um objecto macroscópico, podemos conhecer ao mesmo tempo posição e velocidade, que deu o título a uma trilogia literária e a um filme não passa de uma metáfora, sendo em vão que se descortina alguma relação com o mundo quântico das partículas nos romances e no filme. Tal apropriação literária de expressões da física está longe de ser inédita. Ela encontra-se noutras obras literárias como, precisamente a mesma expressão, O Princípio da Incerteza (1993) do escritor francês Michel Rio (nascido em 1945) ou a peça de teatro Copenhaga (2000) do dramaturgo inglês Michael Frayn (nascido em 1933). Se a relação com a física quântica é algo difusa em Rio, embora menos do que em Agustina pois ele refere vários físicos, essa relação é, pelo contrário, mais nítida em Copenhaga, peça que em Portugal foi representada no Teatro Aberto em Lisboa em 2003 encenada por João Lourenço e com a participação da actriz Carmen Dolores e dos actores Paulo Pires e Luís Alberto (a primeira coroou com essa actuação a sua longa e bem sucedida carreira). Com efeito, esta peça trata a incerteza tanto na física como nas relações humanas: o contexto é o encontro que teve lugar em Copenhaga em 1941 entre o próprio autor do Princípio da Incerteza e outro físico mais velho, que de certo modo tinha sido seu mestre, o dinamarquês Niels Bohr (1885 – 1962). O encontro real deu-se durante a Segunda Guerra Mundial, sendo o discípulo  o representante do ocupante e o mestre o representante do ocupado. Os dois têm segredos atómicos e da conjugação das suas vontades pode depender o futuro do mundo. Os dois antigos amigos saíram separados. Mas, como em todas as relações humanas, resse desenlace não podia ser previsto: estava indeterminado.

Na trilogia de Agustina há também uma contínua  incerteza a respeito do futuro, tal como há nas sociedades. Sabemos umas coisas e outras não. Há coisas que vamos saber. E há outras que ficam por saber, que talvez nunca venhamos a saber. No mundo, marcado pela incerteza, do romance, por vezes nem sequer é oferecida ao leitor a certeza de um desfecho. É precisamente isso o que acontece na trilogia “O Princípio da Incerteza.” Na história de Joia de Família encontram-se a corrupção, a delinquência e o crime, tal como de resto na vida real moderna. Surge até um incêndio numa casa de alterne do Norte que se assemelha ao que aconteceu realmente em 1997 numa casa desse tipo em Amarante (curiosamente denominada Mea Culpa), um desastre em que morreram treze pessoas. Por seu lado, em A Alma dos Ricos o tema central é o mistério da alma feminina (saliente-se que a mulher ocupa um lugar relevante em toda a ficção de Agustina), uma alma que, num país eivado de vícios, pode ser tão submissa como rebelde e tão religiosa como pagã.  Em Os Espaços em Branco continuam a perpassar alguns tópicos da modernidade lusitana como os centros comerciais, o comércio de droga, a imigração, todos eles epifenómenos de uma sociedade profundamente desigual onde coabitam novos pobres e  novos ricos. Os romances da trilogia são independentes, embora existam personagens que reaparecem. O painel dos três fornece um retrato desalentado da contemporaneidade portuguesa, onde uma sociedade de raiz antiga se encontra sujeita, de um modo muitas vezes desditoso, a novas influências e ocorrências. O tema central é, como sempre na escritora de Vila Meã, a alma humana, do Norte, portuguesa e universal. Agustina escreve em Alma dos Ricos sobre um dos personagens: "Ela tomara um caminho tão solitário como o das estrelas e não havia uma fórmula para o descrever e compreender.” Numa entrevista à jornalista Maria Augusta Silva, a escritora sumariou assim o seu “Princípio da Incerteza”:  “Para mim, o Ser é infinito, tem uma história que se desenvolve, mas sem remate. É uma trilogia tocada pela asa da incerteza.”

Em vez de me deter na complexa e incerta estrutura de a trilogia O Princípio da Incerteza, que só a análise literária poderá aspirar a fazer (ver, por exemplo, Agustina Bessa-Luís: A Paixão da Incerteza, de José Manuel Heleno, publicado pela Fim de Século em 2002) procurando em que medida o título encontra ressonâncias no conteúdo e na forma, limito-me a analisar aqui dois dicionários de citações de Agustina Bessa-Luís procurando influências da ciência e da tecnologia: o Dicionário Imperfeito e o Caderno de Significados.

O corpus é reconhecidamente muito limitado e não dará suficiente conta da riqueza da obra agustiniana. O Dicionário Imperfeito foi publicado em 2008 na Guimarães, integrado na colecção Opera Omnia. Nesse volume, que resulta de uma ideia do marido da escritora, Alberto de Oliveira-Luís (1945-2017), encontram-se ordenados alfabeticamente por assuntos alguns excertos significativos da obra da escritora, formando como que uma antologia temática da obra publicada. Por outro lado, o Caderno de Significados, saído também na Guimarães, mas em 2014, contém, também ordenados por assuntos, um conjunto de escritos soltos e inéditos de Agustina, retirados de notas ou de margens de livros, sendo por isso uma espécie de pensamentos ambulantes. A selecção, organização e fixação de textos foi do referido Alberto de Oliveira-Luís  em colaboração com  Lourença Baldaque (nascida em 1979), a jovem escritora que é neta de Agustina, filha da sua única filha, Mónica Baldaque. 

Escolhi nesses dois volumes algumas passagens que referem a ciência e a tecnologia pois julgo que elas ajudam a perceber melhor onde se situa a escritora perante essas grandes forças modeladoras do mundo moderno.

Literatura e ciência

É óbvio que ciência e literatura são diferentes, pois a primeira pretende descrever o mundo natural e a segunda mundos interiores. Além disso, a ciência lida com o objectivo, ao passo que a segunda lida com o subjectivo. Mas, numa entrada do Caderno de Significados intitulada “A Ciência da Literatura”, datada de 1984 (pp. 15-16), Agustina diz curiosamente que “a literatura é uma ciência”, acrescentando “encíclica”, isto é. que circula:

“A literatura é uma fisionomia interior. Vemos como as mulheres são dispostas a conservar um rosto e não a criar um rosto. A literatura tem que criar o rosto; manifestar nela a marca que está no fundo de todos os seres e que é a inteligência. Por isso digo que a literatura é uma ciência, uma ciência encíclica em que a arte da palavra origina a tão bela cultura externa que os gregos admiraram. Quanto mais a alma humana estiver distribuída por harmoniosos laços de pensamento, vontade e paixões, mais a literatura será obra digna dos homens e das mulheres que a fizerem.”

Agustina fala dos antigos gregos, sentindo com eles uma proximidade que o físico Erwin Schroedinger  (1887- 1961), co-autor da teoria quântica com Heisenberg, já sentiu quando escreveu A Natureza e os gregos (original de 1951) e que todos nós devíamos sentir por sermos seus herdeiros. A palavra “ciência” antes de ganhar o significado que lhe deu a modernidade, associado ao exercício do método científico, significava pura e simplesmente conhecimento, racionalidade do mundo congeminada pelo homem. E se “ciência” vem do latim “scientia”, a palavra grega correspondente é “logos,” que é não só pensamento, mas também “razão” e “palavra”. Nesse sentido antigo de ciência, a literatura é ciência uma vez que é conhecimento. Na obra que nos chegou de Aristóteles encontra-se a Física e está também a Poética. Claro que a ciência moderna tenta separar o pensamento das vontades e paixões, mas a literatura vem-nos justamente lembrar que eles são inseparáveis ou, pelo menos, que não são facilmente separáveis.

Embora sejam diferentes, ciência e literatura podem e devem cruzar-se. É natural que se cruzem, é bom que se cruzem .A literatura apropria-se não só de expressões da ciência (como se viu atrás com o “Princípio da Incerteza”) como de temas científicos, assim como a ciência vai, amiúde, buscar termos e temas à literatura (o nome “quarks” dado a partículas elementares foi retirado pelo físico norte-americano Murray Gell-Mann (1929-1919) ao escritor irlandês James Joyce (1882 – 1941), autor de Finnegans Wake (publicado em 1959; nele está a  frase “three quarks for Mustere Mark…”, sendo quark uma palavra inventada para rimar com Mark).  Num saboroso texto, mais longo e sem data, do mesmo Caderno  (pp. 75-77) sobre os críticos literários, Agustina fala primeiro da electricidade de Benjamin Franklin e depois da retractação de Galileu Galilei, duas das lendas da ciência moderna (itálicos meus):

 “Tenho para mim que os críticos são pessoas que não contemplam as árvores. Pessoas assim andam perto de enlouquecer e sofrem de dores de cabeça permanentes. As árvores, como objectos que atraem e repelem a eletricidade, como bem reparou o bom Benjamin Franklin, estão em condições de servirem de meio curativo a certas moléstias cerebrais que produzem a crítica
A crítica é uma agressividade emparedada em bibliotecas. Já que falamos do bom Benjamin Franklin, digamos o que ele pensava das polémicas, ou, por assim dizer, dos críticos. “As pessoas de juízo – diz ele -, segundo o que pude apreciar, raramente caem no vício de discutir, salvo os advogados, os universitários e os que se criaram em Edimburgo.” O que se segue esta reflexão é um assunto muito interessante que redundou em discussão sobre se serão as mulheres dotadas para o estudo. Dado que Edimburgo, que se chamou a Nova Atenas, não é lugar de fácil acesso aos portugueses para que aí se viciassem no hábito de fazer críticas e de discutir, em suma, restam-nos os advogados e os universitários como adeptos dessa ciência. Eu não me refiro ao espírito de contradição, bem entendido. Esse é um exercício usado pelos poucos povos da diáspora e que tem como objectivo manter o espírito afinado e pronto a socorrer-se de invenções que protejam a sua liberdade. A crítica é outra coisa. O crítico é, provavelmente, alguém, que sem o ter lido, adivinhou o pensamento de Ariosto: ”Há entre nós mágicos e feiticeiras, mas ninguém o pode saber “. O critico julga que é um desses mágicos, laboriosos e úteis na sua integridade e capazes de transformar mercúrio em oiro; capazes de fazer de uma obra resplandecente de erros e suspiros de desistência, algo como um projeto para voar sem hélice nem motor, velas, asas ou ventos vários.
A obra é violável, mas não culpada. Não está sujeita a tribunal, ainda que possa ser ajuizada. Escreve-se sem extraordinária ousadia e sem esperança, porque a vida nos parece insuficiente e a verdade insustentável, não nos seus direitos, mas na sua prática. De resto, entre verdade e fanatismo não cabe a espessura de uma unha. O que nos faz pensar que Galileu foi muitíssimo sábio em moderar o ímpeto das suas afirmações. A terra não é assim tão redonda, nem o sol tão imóvel. A ciência é o menos exacto dos jogos para crianças.”

A última frase mostra bem como a escrita de Agustina é, por vezes, aforística, procurando desconcertar-nos com analogias inesperadas. No Dicionário Imperfeito encontram-se amiúde definições aforísticas de termos do universo da ciência, tais como razão e sabedoria. Vejamos dois em que aparece o feminino, omnipresente na sua obra. Diz a respeito da  razão (p. 147): “A razão é como a mulher honestíssima e sem parentes, que em tudo está falta de auxílio e de liberdade.” E diz a respeito da sabedoria (p. 265): “Seduz mais da que a mulher; até porque mais depressa se atinge a sabedoria do que se encontra uma mulher perfeita.”

Apesar de não aparecer muito na obra de Agustina, a ciência é iniludível. A escritora fala dela como um bem humano, relacionando-o com o progresso, que na sua opinião (e nisso não está seguramente sozinha) deveria ser mais global e menos particular (p. 49):

“Contradição fascinante na sociedade moderna: promovendo-se a repartição dos bens, tanto das nações como dos indivíduos, não se consideram parte integrante desses bens as descobertas da ciência. O campo da investigação científica deveria cair sob a responsabilidade duma cidade universal que legislasse a respeito da força dos bens humanos e a massa total do progresso.”

Encontram-se no mesmo Dicionário alguns exemplos do uso literário de conceitos científicos, como o movimento e o tempo. Sobre o movimento escreve (p. 185): Eu admiro os grandes parados. São pessoas de grande perspicácia. O movimento produz calor, mas não aguça a inteligência.”  E sobre o tempo (pp. 289-290):

 “Não sei se alguma vez escrevi para me opor ao tempo. Não sei se o tenho como adversário e o que ele significa. A importância que nós damos ao tempo está radicada nas nossas tendências destrutivas. Quanto mais a expansão de uma vida é reprimida, parece que o grau da sua tendência aumenta. A noção de tempo aumenta com a decomposição de uma força que, inicialmente, não se dirigia à destruição, mas à expansão da própria vida. Quanto mais plenamente se realiza uma vida, a função destrutiva do tempo tem menos efeito em nós.”

A sua visão de tempo não podia deixar de estar conotada com os conceitos de entropia e de neguentropia (respectivamente, desordem e ordem, estando o aumento da primeiro  ligado, pela Segunda Lei da Termodinâmica, à evolução de sistemas isolados e a segunda associada ao fenómeno da vida, que só pode funcionar em sistemas abertos). Schroedinger tratou o fenómeno da vida no seu livro Que é a Vida (original de 1943), onde propôs de forma pioneira que as bases materiais da hereditariedade deviam assentar no mundo físico-químico das moléculas. Sabemos hoje, graças à moderna genética, que isso é verdade. Devo lembrar neste contexto que a Segunda Lei da Termodinâmica  foi referida pelo químico e escritor inglês Charles P. Snow (1905-1980) em 1959, quando proferiu em Cambridge a sua famosa conferência sobre As Duas Culturas (original saído no mesmo ano de 1959), que deu origem a um acalorado debate. Snow disse aí que desconhecer a Segunda Lei era equivalente a desconhecer Shakespeare, transmitindo a ideia de que tanto se era analfabeto por ignorar a ciência como por se ignorar a literatura.

Continuando o “passeio” sobre as referências de Agustina a temas de ciência, veja-se o que ela diz sobre a água, na entrada sobre “Mar” (pp. 176-177), que hoje já não é o elemento fundamental dos gregos, mas sim uma substância química, que é indispensável à vida tal como a conhecemos. Agustina parte do Genesis para terminar numa referência pessoal que surpreende por terminar num tom científico:

 “Depois a origem histórica do mar não me parece real, porque apartar a terra das águas nunca foi obra acabada; há ainda lugares pantanosos em que a separação não se fez, e há areias movediças e tundras, que já vi no cinema. A água brota e corre de toda a parte, o que dá a ideia de que a terra está embebida, encharcada, empapada em água. Então a separação não foi realizada e nós próprios somos feitos de água na maioria dos casos. Que eu não; a água não me afecta, não tenho de todo uma natureza linfática; está comprovado por análise de laboratório, perfeitamente idónea.”

Sobre o evolucionismo (p. 102), que entre nós no século XIX foi talvez mais recebido com mais entusiasmo  nos círculos literários (a geração de 70, onde pontificavam Antero de Quental e Eça de Queiroz) do que nos círculos científicos, não consegue esconder o seu espanto, perante os caprichos do acaso conjugada com a adaptação ao ambiente:

“A Natureza é desassossegada. Desta vez é uma lauta informação que nos afirma que a baleia era um mamífero dos lodaçais do Nilo, talvez um dos famosos cães caçadores de peixe, que ladram e bebem ao mesmo tempo das águas sombrias. Nesse caso, a metamorfose não deu azo a melhoramento algum; não se pode dizer que a baleia de bossas se parece a uma borboleta.
Mas porque se mudam os cães do Nilo em baleias cinzentas? A natureza não tem espírito prático; tem só uma função económica de ajustador de contas com o acaso. Se o meio ambiente é piscícola, então renuncia-se à zona pélvica e crescem barbatanas em vez de pés. Dá-me que pensar se o homem criou alma porque não se adapta. Se não é uma criatura rebelde ao mando do ambiente e, portanto. uma criatura falhada.”

Muito nítido em Agustina, como não podia deixar de ser, por se tratar de um tema muito comum na literatura contemporânea, é a crítica do domínio da técnica na sociedade actual. Segundo ela, o império da máquina coloca em perigo  a criatividade (pp. 62-63):

“Parece-me que com o crescente domínio da técnica, com os fáceis recursos do turismo intelectual, desaparece o tipo criador, mais próximo do lunático do que do grande organizador de fachadas culturais; mais perto da renúncia do que da glória missionária.”

Não poderíamos esperar que Agustina distinguisse ciência da técnica, pois as duas estão intimamente associadas na perspectiva do público comum. Mas talvez pudéssemos esperar que ela reconhecesse criatividade na ciência. Se as artes, em particular a literatura, exigem imaginação, o cientista tem também de ser imaginativo uma vez que ele mais não faz do que buscar a extraordinária “imaginação da Natureza”.

Sob o título “Tecnocracia” (p. 287) encontra-se esta descrição agustiniana desse fenómeno, que é uma crítica acesa, onde surge o caso português (entre nós a técnica veio abruptamente alterar velhos hábitos):

“Dissipação colectiva e social, a nível muitas vezes gigantesco e que se propaga de inúmeras maneiras: desde a febre modernizador de mobiliário e figurino técnico até ao empreendimento de obras inúteis, quase sempre registadas como obras artísticas. Um pais de clima moderado como o nosso começa a julgar-se humilhado se não possui aquecimento central e climatização. A experiência pessoal da realidade está em causa porque o primitivismo das aspirações impede que o homem crie o encontro da pessoa com o seu próprio mistério. Todas as religiões tinham em si um conteúdo grosseiro que era o de pôr a divindade à disposição do individuo ou da colectividade. Há hoje uma forma de religião nesta tendência pré-lógica e primitiva, de pôr o culto da técnica acima da moral social. Por outras palavras, o selvagem atualiza-se, mas não se emenda.
Não se pode imaginar uma senhora Thatcher em Portugal: aquele carácter persistente de quem contempla o país como um bom assado que é preciso vigiar como um imperativo da vida quotidiana, não existe nos Portugueses. Não somos assíduos no termóstato, a margem de erro é-nos bastante indiferente. O sequestro do pensamento, que existe em toda a convicção firme, aborrece-nos de morte. Digam o que disserem, a era dos tecnocratas vai passar quase despercebida; preferimos, qualquer que seja o grau de cultura, a linguagem liberta em que se constrói o dia-a-dia””

Agustina critica claramente o desperdício na sociedade técnica, uma sociedade da abundância (p. 78):

“Uma tentação imediata do nosso tempo é o desperdício. Não é só o resultado duma invenção constante da oferta que leva ao apetite do consumo, como é, sobretudo, uma forma de aristocracia técnica. O tecnocrata, novo aristocrata da inteligência artificial, dos números e dos computadores, propõe uma sociedade de dissipação. Propõe-na na medida em que favorece os métodos de maior rendimento e a rapina dos recursos naturais. As hormonas que fazem crescer uma vitela em três meses, as árvores que dão fruto três vezes por ano, tudo obriga a natureza a render mais. Para quê? Para que os alimentos se amontoem nas lixeiras e os desperdícios de cozinha ou de vestuário sirvam afinal para descrever o bluff da produtividade.”

Finalmente, as ameaças à humanidade colocadas pela ciência e da técnica, não poderiam deixar de ser referidas pela escritora. Com o conhecimento mais profundo da Natureza abrimos a possibilidade de libertar forças naturais contidas até então. Sobre o grande poder de destruição da ciência e tecnologia, bem representado pela bomba de Hiroshima  (p. 133) escreve Agustina, que tinha 23 anos em 1945, quando esse evento catastrófico, seguido pelo de Nagasaki, colocou termo à Segunda Guerra Mundial :
“Eu senti que se começava um mundo diferente, que aquilo marcava realmente uma nova etapa. Eu não sabia dizer como, mas foi perfeitamente um sentimento de angústia imensa que eu tive nessa altura. Não pensando sequer nas circunstâncias, porquê nós não tínhamos acesso a esse acontecimento como um espectáculo. Hoje é uma coisa que se faz muito; é o acontecimento dramático como um espetáculo, e é uma forma de o banalizar. Foi um acontecimento como facto histórico, como facto de um poder que se tinha agigantado de uma maneira tão desmedida que me deu a impressão de que, com toda a minha capacidade e apetite e vontade de intervenção quase, digamos, mágica, como na juventude se pode entender o que é a nossa intervenção no mundo, que ficava em causa. Havia toda essa força brutal que punha em causa toda a categoria do espírito. Essa foi as maiores emoções da minha vida.”

O caso português

Agustina interessa-se sobremaneira pelo “caso português”, isto é, com a nossa realidade, como já atrás foi mencionado. Fala com ironia fina da familiaridade do português com o mistério, quer dizer, a nossa falta de familiaridade com a ciência, que continuamente  se esforça por dissipar o mistério:

“O português sente-se à vontade com o que não entende; na realidade está sempre mais perto do nomear os mitos do que os meteorologistas ou o presidente da câmara. Se as tempestades destruíam as colheitas e as vacas abortavam, era certo que havia culpado na aldeia geral. Em geral uma pessoa de mau parecer, coxa ou enfezada e que enriquecera depressa. Era expulso da terra e tudo voltava à normalidade. A sociedade não admite incoerências.”

Duvida que os portugueses sejam atreitos aos segredos que associa à investigação (pp. 271-272):

“Nasce-se investigador como se nasce para a astronomia: é o gosto da dedução que faz o cientista, antes de o estudo fazer o perito. Alguém que tem um segredo profundo torna-se automaticamente interessado nos segredos dos outros. Eu penso se realmente os Portugueses sabem cultivar o segredo e fazer dele a impureza necessária ao desejo de clarificação.
(…) Afinal ninguém sabe bem o que é o mundo e como surgiu; nem o que é a sida, o cancro ou uma simples constipação. Mas todos se comportam como grandes confidentes do segredo em que vivemos e convivemos.”

Em suma, os portugueses têm as suas particularidades.

Conclusões

Agustina Bessa-Luís é sobretudo uma escritora das relações humanas, profundamente conhecedora da realidade histórica e cultural portuguesa. Lendo as suas obras pode-se conhecer melhor como é Portugal e os portugueses, em particular o Norte onde surgiu Portugal. Embora o país só a espaços, como no tempo dos Descobrimentos, tenha sido cientificamente criativo, o facto é que sempre cá existiu ciência, quanto mais não fosse a ciência que era importada sob a forma de conhecimento e que era transmitida em escolas de vários níveis ou, a partir do século XIX, a plétora de aplicações técnicas disponibilizadas no mercado. Nos tempos contemporâneos a presença da ciência avolumou-se no mundo e, sobretudo após o 25 de Abril de 1974, em Portugal, em resultado de uma convergência de Portugal com a União Europeia e o resto do mundo mais desenvolvido. É, por isso, natural que na literatura de Agustina, como na de outros autores nacionais seus contemporâneos, se encontrem ecos da ciência e da técnica. Se por vezes ela se manifesta só no uso de termos da ciência como metáforas de belo efeito, como “O Princípio da Incerteza,” que alude a um anunciado da física quântica que é mais exacto do que muitas referências a ele de carácter impressionista levam a crer, noutras vezes encontram-se pontes com a ciência em textos que são eminentemente literários, por serem imaginativos e estarem repletos de belas figuras de estilos.

Na prosa de Agustina que se encontra concatenada no Dicionário Imperfeito e no Caderno de Significados, encontram-se diversas referências à ciência e à tecnologia. Deposita esperança na primeira, que é um bem que deve ser partilhado pela humanidade, e desconfiança na segunda, que é potenciadora de males, apesar de a distinção não ficar nitidamente estabelecida. Numa sociedade bastante tradicional como a portuguesa a invasão da ciência e da técnica suscita naturais inquietações.

Bibliografia

Agustina Bessa-Luís, Dicionário Imperfeito, selecção e organização de Manuel Vieira da Cruz e Luís Abel Ferreira, Lisboa: Guimarães, 2008.
Agustina, Caderno de Significados, selecção e organização e fixação de texto de Alberto Luís e Lourença Baldaque,  2013.
Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza, constituído por  Jóia de Família, Lisboa: Guimarães, 2001, A Alma dos Ricos, Ibidem, 2002 e Espaços em Branco, Ibidem, 2005.
Agustina Bessa-Luís, Entrevistada por Maria Augusta Silva, http://www.casaldasletras.com/Textos/AGUSTINA%20BESSA%20LUIS.pdf
Robert Crease, “Too confidente about uncertainty”, Physics World, Dez 2001, p. 18 http://www.robertpcrease.com/wp-content/upload/2012/06/Too-Confident-About-Uncertainty.pdf
Carlos Fiolhais, “O Princípio da Incerteza”, In O Primeiro de Janeiro, 2003
Michael Frayn, Copenhagen, London: Anchor, 2000.
José Manuel Heleno, Agustina Bessa-Luís: A Paixão da Incerteza, Lisboa, Fim de Século, 2002
Michel Rio, O Princípio da Incerteza, Lisboa: Teorema. 1997
Erwin Schroedinger, A Natureza e os Gregos e Ciência e Humanismo, Lisboa: Edições 70, 1989.
Erwin Schroedinger, O que é a vida? Espírito e Matéria, Lisboa: Fragmentos, 1989. Ver também: idem, Vida, Espírito e Matéria, Lisboa: Europa-América, 1963.
C. P. Snow, As Duas Culturas, Lisboa: Presença, 1996.

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