Com a devida vénia republicamos o artigo de Jorge Buescu saído recentemente na revista Brotéria:
Brotéria 185 (2017) 255-275
A situação actual
Os progressos no ensino da Matemática em Portugal nas duas últimas
décadas foram notáveis. Praticamente todos os indicadores
quantitativos disponíveis atestam esta evolução. Por exemplo, as
taxas de retenção têm diminuído consistentemente, atingindo no
ano lectivo de 2014/15 (último existente) mínimos históricos. Entre
2011/12 e 2014/15 as retenções baixaram nos anos de final de ciclo,
caindo de 4,6% para 2,2% no 4º ano de escolaridade; de 12,7% para
8,6% no 6º ano; e de 16,7% para 10,6% no 9º ano. Trata-se de um
progresso absolutamente notável, que deve continuar, e do qual
toda a comunidade educativa se deve orgulhar.
Nenhum destes progressos se realizou à custa de comprometer
a exigência académica, muito pelo contrário. Aquilo que os estudos
internacionais PISA[1] e TIMSS [2] mostram é exactamente o oposto: esta evolução fez-se aumentando a qualidade do sistema educativo
e os respectivos resultados. Os resultados do PISA revelam que,
entre 2000 e 2015, o desempenho dos estudantes portugueses de
15 anos cresceu sustentadamente, de 454 para 497 pontos – um
feito histórico, que coloca Portugal pela primeira vez acima do
nível médio da OCDE. No estudo TIMSS (Trends in International
Mathematics and Science Studies), relativo a alunos do 4º ano de
escolaridade, Portugal passou de um nível medíocre em 1995 (442
pontos) para um nível bom em 2015 (541 pontos). É o maior progresso
ocorrido na história do TIMSS, que nos coloca muito acima
da média dos países participantes, à frente da grande maioria dos
nossos parceiros europeus e, em particular, da sempre evocada
Finlândia.
São resultados extraordinários. E embora pouco divulgados ou
valorizados internamente, fizeram já de Portugal um caso de estudo
na comunidade internacional. Devemos ter orgulho neles, tanto ou
mais quanto o que sentimos pelas nossas conquistas no plano futebolístico
ou musical.
Este grande sucesso tem sido construído de forma gradual e
sustentada ao longo dos últimos 15 anos. Com efeito, as razões que
o explicam devem procurar-se nas políticas educativas seguidas
neste período. E não é difícil encontrar um fio condutor. De uma
forma ou de outra, os governos que desde o início do século XXI
se sucederam foram consequentes e consistentes no aumento da
exigência no ensino, do rigor na avaliação e da transparência do
sistema. Três pilares foram, para tanto, essenciais.
Em primeiro lugar, os exames nacionais. Em 2000 o único
exame existente era o de 12º ano, que servia, como hoje ainda serve,
como base do acesso ao ensino superior. Em consequência, não
existiam quaisquer pontos de controlo ao longo do percurso escolar,
e as assimetrias e bolsas de fragilidade do sistema não eram sequer
257
detectadas, o que conduzia à desarticulação interna do sistema. Foi
por acção sucessiva dos ministros David Justino, Maria do Carmo
Seabra e Maria de Lurdes Rodrigues que foi instituído em 2005 o
exame nacional de 9º ano, e pela de Nuno Crato que em 2012-13
foram criados os exames nacionais de 4º e 6º anos de escolaridade.
Em segundo lugar, os documentos curriculares. A Matemática
é uma ciência extremamente estruturada, em que para adquirir
conhecimentos a um dado nível é necessário fazer intervir, cumulativamente,
todos os dos níveis anteriores. Para dar um exemplo
concreto, se no 12º ano queremos calcular extremos de funções, é
indispensável saber determinar raízes de polinómios; para o fazer
há que dominar técnicas de factorização de polinómios, que são do
nível de 10º ano; estas convocam os chamados casos notáveis (8º
ano de escolaridade) e a divisão de polinómios, para cujo algoritmo
se tem de dominar o algoritmo de divisão de números inteiros
(1º ciclo do ensino Básico). Em mais de uma ocasião, ao longo da
minha experiência profissional de três décadas, deparei-me com
alunos que, no primeiro ano da Universidade, não conseguiam
resolver problemas de primitivação de fracções racionais porque
desconheciam o algoritmo de divisão de inteiros.
É essencial para o sucesso do ensino da Matemática que
estas características e dependência entre níveis de aprendizagem
estejam presentes nos programas e documentos curriculares
através de uma articulação sem falhas. Ora no virar do milénio os
documentos curriculares vigentes em Portugal eram extremamente
vagos e deficientes. A entrada em vigor, a partir de 2012, de novas
Metas e Programas para o Básico e Secundário, mais modernos,
com conteúdos mais bem estruturados, com objectivos e metas
bem definidos ano-a-ano e de acordo com as melhores práticas
internacionais representou um importante progresso pedagógico,
hoje bem visível quer na diminuição das retenções quer nas
258
melhorias das classificações internas, de provas externas e exames
nacionais, e de avaliações internacionais como o PISA e TIMSS.
Em terceiro lugar, a certificação de manuais escolares. Até
2007 não havia qualquer procedimento para validação científica
de manuais: em consequência, vigorava no sector uma versão
selvagem da lei de mercado. Os nossos jovens estudavam por
manuais literalmente crivados de erros científicos; com frequência
eram adoptados nalgumas escolas manuais muito deficientes. A
ministra Maria de Lurdes Rodrigues impôs, em 2007, a obtenção
de um selo de qualidade (certificação por uma entidade cientificamente
idónea, como a Sociedade Portuguesa de Matemática ou a
Faculdade de Ciências de Lisboa, para referir apenas duas) como
exigência para publicação.
Retrospectivamente, não surpreende pois o extraordinário progresso
que o ensino da Matemática registou nas últimas duas décadas
em Portugal. Durante esse período, o sistema educativo colocou
os alunos a aprender mais, com programas mais estruturados e
com objectivos bem definidos; a estudar melhor, proporcionando-
-lhes materiais pedagógicos e manuais escolares obrigatoriamente
certificados do ponto de vista científico; e a prestar provas da sua
efectiva aprendizagem no final de cada ciclo, por meio dos exames
nacionais. Não há aqui milagres nem mistérios: a receita aplicada
foi, em síntese, de uma forma no-nonsense, colocar os alunos a
aprender mais, a estudar melhor, e a demonstrar a sua aprendizagem.
Em consequência os resultados corresponderam. Muito.
O que estes brilhantes resultados evidenciaram é que este
combate consistente ao facilitismo, à falta de rigor e à falta de
transparência do sistema – verdadeiro “back to basics” no ensino
da Matemática – é uma trajectória que urge prosseguir e aprofundar.
Todo este notável progresso é muito recente e, por outro lado,
muito frágil. Exemplo disso são as grandes assimetrias regionais: identificadas, quer através dos exames nacionais quer através dos
estudos internacionais, constituem bolsas territoriais de mediocridade
do sistema educativo, sem surpresa coincidentes com regiões
socio-economicamente deprimidas.
O assalto à Educação
Estranhamente, é neste contexto de resultados muito positivos e
consistentes que surgem opções políticas que, de forma voluntarista
e sem qualquer justificação pedagógica ou científica, têm vindo a
desmantelar, a partir de 2015, grande parte do sistema que levou
duas décadas a colocar em funcionamento.
Tudo começou com a eliminação, no final de 2015, das provas
nacionais de final de 1º e 2º ciclo, nos 4º e 6º anos de escolaridade,
substituídas por “provas de aferição” completamente inconsequentes
no 2º, 5º e 8º anos. O que em primeiro lugar choca nesta decisão
é a absoluta leviandade com que foi tomada, porquanto não se regeu
por critérios pedagógicos ou académicos, sendo sem mais imposta
por pura opção ideológica, e como moeda de transacção política, ao
Ministério da Educação. Ficou assim o País privado de uma importante
ferramenta de diagnóstico individual, para os alunos, e colectivo,
para as Escolas e para as disciplinas. Foram interrompidas as
séries de dados que permitiam monitorizar o comportamento do
sistema de ensino a estes níveis. Tal como se temia, a prática de dois
anos das referidas provas de aferição revelou-as completamente
inconsequentes: para lá de não terem qualquer impacto na avaliação,
sendo naturalmente desvalorizadas por alunos e professores, a
circunstância de, ano para ano, variarem as matérias a avaliar (ora
Matemática e Português, ora Educação Física e Estudo do Meio…)
inviabiliza o acompanhar da evolução de alunos, de disciplinas, de
260
Escolas – e torna impossível comparar os resultados de um ano com
os de outro.
Tal como existem, as actuais provas de aferição são disfuncionais
e inúteis, pelo que poderiam ser eliminadas sem qualquer
consequência. A sua existência é meramente ornamental: servem
apenas para tentar disfarçar o facto de os responsáveis pelo sistema
educativo, abdicando da recolha de dados objectivos, fiáveis e comparáveis
permitida pelas provas de final de ciclo, terem optado de
forma deliberada pela falta de transparência.
Também no capítulo dos manuais escolares o actual Governo
realizou um preocupante retrocesso. Contrariando o disposto nos
Decretos-Lei n.º 261/2007, de 17-7, e n.º 5/2014, de 14-1, foi abandonando,
a partir de 2016, o processo da respectiva certificação.
No caso da Matemática a situação é extraordinariamente grave: em
2017/2018 entrou em vigor um novo programa de 12º ano, mais
moderno e exigente, não tendo os manuais correspondentes sido
sujeitos ao processo de certificação e não tendo o selo de qualidade
exigido por lei. Por outras palavras: é de esperar que, tal como acontecia
há 15 anos, estes manuais estejam crivados de erros científicos
– o que é extraordinariamente grave, uma vez que se trata do ano de
conclusão de Secundário e, para a maioria dos alunos, a matéria do
exame final que decidirá o seu acesso à Universidade.
Apesar de ser ainda cedo para uma afirmação definitiva, o
Governo parece, em 2017, continuar com a política de abandono
da certificação de manuais para outros anos e níveis de ensino.
Significa pois que, também neste plano, estamos a assistir a uma
inexplicável reversão intencional das políticas que, nas últimas
duas décadas, conduziram o País pelo caminho da qualidade na
Educação.
Mais preocupante, contudo, do que o que antecede, a extensíssima
reforma curricular que, sem assumir, por razões tácticas esta designação – que determinaria a sujeição ao rigoroso e demorado
procedimento previsto na lei –, está em vias de desmantelar todos
os progressos que neste aspecto se alcançaram nos últimos 15 anos.
Sob a capa de um processo dito de “flexibilização curricular”,
o Ministério da Educação prepara uma reforma profundíssima em
todos os níveis do Ensino Básico e Secundário, do 1º ao 12º anos.
Essa reforma envolve a disponibilização, de acordo com as versões
correntes nunca desmentidas pelo Ministério, de até 25% do tempo
lectivo actual para várias finalidades, entre as quais a gestão directa
pelas escolas, e dentro destas por grupos de professores, em projectos
interdisciplinares de natureza ainda desconhecida.
A flexibilização curricular, no abstracto, pode ter aspectos
interessantes. Contudo, a forma como está a ser implantada é profundamente
destrutiva para o nosso sistema educativo. Com efeito,
mantendo-se o tempo total de leccionação, é claro que o tempo
lectivo a disponibilizar para actividades de flexibilização terá de ser
obtido à custa de tempos lectivos pertencentes às disciplinas. Ou
seja, as disciplinas actualmente leccionadas poderão vir a ficar, em
média, com menos 25% do tempo que hoje lhes é atribuído.
Ora, é evidente que programas escolares concebidos e calibrados
para uma dada carga lectiva não poderão ser leccionados em
3/4 do tempo. Assim, o sombrio reverso desta flexibilização curricular,
que a retórica oficial faz por ocultar, será um corte efectivo
nos conteúdos a leccionar, que pode bem chegar aos 25% - e que
pode variar de Escola para Escola e, no limite, de Professor para
Professor.
O Ministério da Educação subtraiu uma reforma tão profunda
como esta a um procedimento de discussão pública e esclarecimento
de pais e alunos. Em vez disso, nomeou um grupo de trabalho que,
longe da vista do público, trabalhou na definição das assim chamadas
Aprendizagens Essenciais. Estas consistem no seguinte: para
262
cada área disciplinar (Matemática, Português, História, Geografia,
Física…) considera-se o Programa e Metas actualmente em vigor. A
partir dele, definem-se quais os conteúdos curriculares “essenciais”
e quais os “acessórios”. Os primeiros, que correspondem a aproximadamente
75% do Programa em vigor, são as Aprendizagens
Essenciais (AE), os conteúdos que devem ser efectivamente leccionados.
Os segundos são, por exclusão de partes, facultativos, e
podem ou não ser ensinados; mas nunca serão avaliados.
Ou seja: em termos práticos, as Aprendizagens Essenciais
eliminam a obrigatoriedade de leccionar 25% dos conteúdos curriculares
– em todas as disciplinas, em todos os anos, em todos os
graus de ensino.
Esta reforma foi discretamente publicada na página Web da
Direcção Geral de Educação e comunicada às Escolas durante o mês
de Agosto de 2017, para entrar em vigor no ano lectivo 2017/18 (ou
seja, divulgada com três semanas de antecedência!). Neste primeiro
ano funcionará em regime piloto em 240 escolas portuguesas,
sendo a intenção alargar esta experiência a todo o universo escolar
português em 2018/19. Pode ler-se no respectivo documento [3]:
“As AE são o Denominador Curricular Comum para
todos os alunos, mas não esgotam o que um aluno deve fazer ao
longo do ano letivo. Não são os mínimos a atingir para a aprovação
de um aluno, são a base comum de referência”.
Ou seja, os alunos podem fazer mais coisas do que aprender o
que fica definido nas AE. É natural, pois estas foram, justamente,
concebidas para diminuir os conteúdos de forma a “Permitir libertar
espaço curricular”. Mas apenas os conteúdos constantes das
AE fazem parte da aprendizagem comum a todas as escolas.
Na realidade, só poderão ser examinados conteúdos constantes das
AE: “A avaliação externa das aprendizagens tem como referencial
base as AE”. Os 25% de conteúdos dos programas actuais que se
tornam facultativos passam, em bom rigor, a ser letra morta: estão
no papel, mas são de leccionação facultativa (dificilmente expectável
com menos 25% do tempo disponível); e nunca serão objecto de
exame.
Convém ainda acrescentar que estes documentos curriculares
são extremamente vagos, mostrando-se na prática inúteis enquanto
orientação eficaz do ensino. Mais, são muitíssimo deficientes do
ponto de vista científico [4]. A isto não pode ser alheio o facto de
terem sido preparados durante um ano no maior secretismo por um
Grupo de Trabalho escolhido e nomeado pelo Ministério, do qual a
Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM) foi deliberadamente
excluída, talvez pelo seu longo historial de defesa da qualidade do
ensino. A consequência desta incompreensível exclusão da única
sociedade científica relevante, parceiro permanente de décadas
do Ministério da Educação, está bem expressa nas várias e graves
falhas científicas que provavelmente se repetirão nos documentos
em preparação para os anos escolares seguintes.
A extensão do dramático empobrecimento cultural e científico
que uma tal reforma acarreta resulta bem clara do segundo parágrafo
do programa do 10º ano de Matemática A: “As Aprendizagens
Essenciais (AE) agora apresentadas para o 10.º ano baseiam-se na
interseção dos programas da disciplina para este ano de escolaridade
homologados em 2002 e em 2014 [5]”. Por outras palavras:
aquilo que os alunos sujeitos, já no presente ano lectivo de 2017/18, a esta delirante experiência vão aprender no 10º ano é menos do
que o programa de 2014 e menos do que o programa de 2002, pois
é a intersecção de ambos. Numa singela frase, os conteúdos a leccionar
na disciplina de Matemática recuam mais de 20 anos!
O panorama educativo no final de 2017 é, assim, assustador.
Os alunos portugueses vão, a partir deste ano lectivo e por mera
opção política, passar a ter menos aulas; a aprender menos conteúdos;
a estudar por manuais sem garantia de qualidade; tendo
já deixado de ter exames finais no 4º e 6º anos. Este incompreensível
experimentalismo corresponde a uma objectiva decadência, e
põe em risco todos os progressos esforçadamente alcançados nos
últimos 20 anos. Custa a acreditar que um Ministério da Educação
queira, de livre vontade, submeter as crianças e jovens, cujo futuro
dele depende, a um tão desastroso retrocesso.
Quem ignora a História…
Chegados a este ponto, será útil recuar no tempo, de modo a ganhar
melhor perspectiva sobre o significado desta iminente revolução na
Educação.
Portugal é um recém-chegado ao mundo da Educação. Em
pleno Iluminismo, enquanto no mundo ocidental decorrem as grandes
discussões sobre as virtudes da educação universal gratuita e se
realizam as correspondentes reformas, em Portugal pouco ou nada
se progride, apesar da retórica em contrário. Consequentemente,
enquanto os países do Norte da Europa e os Estados Unidos,
seguindo embora modelos diferentes, erradicaram o analfabetismo
durante o século XIX, em Portugal em 1880 a taxa de analfabetismo
era ainda de 80%. Quatro em cada cinco portugueses não sabiam
ler, escrever ou contar (v. gráfico). Portugal entrou assim no século
265
XX com quase dois séculos de atraso em relação aos países mais
avançados em questões de Educação.
Durante os períodos da I República e do Estado Novo foi realizado
um enorme esforço de escolarização básica da população;
ainda assim, a escolaridade obrigatória de 4 anos foi apenas instituída
em 1960. Na sequência da revolução de 25 de Abril de 1974
registou-se uma explosão da escolarização – embora não ao nível do
ensino primário (actual 1º ciclo), ao contrário do que por vezes se
crê. O número de alunos de 1º ciclo manteve-se aproximadamente
constante, em torno de 850.000, entre 1960 e 1990, altura em que
começou a declinar fortemente por razões demográficas. Este facto
é, de resto, visível a partir do seu impacto na curva do analfabetismo:
este, que depende apenas da escolarização no 1º ciclo, manteve
a taxa de diminuição que vinha da primeira metade do século.
A 25 de Abril de 1974 a batalha da alfabetização estava, portanto,
ganha. Foi nos níveis de ensino posteriores ao 1º ciclo que
se verificou a referida explosão da escolarização. Nas duas décadas
subsequentes a 1974, o número de alunos no 2º ciclo (então chamado Preparatório) cresceu cerca de 50%; o número de alunos no
3º ciclo duplicou; e o número de alunos no Secundário mais do que
decuplicou, passando de 43.653 em 1974 para 477.221 em 1996 [6].
Todo o sistema educativo teve de ajustar-se com grande velocidade
a esta procura galopante de mais e melhores qualificações: eram
necessárias novas escolas, novos professores, novos programas
e novos manuais escolares. Em 1986, a Lei de Bases do Sistema
Educativo fixa a escolaridade obrigatória em 9 anos.
O processo de expansão do ensino médio português ficou concluído
em meados dos anos 1990. No entanto, aquilo que poderia
ser uma brilhante história de sucesso, de progressiva democratização
e universalização do acesso ao ensino, logo, à ciência, às artes,
à cultura e a uma qualificação profissional superior teve resultados,
infelizmente, medíocres. O crescimento foi anárquico, turbulento,
e realizado à custa da qualidade do ensino. É frequente ouvirmos
pais e professores desse tempo lamentarem o constante e irreversível
declínio da qualidade do ensino, de Ministro para Ministro, de
reforma para reforma, de Governo para Governo. O que foi então
que correu mal nessas duas décadas cruciais?
Em primeiro lugar, cabe referir, entre as medidas adoptadas
imediatamente a seguir à Revolução de Abril, o desmantelamento
sistemático do sistema de avaliação escolar. A eliminação do exame
da 4ª classe ocorreu não por razões pedagógicas, mas sim ideológicas:
o autor, que ainda o fez em 1974, recorda-se bem da inflamada
retórica sobre ser tal exame “fascista”, a qual tinha subjacente uma
insidiosa, mas crescente, desvalorização da própria ideia de avaliação
enquanto instrumento pedagógico.
Sendo inquestionável que o sistema necessitava de urgentes
reformas – em particular quanto aos curricula do Ensino Básico,267
que incorporavam em certas disciplinas com forte componente doutrinária
– o mesmo não sucedia com a avaliação através de exame
final. A sua eliminação, num país atrasado, com enormes desigualdades
internas, uma taxa de analfabetismo de 26% e onde quase
meio milhão de crianças não ultrapassava o ensino obrigatório
(4ª classe), teve efeitos nocivos a longo prazo: deixando de existir
pressão externa para a uniformização, o sistema foi naturalmente
relaxando pelo caminho de menor resistência – acentuando-se as
assimetrias e as diferenças de qualidade regionais, promovendo-se
um ambiente de facilitismo, permitindo-se a desarticulação progressiva
do sistema.
Esta cultura de desvalorização da avaliação em breve se propagaria
aos níveis superiores, segundo uma lógica tão perversa quanto
implacável: o aumento do número de alunos justifica, quando não
impõe, a simplificação das regras. Assim foram desaparecendo os
exames disciplinares de final de ciclo: os de 9º ano, ainda existentes
no final dos anos 1970 (o autor destas linhas ainda os realizou), e
pouco depois os de 12º ano.
Em segundo lugar, e como já se afirmou, impunham-se profundas
reformas curriculares e estruturais no sistema educativo.
Sucede, porém, que esta necessidade coincidiu com o aparecimento,
em vagas sucessivas, de uma nova classe de especialistas
em “Ciências da Educação” (ainda que sem especialidade, note-se,
em qualquer área científica ou cultural específica). Ora, foi justamente
da mais notória de tais vagas, aquela que ficou conhecida
como a dos “Mestrados de Boston”, no início dos anos 1980, que
saíram vários Ministros, Secretários de Estado, e inúmeros quadros
de topo do Ministério da Educação. Foram estes especialistas em
“educação” tout court que levaram a cabo as grandes reformas dos
anos 80 e 90 do século passado.
Não é este o local para uma descrição global destas reformas,
as quais apresentam, no entanto, elementos comuns que falam
por si quanto ao (des)acerto e à (des)adequação dos postulados
que as suportaram e das opções em que se traduziram. É, em
geral, desprezado o conhecimento “escolar”, considerado elitista,
observando-se a progressiva eliminação de conteúdos das diferentes
disciplinas – da Matemática ao Português, da Filosofia à História.
Valoriza-se e promove-se uma teoria pedagógica concretizada
em abordagens e atitudes expressas num inconfundível jargão: a
“aprendizagem ao ritmo dos alunos”, a “escola centrada na criança”,
os “estilos individuais de aprendizagem”, o “ensinar a criança e não
a matéria”, o “transmitir atitudes, não conhecimentos”. A isto alia-
-se a crença num modelo “construtivista” da aprendizagem, em que
o estudante deve tratar de atingir por si, em doze anos de escolaridade,
as descobertas que à humanidade custaram séculos de intenso
esforço intelectual, de novo plasmada em característicos mantras:
“aprender a aprender”, “aprendizagem por descoberta”, “menos é
mais”, “aprendizagem para a compreensão”. Ficou célebre a expressão
cunhada, no final dos anos 90, pelo Ministro da Educação,
Eduardo Marçal Grilo, para descrever o registo vazio que, por estas
alturas, era um verdadeiro newspeak nos documentos oficiais e
entre os altos funcionários do seu Ministério: o eduquês.
Todos estes movimentos convergiram na desvalorização da
aquisição progressiva e cumulativa de conhecimento organizado.
Muitos professores com elevado grau de profissionalismo e dedicação
viram-se, a pouco e pouco, submersos num oceano de facilitismo,
falta de rigor e falta de exigência. A escola deixou de ser
um espaço privilegiado de aquisição de conhecimentos sólidos e
de crescimento intelectual. Privada de mecanismos de controlo
fornecidos pela avaliação externa – os exames nacionais –, a escola
269
pública portuguesa foi resvalando inexoravelmente pelo plano
inclinado do laxismo.
Ilustra bem o nível de mediocridade atingido pelo nosso sistema
educativo, bem como a falta de vontade política em o encarar,
a participação, em 1995, nos estudos comparativos internacionais
TIMSS, dedicados às ciências. Nesses estudos, as crianças portuguesas
do 4º ano de escolaridade obtiveram resultados muito abaixo
da média, sendo mesmo classificados como os piores em toda a
Europa. A reacção da então Secretária de Estado da Educação, Ana
Benavente, foi radical: os alunos portugueses eram “especiais” e
não se davam bem com avaliações que mediam “apenas aprendizagens”.
Após o que tratou de assegurar que não voltaríamos a ver
expostos os medíocres resultados de duas décadas de dissolução:
Portugal deixou de participar em estudos internacionais. Só voltaria
a fazê-lo 16 anos depois, em 2011.
No virar do século, o sistema educativo português atingira,
assim, um patamar de disfuncionalidade extrema. O discurso oficial
garantia candidamente que tudo ia pelo melhor no melhor dos
mundos; mas a irredutível determinação com que liminarmente se
recusavam avaliações internas e externas ou sequer a divulgação
de dados permitia duvidar se a realidade não seria bem diferente.
De facto, a impossibilidade de obtenção de informação objectiva
sobre o que se passava com as escolas, com os professores e com
os alunos era parte integrante do sistema. A opacidade ocultava a
mediocridade.
Foi já entrado o século XXI que começaram a tomar-se medidas
tendentes a tornar o sistema mais transparente, de forma
a permitir um diagnóstico fundamentado da situação e a dar
passos, ainda que tímidos, para a corrigir. Em 2001, e por pressão
da sociedade civil, o Ministério da Educação, então liderado por
270
Augusto Santos Silva, viu-se forçado a divulgar os resultados dos
exames obtidos nas diversas escolas, com base nos quais foram
elaborados rankings das mesmas (sublinhe-se que estes dados
sempre existiram – o Ministério é que se recusava a divulgá-los)
Tratou-se de um momento histórico: pela primeira vez existiam
dados que mediam de forma objectiva o desempenho do sistema.
Significativamente, esses dados contradiziam a ficção ingénua de
que as escolas, os professores e o ensino são iguais em todo o lado.
Não são. Como é inevitável, há professores excelentes e professores
maus, escolas excelentes e escolas más. Os rankings permitiam,
finalmente, distinguir uns dos outros e actuar onde patentemente
se mostrava necessário fazê-lo.
Este processo foi decisivo: por um lado rompeu com as práticas
de opacidade do passado, promovendo a transparência do sistema;
por outro, funcionou como sinal de alarme para a opinião pública,
mostrando a falsidade da narrativa oficial: nem tudo estava bem,
nem este era o melhor dos mundos. Nunca mais os rankings escolares
deixaram de ser publicados. Seguiram-se outros igualmente
importantes, já parcialmente referidos no início deste texto, sempre
no sentido de promover a transparência, o rigor e a exigência como
via para perseguir a qualidade na Educação. Entre 2003 e 2005, por
acção dos Ministros David Justino e Maria de Lurdes Rodrigues,
foram reintroduzidos os exames nacionais no final do Ensino
Básico (9º ano); a partir de 2007 tornou-se legalmente obrigatória
a certificação de manuais escolares por entidades idóneas e independentes;
a partir de 2011 Portugal voltou a participar nos grandes
estudos educativos internacionais PISA e TIMSS, quebrando
16 anos de isolamento autista; em 2012 instituíram-se os exames
nacionais no final de 1º e 2º ciclo (4º e 6º anos); e a partir de 2013
entraram em vigor novas Metas e Programas, mais modernos e
estruturados, no Ensino Básico e Secundário.
Foi uma revolução tranquila aquela que, ao longo das últimas
duas décadas, transformou por dentro a Educação. A pouco e pouco
foi construído um sistema de freios e contrapesos que permite ter
informação sobre o que se passa, diagnosticar situações problemáticas
e agir sobre elas. Foi este sistema que permitiu à Educação
em Portugal escapar do ciclo vicioso da mediocridade e entrar no
caminho da qualidade.
… está condenado a repeti-la
Os recentíssimos desenvolvimentos acima relatados tornam dolorosamente
claro o significado profundo do que está em curso na
Educação desde o final de 2015. Do que se trata é, nem mais, nem
menos, que o desmantelamento sistemático, progressivo e acelerado
desse sistema de freios e contrapesos que demorou quase duas
décadas a erguer.
Pior do que isso, muitas das decisões tomadas nestes dois últimos
anos não o foram por razões técnicas ou científicas, escoradas
em estudos, que hoje existem em abundância, sobre as melhores
práticas educativas, mas exclusivamente por razões ideológicas,
preconceitos ou simples ignorância. Emblemática desta atitude foi
a eliminação dos exames nacionais de 4º e 6º anos, aprovada no
Parlamento por uma maioria de deputados sem contacto específico
com Educação, sem qualquer motivo consistente e no meio de uma
acesa discussão pública, que atingiu o grau zero com o preocupante
desenterrar, 41 anos depois da estafada retórica “anti-salazarista”
a propósito do exame de 4º ano de escolaridade, para o efeito assimilado
ao exame da 4ª classe extinto em 1974. Os exames foram
eliminados por transacção política; o prejuízo foi para a Educação.
Em 2017 o Ministério da Educação publicou um documento
pretensamente orientador das opções de fundo da Educação, intitulado
“Perfil do Aluno para o século XXI” [7]. Superficial e criticado
por múltiplos quadrantes pelo seu vazio de conteúdo substancial,
não mereceria atenção especial se não se tratasse do primeiro documento
oficial emanado do Ministério da Educação a ressuscitar o
discurso do eduquês dos anos 80-90, há quase duas décadas justamente
confinado a um capítulo nefasto da nossa História. Ao longo
de 14 páginas, como argutamente observa Carlos Fiolhais[8], surge 54
vezes o termo “competências”, 17 vezes o termo “consciência” e 12
vezes “sustentabilidade”. Em contrapartida, a palavra “exigência”
só aparece três vezes enquanto as palavras “programa” ou “disciplina”
surgem uma única vez cada. Foi um sério sinal de alerta: as
forças do reaccionarismo educativo estavam de volta.
O Perfil do Aluno, em si mesmo inconsequente, serviu para preparar
o caminho para a introdução das desastrosas Aprendizagens
Essenciais, já acima analisadas. Subjacente a esta reforma educativa
está uma atitude intelectual que desvaloriza conteúdos e
conhecimentos sólidos em prol de umas vaporosas “competências”
que não se sabe exactamente o que são, e que descende em linha
recta do discurso dos anos 80-90 – apesar de envolta num aggiornamento
retórico estribado numas hipotéticas “competências para
o século XXI”. A verdade é que as atitudes agora insistentemente
proclamadas como “novas” são antigas – e já provaram ser profundamente
nocivas. Por outras palavras, a reforma agora anunciada
como inovadora mais não implica, na sua atitude reaccionária de
base, o regresso a um passado de muito má memória.
Algumas reflexões finais
Em primeiro lugar, esta reforma do sistema que agora é apresentada
“em nome da modernidade” – como todas as reformas educativas
o são! – é na realidade inspirada por pré-concepções antiquadas
sobre o fenómeno educativo. São ideias velhas proclamadas como
novas. Não é esse, contudo, o seu principal problema, mas sim o
terem já sido testadas e terem provado que não funcionam – em
Portugal, nos Estados Unidos, no Reino Unido, em França e em
muitos dos países da Europa Ocidental. O experimentalismo educativo
que agora nos é imposto tem na base uma ideologia que no
passado deu maus resultados sempre que foi aplicado. Não é de
esperar que agora vá ser diferente.
Em segundo lugar sublinhe-se que, contrariamente ao que
afirma um dos mantras do eduquês, em Matemática menos nunca
é mais: é sempre menos. E aprender menos Matemática é comprometer
de forma irresponsável o futuro dos nossos jovens. A
Matemática e as suas aplicações têm sido no último século um dos
motores e um factor decisivo do desenvolvimento económico da
sociedade, essencialmente através das STEM (Science, Technology,
Engineering, Mathematics). No futuro próximo, este papel crescerá
muito aceleradamente: a emergência do Big Data e da sua
intervenção decisiva na economia das sociedades do conhecimento
significa que a Matemática será cada vez mais um factor determinante
para o progresso social e económico. É de esperar que nas
próximas décadas exista uma clivagem cada vez mais acelerada
entre as sociedades e economias baseadas no conhecimento, que
farão um uso intensivo da Matemática para os seus modelos e algoritmos,
e as sociedades menos preparadas para tal, que não conseguirão
acompanhar esta revolução já conhecida como Indústria 4.0.
O combate pela qualidade na preparação matemática para
todos os alunos não é, pois, uma questão menor. É um imperativo
social para o sucesso de Portugal num mundo tecnologicamente
avançado. Se os nossos jovens e o nosso País não tiverem preparação
para se imporem num mundo altamente competitivo, o lugar
quer daqueles quer deste será seguramente ocupado por outros
mais bem preparados.
Em terceiro lugar, não é possível, infelizmente, ter ilusões
acerca da consumação deste projecto. A vontade política de “deixar
obra feita” é irresistível; e será o Ministério da Educação a avaliar,
em moldes de resto desconhecidos, a fase-piloto da reforma que ele
próprio agora impõe. É portanto muito provável que esta avaliação
em 2018 seja positiva, e que consequentemente esta experiência
seja, como é intenção, alargada a todo o universo escolar em
2018/19. Ora os efeitos das reformas em Educação só têm consequências
visíveis a longo prazo. Não será portanto difícil aos interessados
em avançar com este processo argumentar que eventuais
insuficiências reveladas na fase-piloto serão corrigidas na transição
para a fase definitiva. O caos, esse, instalar-se-á insidiosamente, a
pouco e pouco, e só será visível em toda a sua extensão depois de
gerações de alunos passarem pelo sistema, dentro de anos, talvez
uma ou duas décadas.
Finalmente, os alunos. Os nossos jovens são os principais lesados
com esta situação, que tem um impacto social dramático, pois
não só não remove, como potencia as desigualdades de base: crianças
que crescem em meios isolados, deprimidos e necessitados têm
acesso a uma Educação de nível qualitativo mais baixo. Ora, sendo
uma educação de qualidade a ferramenta que lhes permitiria ultrapassar
estas circunstâncias adversas e ascender a níveis sociais,
culturais e económicos superiores, a falta dela limita-lhes as opções
e recusa-lhes oportunidades.
Um ensino público medíocre é, perversamente, uma das
formas mais eficientes de perpetuar as desigualdades sociais. A
única forma de ter uma Escola que promova a igualdade e a ascensão
social dos menos favorecidos é fazê-la competente e exigente,
a dar muito e, ao mesmo tempo, a exigir muito. É um tremendo
erro achar que nivelar a Escola por baixo, facilitando e tornando
conteúdos e conhecimentos facultativos, promove a igualdade. Pelo
contrário: torna-a cada vez mais uma miragem.
Uma Escola para a igualdade tem de ser uma Escola de qualidade.
O nosso País parece querer negar essa qualidade aos seus
jovens. Se isso acontecer, estes dificilmente nos perdoarão, e terão
razões para isso.
Jorge Buescu
Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática. Doutor em Matemática pela Universidade
de Warwick (Reino Unido) e Professor na Faculdade de Ciências da Universidade de
Lisboa.
NOTAS
1 Programme for International Student Assessment.
2 Trends in International Mathematics and Science Study.
3 http://www.dge.mec.pt/aprendizagens-essenciais, acedido a 8/9/2017
4 https://www.spm.pt/news/2714https://dge.mec.pt/sites/default/files/Noticias_Imagens/perfil-do-aluno.pdf, acedido em 9/9/2017.
5 http://dge.mec.pt/sites/default/files/Projetos_Curriculares/Aprendizagens_Essenciais/ae_sec_matema ica_a.pdf, acedido a 8/9/2017.
6 Todos os dados estatísticos citados são provenientes da PORDATA.
7 https://dge.mec.pt/sites/default/files/Noticias_Imagens/perfil-do-aluno.pdf
8 http://observador.pt/opiniao/que-e-feito-do-perfil-do-aluno
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