"Conto-vos esta porque, embora a desigualdade de género penda muito para os homens, há casos ao contrário.
- Ah, sim?
- É verdade. Aqui há tempos fui comprar tecido para mandar forrar o meu velho casaco de cabedal, que estava precisado. Era para ter ido com minha mulher, dias antes, mas não pudemos, já não sei porquê. Assim que tive oportunidade meti-me na Baixinha a caminho da Tecidos para tudo.
Estava cheia de mulheres, como é costume. Suponho que já disse, noutra ocasião, que me seduzem as lojas onde se sente o cheiro de lã e da sarja, e onde se pode passar os dedos pela textura dos tecidos. Acho graça àquelas paredes acolchoadas de peças, e às cores descendo e subindo pelas prateleiras; chego a gostar dos desorganizados rolos, nos cantos, sempre `espera de desarrumação.
É uma loja enorme, com grandes mesas distribuídas pelo armazém, onde os empregados desembaraçam peças com a agilidade de macacos no galho, para, em seguida, as dobrarem num alisar cuidadoso de paramentos da igreja.
Em volta duma dessas mesas havia mulheres, umas perto, a ser atendidas,outras um pouco afastadas, à espera. Mas o empregado ia falando tanto com as próximas como com as mais afastadas. Deve ter na cabeça vários géneros de conversa, conforme as clientes, pensei eu, pois as que esperavam iam-lhe respondendo,ou comentando com as de mais longe, que, como iam entrando e saindo dos diálogos. não davam pelo tempo. Que método eficaz de as entreter, pensei."
A transcrição acima é o início de um conto intitulado "Igualdade de género", constante no mais recente livro de João Boavida: A Eterna Brevidade (pp. 167-168). A capa é de Ana Boavida e a edição da "Trinta por uma linha".
Os contos, que o compõem, oferecidos aos amigos nos três últimos Natais, noutros tantos belíssimos volumes de dimensões (físicas) reduzidas, com concepção gráfica também de Ana Boavida, são, além do mencionado, os seguintes:
"O comboio da madrugada"; "A cantareira"; "A mesa"; "O riso"; "Cebolas"; "Os patos roubados"; "O chapéu de cortesias"; "O destino"; "Saias para que vos quero?"; "O leitor compulsivo"; "Cor resistente"; "Acidentes de trabalho"; "Difícil é ouvir"; "Senhora de Lurdes me valha"; "Sofia"; "As meninas Tavares"; "Correio sentimental"; "Agonia; "Oh, que disparate!"; "O Elétrico; "Noite de Natal".
Em todos, o leitor encontra a simplicidade elaborada da grande escrita, o significado profundo dos pequenos gestos, a seriedade simpática da ironia.
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