quarta-feira, 5 de julho de 2017

O grande "slogan" da educação mundial

"Temos escolas do Século XIX, para ser simpático, 
porque algumas são do Século XVIII, 
com professores do Século XX, 
para alunos do Século XXI."

Director de uma escola portuguesa, 2017 (em entrevista aqui)


A frase acima reproduzida constitui uma variante, diria eu, mais radical, daquele que se tornou e se afirmou como o grande slogan da educação mundial: "temos uma escola do século XIX, com professores do século XX, para alunos do século XXI".

As palavras que lhe dão formam centram-se na premência de construção, na escola, do (tal) "homem novo": o "homem" liberto dessa inutilidade que é o passado e projectado para um presente/futuro repleto de possibilidades.

Esta é, porém, a face mais visível do slogan, pois, à medida que se vai explorando, revela toda uma "filosofia" não sei se complexa se linear, mas marcadamente imbricada, redundante, quando não contraditória, e sobretudo, desconcertante sob o ponto de vista conceptual.

Discuti-lo daria um tratado e um blogue não permite tal. Permite, no entanto, deixar, um apontamento do professor espanhol Ricardo Moreno Castilho, publicado no seu recente livro La conjura de los ignorantes, páginas 118 e seguintes.
"Por muito actuais que as teorias da relatividade e quântica sejam (e é certo que estão constantemente a ser feitas novas descobertas) continua a ser necessário conhecer a teoria de Newton. Em primeiro lugar, porque (...) continua a ter validade e, em segundo lugar, porque sem a entender bem é impossível entenderem-se as teorias posteriores. Por muito antiquada que possa parecer, não há razão para deixar de a estudar (...). 
Passemos às humanidades. Já não se devem ler as obras de Sófocles, de Shakespeare ou de Cervantes? E no caso de se lerem, devemos explicá-las à luz das mais modernas correntes da crítica literária, de modo a não nos mostrarmos antiquados ou levar os alunos a aprender a amá-las e a desfrutá-las, como se tem feito sempre? Os bons professores de literatura do século XX aprenderam a gostar de Dom Quixote, que mal tem (...) se transmitirem o mesmo gosto aos seus alunos, do século XXI? 
E quanto à história, já não é preciso estudá-la? Se a história é o conhecimento do passado, do que já é antigo, nunca pode tornar-se antiquada (...). 
Não podemos adaptar-nos, nem interpretar, nem mudar o mundo em que vivemos se não o conhecermos bem. E o nosso mundo é um palimpsesto escrito sobre o Romantismo, que foi escrito sobre o Iluminismo, que foi escrito sobre a Contra-reforma, que foi escrito sobre o Renascimento, que foi escrito sobre a Idade Média, que foi escrito sobre o mundo latino, que, por sua vez, foi escrito sobre a Grécia, cuja cultura é devedora da egípcia e da suméria. 
Só conhecendo o passado podemos conhecer-nos a nós mesmos e ao nosso presente, porque somos o resultado de tudo o que nos precedeu (...). 
Somos herdeiros de um imenso caudal de sabedoria que, desde há quase três mil anos, foi guardado com muitas dificuldades (...) e que não se torna obsoleto. 
A nós, professores, cabe-nos a difícil e bela tarefa de conservar e transmitir esse legado aos nossos alunos para que também eles possam conhecê-lo, amá-lo e desfrutá-lo. 
É um acto de barbárie interceptar esse legado apenas e só para não parecermos estar ancorados no passado e cultivarmos uma imagem de vanguardistas, inovadores e progressitas."

6 comentários:

Anónimo disse...

Professora Helena Damião:
Estou consigo. Fui tentar ler a entrevista mas não consegui passar da frase inicial: "Imagine uma escola sem períodos escolares, sem turmas e anos de escolaridade fixos, com aulas em que os professores não falam mais de 15 minutos e onde a aprendizagem está centrada no aluno, que tem a capacidade de receber a informação de forma activa, apenas com a gestão do professor". Escaqueirei-me a rir. E pensei que eu não sou do século XXI como aquele professor. Eu sou do século XXII ou mais para a frente.
Na escola que preconizo não haveria nada, no máximo o professor Paulo Almeida que deveria limitar-se a fazer umas corridas com os alunos caso estes o autorizassem. No fim do mês, o vencimento do professor seria votado pelos clientes ou seja pelos alunos (que nos séculos vindouros já não se chamarão assim pois é ofensivo) que deste modo poderiam, a bem da democracia, exprimir a sua satisfação ou falta dela. Mais, além de as cadeiras terem rodas, o professor deveria dar aulas de skate ou, caso houvesse verba para tanto, de segway.
José M. Melo

Anónimo disse...

Quer-me parecer que a escola opera já num paradigma em crise. A coisa mete água por muito lado, porém ainda não existe algo que se possa constituir com um paradigma novo que tome o lugar do antigo. É bem verdade, na minha opinião, que temos uma escola do século XIX, professores do século XX e alunos do século XXI. Ora é preciso alinhar tudo – alunos, professores e escola - pelo século XXI (e não nos estamos a referir à data de nascimento dos professores, que ainda é, inevitavelmente, no século XX).

Tal necessidade – a de uma nova Escola - não significa que se abandone o ensino e a aprendizagem dos Antigos, sobre cujos ombros o actual conhecimento repousa e assenta empoleirado. Pressupor que uma Escola do século XXI significa o abandono desse ensino e dessa aprendizagem é atirar ao lado da ideia implícita no “grande slogan da educação mundial”, pois não se trata de uma questão de conteúdos, mas sim de forma.

Anónimo disse...

"Publicitar" estes "slogans" contribui para a sua legitimação e relevância como correntes pedagógicas "alternativas"!

Anónimo disse...

O problema de fundo que o princípio e o fim de toda esta questão:

Is American Childhood Creating an Authoritarian Society?
http://www.theamericanconservative.com/articles/will-american-childhood-create-an-authoritarian-society/

Carlos Ricardo Soares disse...

O slogan, que já ouvi e li em múltiplos contextos em que se procurava enfatizar a dimensão e os impactos das mais recentes revoluções tecnológicas, sempre me soou como provocador, por um lado, significando que a escola não acompanhou os avanços que verificamos noutras áreas e, por outro, como confessada falência de quem o declarava, uma vez que ocorria em circunstâncias escolares. Mas também já se tem usado e abusado desse slogan para destacar os problemas da justiça. O que mais me arrelia nem é o slogan que, como tantas frases sonantes, ou se limitam a dizer as maiores banalidades, ou são pleonasmos, é uma espécie de jactância de quem o diz, como se tivesse inventado a pólvora, a maior parte das vezes, não sabendo como enaltecer a importância intrínseca das tic. Parece que a importância das tic não está nelas próprias, mas naquilo que formos capazes de fazer com elas. Ou seja, o slogan (e as tic) nada nos dizem sobre a escola que temos ou que deveríamos ter. E isto é que é irritante nas pessoas que enxertam esse tipo de slogans nos seus discursos mais ou menos solenes. Confundem as luzes com o que o que é preciso mostrar/ver.
Assim, por exemplo, quem faz o espetáculo, propriamente dito, não são as câmaras, mas os atores e os textos e a música... E, quanto a isto, por si sós, aquelas nada têm para nos mostrar/ensinar.

Helena Damião disse...

Caro Leitor José Melo
A dimensão surreal que a entrevista possa denotar, passa a real quando o discurso se torna oficial. E esse discurso é o oficial. É-o no plano internacional e no plano nacional. Dentro de cada país, cada instância educativa e formativa já o adoptou. É por ele que os sistemas de ensino se estão a pautar e se irão pautar no futuro.
Cumprimentos, MHD

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