quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Prefácio ao livro "A utilidade dos saberes inúteis"

Meu prefácio ao livro A utilidade dos saberes inúteis, recentemente publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, com textos de Nuccio Ordine e de Regina Gouveia.


“A escolaridade é de amnésia planificada”. 
George Steiner, 2005. 

 “Quanto mais soubermos sobre uma coisa, mais podemos voar”. 
Daniel Barenboim, 2009. 

 Aldous Huxley, no seu Admirável mundo novo, publicado em 1932, criou um diálogo entre alguém que “emocionado por se encontrar em frente de um homem que tinha lido Shakespeare”, perguntou: “Mas por que está ele proibido?” A resposta foi: “Porque é velho, eis a razão principal (…). O mundo é estável agora. As pessoas são felizes (…). Sentem-se bem, estão em segurança (…). É preciso escolher entre a felicidade e o que outrora se chamava a grande arte.”  
Este breve recorte de um livro que não perdeu actualidade sugere a objecção já antiga – que, por vezes, se aproxima de proibição – de se integrar na educação escolar o conhecimento tendencialmente universal, erudito e abstracto, o conhecimento que a humanidade tem construído e que dá forma à civilização, ou seja, o conhecimento que vale por si mesmo e que, por acréscimo, pode ter um valor cognitivo. 
Nesta modernidade, que o sociólogo Zygmunt Bauman qualificou como “líquida”, tal objecção ganha novo fôlego. De facto, estando a atenção focalizada no “eu” e no seu contexto, marcado pela volatilidade e insegurança, prevalecem os significados singulares, a procura de um bem-estar subjectivo, de uma satisfação imediata que não passa de superficial. 
Em vez de contrariar esta tendência, que põe em causa o próprio sentido do que é, na tradição ocidental, ser-se educado, as reformas curriculares em curso e os discursos que as acompanham deixam perceber uma sobrevalorização do conhecimento situado, concreto e instrumental, de ordem pragmática, que serve, no momento, para resolver problemas sociais e pessoais.  Preparar seres individuais e individualistas, eventualmente integrados em grupos fechados nas suas identidades, que Karl Popper descreveu como prisões, empreendedores de si mesmos, competentes e competitivos num mercado de trabalho incerto, em simultâneo, vendo-se auto-realizados e comportando-se dentro dos limites do ordeiro é, na verdade, a meta dessas reformas. 
Acontece que nos discursos de muitos políticos, académicos, agentes e entidades da mais variada natureza que, à força de pressionarem os sistemas educativos, têm conseguido neles um lugar de destaque, essa meta, manifestamente distante do humanismo, é apresentada como a encarnação do humanismo autêntico. “Educação humanista”, “perfil de base humanista”, “condição humana” tornaram-se slogans recorrentes nos mencionados discursos, isto quando, de modo contraditório, o seu conteúdo aponta para a construção de uma “humanidade sem humanidades”. 
A expressão, originalmente em forma de interrogação, é do filósofo Fernando Savater num alerta para o perigo de a história, a filosofia, a literatura ou a cultura clássica desaparecerem da escola e, de seguida – pela extensão e complexidade do conhecimento que reúnem –, da nossa cultura. Neste rol podem-se incluir as línguas, bem como as artes e acrescentar as vertentes das ciências e da matemática a que não se veja rentabilidade ou aplicação tecnológica. 
O que fica, então, no currículo que os estados proporcionam às novas gerações de modo a cumprirem o direito à educação consagrado no artigo 26.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos? Fica o “essencial”, que, não esqueçamos, tem de ser funcional e, em crescendo, “politicamente correcto”. Resulta uma tríade constituída por matemática, duas línguas e algumas ciências, trespassada por uma componente de cidadania, que está longe de o ser. Eis o “núcleo curricular” propagado como ideal do século XXI, mitigado pela equívoca ideia de que o aluno é activo, capaz de construir o seu próprio conhecimento se tiver oportunidade de desenvolver projectos com pertinência no quotidiano, em ambientes agradáveis, nos quais prevalecem as metodologias lúdicas, tudo podendo descobrir através de pesquisas, com recurso às tecnologias da informação e da comunicação. 
O acima dito traz à lembrança a afirmação: “humanidades e ciências é tudo a mesma coisa”, feita pelo homem de ciência e de poesia que foi Rómulo de Carvalho/António Gedeão. Queria ele dizer que tudo aquilo que arrolamos em duas categorias muito latas decorre do esforço feito pela humanidade para procurar entender a existência humana e torná-la mais consentânea com os seus desígnios, sendo, portanto, indissociáveis. Fazer amputações nessa unidade, desvirtuá-la sob um qualquer pretexto é trair a própria humanidade, provocar o esquecimento da sua marcha, retirar sentido ao presente e empenhar o futuro. 
Os dois textos que constituem este livro e que traduzem o essencial do que foi dito na conferência com o título A utilidade dos saberes inúteis esclarecem, de uma maneira tão clara quanto bela, isso mesmo. 
O primeiro texto – A utilidade dos saberes inúteis – foi escrito por Nuccio Ordine, que, nestas páginas, retoma diversas ideias apresentadas na obra A utilidade do inútil. Manifesto, com amplo acolhimento em diversos países europeus. Aqui o filósofo e professor italiano retoma, com vivacidade, a discussão sobre as finalidades últimas da educação escolar, a qual tem sido arredada do nosso horizonte, dando-se por adquirido que deve servir para alguma coisa que contribua ou venha a contribuir a curto prazo para o lucro material. 
A sua explicação desvia-se do que se encontra fortemente consignado em orientações internacionais e decisões nacionais. Isto porque essa educação tem de ser altruísta e pugnar pelo que é o bem e está certo, tendo em mira, como tão bem salienta João Boavida, a liberdade; não pode continuar a dar expressão a interesses particulares. 
Além disso, a escola não é uma empresa, produzir capital humano não é a sua função e os alunos são alunos, não clientes. Tal como George Steiner, mostra-se preocupado com o progressivo e concertado apagamento que esta organização faz da memória colectiva, “até à total amnésia”, o que acabará por diluir as nossas origens e alterar a consciência do “nós” e do “eu”. 
Nota, por fim, que a educação está comprometida com a dignificação da pessoa e com os direitos que a concretizam, depositando uma réstia de esperança nos professores, que fazem “pequenos milagres” com as crianças e jovens. No “processo virtuoso” que é o ensino, sai enriquecido quem recebe o conhecimento e quem o faculta. 
O segundo texto – Partindo da magia do arco-íris… – foi escrito por Regina Gouveia, professora com uma longa carreira, que corresponde a esse retrato. O seu modo de fazer “milagres” deve-se, em grande medida, à ligação que consegue estabelecer entre a arte – com destaque para a literatura, sobretudo a poesia, tanto de outros como a sua – com a física e a química. Ensinar estas disciplinas, infere-se das suas palavras, está longe de ser um trabalho estritamente assente na técnica, como nota Michael Young, requerendo, em paralelo, um raciocínio filosófico, uma base histórica, uma perspicácia social, uma responsabilidade antropológica, uma sensibilidade estética, uma reflexão ética, uma atenção pedagógica. 
O conhecimento a aprender ganha, nas linhas que escreveu, a tonalidade que Ordine antes explica: nelas é possível encontrar um nobre, global e estruturante entendimento da cultura e do seu valor, que a escola tem especial obrigação de transmitir a todos os alunos, concretizando-a nas diversas áreas do saber que estão adstritas a esta instituição. Assim se reconhece e se pugna pela igualdade, que, num enquadramento democrático, não nega a existência de especificidades, a que também, como é compreensível, deve atender. 
Gouveia, fazendo sobressair a aventura da ciência, revela, a par, os “valores humanistas” que a devem guiar, o mesmo dizendo em relação à tecnologia, realçando a possibilidade de se levar os alunos a reconhecer e interiorizar esses valores. 
Diria, em suma, que a leitura conjugada de ambos os textos permite aprofundar a reveladora frase do maestro Daniel Barenboim que faz a entrada desta breve nota prefacial – “Quanto mais soubermos sobre uma coisa, mais podemos voar” – como procura de consciencialização e de superação do que George Steiner, professor e pensador não convencional da educação, numa não menos reveladora frase – “A escolaridade é de amnésia planificada” –, denuncia. 
Coimbra, Setembro de 2017
Maria Helena Damião da Silva 
Referências - Barenboim, D. (2009). Está tudo ligado: o poder da música. Lisboa: Bizâncio. 
- Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar.  
- Boavida, J. J. (2009). El deber de educar como condición de libertad. In J. A. Ibáñez-Martín (Coord.). Educación, conocimiento y justicia (pp.129-144). Madrid: Editorial Dykinson. 
- Carvalho, R. (1996). Humanidades e ciências é tudo a mesma coisa. Público, 24 de Novembro, pp. 2-4. 
- Huxley, A. (2001). Admirável mundo novo. Lisboa: Livros do Brasil. 
- Ordine, N. (2016). A utilidade do inútil. Manifesto. Matosinhos: Faktoria K. 
- Popper, K. (1999). O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Lisboa: Edições 70.  
- Savater, F. (2006). O valor de educar. Lisboa: Dom Quixote.  
- Steiner, G. & Ladjali, C. (2005). Elogio da transmissão: o professor e o aluno. Lisboa: Dom Quixote.  
- Young, M. (2014). (Entrevista de C.V.A Galian & P.B.J. Louzano). Michael Young e o campo do currículo: da ênfase no “conhecimento dos poderosos” à defesa do “conhecimento poderoso”. Educação e Pesquisa, vol. 40, n.º 4, pp. 1109-1124.

2 comentários:

Anónimo disse...

Num tempo tenebroso de ataque sub-reptício, mas letal, aos conhecimentos fundamentais transmitidos pelas escolas, Nuccio Ordine, Regina Gouveia e Helena Damião são três fachos ardentes de luz que abrem caminhos de esperança para uma nova educação, onde o deslumbramento, a curiosidade e o conhecimento voltam a sentir-se em casa!
Estas últimas reformas educativas, com uma ânsia incompreensível de querer fazer de todos os cidadãos doutores, no mais curto intervalo de tempo, são contraproducentes. Quanto menos alguém sabe e aprende na escola, menores são as suas possibilidades de vir a ser um verdadeiro doutor, porque ensinar o que não se aprendeu é uma farsa.
Não podemos nem devemos ser todos doutores. A igualdade de oportunidades é uma coisa, querer massificar o ensino até ao nível universitário é uma estupidez!

João Silva

Carlos Ricardo Soares disse...

Dou os meus parabéns, pela excelência do prefácio.
E quanto à utilidade dos saberes inúteis, bem, é preciso recuar a um ponto em que os "vícios" da cultura ainda estavam em fase de entranhamento.
Nunca me preocupei com a utilidade, até ao momento em que entrei para a escola e queria que a professora, a madrinha, o meu pai, a minha mãe, o senhor padre, etc..., gostassem de mim.
Nesses tempos, que já lá vão, tudo, para mim, era útil ou inútil, consoante o jeito que desse, naquela espécie de jogo de quimeras e de vaidades (verdades) infantis, não obstante, extremamente relevantes.
Era o jogo da cultura (da vida), mas depressa me apercebi de que era um jogo viciado. O incitamento para aprender (cultura), ou fazer (produzir) cultura era desproporcionado aos desejos e às necessidades.
A cultura como meio de atingir objetivos, aos poucos, mostrava dois gumes, e o valor da cultura, tinha uma espécie de preço, pessoal e social, como outra coisa qualquer.
Também tive a minha fase "humilde" de servir a cultura como um pedreiro constrói uma fortaleza, ou um engenheiro fabrica uma bomba, ou um médico trata um doente, ou um poeta morre de tristeza por tudo isso.
Mas a cultura é um produto/efeito do homem, produto esse que, por sua vez, produz/induz/condiciona o homem.
Então, o problema de existir uma cultura boa e de existir uma cultura má torna-se cultural por excelência.
Afinal, é a cultura científica, tecnológica, das construções, das engenharias e das urbanizações, dos transportes e das energias, dos químicos e das fusões nucleares, das máquinas de guerra e das religiões, das organizações financeiras e industriais, do espetáculo e do desporto, da medicina e da saúde, tudo da máxima utilidade, que está a dar cabo de nós, perdão, do nosso planeta.
Que saudades do tempo em que os portugueses davam a volta ao mundo despoluído, levados pelo vento, talvez acreditando na utilidade do estrume!
Em duzentos anos a cultura mudou tudo. Acreditemos que, nos próximos, também.

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