segunda-feira, 3 de julho de 2017

Primeira licenciatura em acupunctura da cobra


Foi aprovada  pela Agência de Acreditação e Avaliação do Ensino Superior (A3S) a primeira licenciatura em acupunctura, no Instituto Politécnico De Setúbal. Esta aprovação é uma consequência da Portaria 207-F/2014, publicada durante o governo de Passos Coelho, que define os requisitos para uma licenciatura em acupunctura. A título de exemplo:

Artigo 4º
Referencial de competências
1 — O acupuntor deve ter:
a) Conhecimentos críticos das bases teóricas específicas que fundamentam o seu diagnóstico e a sua intervenção terapêutica, designadamente, yin e yang, os cinco movimentos, qi, sangue e líquidos orgânicos, os oito princípios de diagnóstico, o sistema dos meridianos e ramificações jing luo, síndromas gerais e síndromas dos zang fu, patologia, etiopatogenia e patologias energéticas, os seis níveis, as quatro camadas e os três aquecedores

Toda esta descrição é bastante impressionante. Mas tem um pequena problema: é pura fantasia. yin e yang, qi,  sistema dos meridianos e ramificações jing lua e síndromas dos zang fu são coisas que não têm nenhuma base científica. É o equivalente a criar na Academia Militar uma licenciatura em poderes dos Pókemons.

Mais à frente na portaria, lê-se que o acupunctor deve ser capaz de:

k) Ler criticamente a literatura científica e incorporar a informação na sua prática;

Na verdade, se fizer isso, desiste rapidamente da sua prática de acupuntura, que se porta muito mal em ensaios clínicos que avaliam a sua eficácia e segurança. As revisões sistemáticas da literatura científica, que combinam os resultados de todos os ensaios clínicos metodologicamente robustos acerca de tratamentos de acupuntura tiram invariavelmente uma das seguintes conclusões:

- a acupuntura não mostrou eficácia terapêutica no tratamento da doença x.
- há indicações muito ligeiras da eficácia da acupunctura no tratamento da doença y, mas os métodos são inadequados e as amostras demasiado pequenas.

Há tantos ensaios clínicos (de qualidade em geral má) e revisões sistemáticas acerca de tratamentos de acupuntura que se pode mesmo fazer uma revisão das revisões sistemáticas. E foi mesmo feita, em 2006, e publicada na revista Clinical Medicine. Da análise das 35 revisões consideradas, os autores concluíram que não há nenhuma prova sólida de que a acupuntura funcione para qualquer condição clínica.

Por muita conversa com palavras esquisitas e portarias publicadas, a acupuntura não é um tratamento médico que funciona melhor do que os poderes dos Pókemons num campo de batalha real. E a acreditação da primeira licenciatura em acupunctura não muda isso em nada. E o que é mais grave, é que essa aprovação decorre directamente do cumprimento de uma portaria emanada do poder político, que define conteúdos programáticos de licenciaturas em terapias alternativas. Isso mesmo é assumido no relatório da A3S que acredita a licenciatura:

"Estrutura Curricular e Plano de Estudos assentam nas quatro áreas formativas, indicadas na respectiva Portaria”

Isto é aberrante. A fundamentação científica que as terapias alternativas não conseguem obter através dos processos normais da ciência é colmatada politicamente. Se através da ciência e dos seus processos não conseguem provar as suas ideias, não faz mal, conseguem convencer políticos. Estas portarias, assinadas por dois Secretários de Estado do anterior governo (Fernando Serra Leal, na altura Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde, e José Alberto Nunes Ferreira Gomes, antigo Secretário de Estado do Ensino Superior) deveriam ser imediatamente revogadas, pela distorção que induzem no Ensino Superior, aliciando as instituições a prostituírem a sua credibilidade. Esta é mais uma vertente do grande negócio que são as terapias alternativas.

Este avanço das terapias  alternativas em Portugal é disparatado e fora de tempo, num momento em que estas recuam em vários países. Em Maio passado, o Colégio de Médicos de Madrid resolveu acabar com todas as actividades e formações em terapias alternativas, por falta de base científica. Antes as universidades de Valência e Barcelona tinham fechado cursos de homeopatia, pela mesma razão.

6 comentários:

marina disse...

quanto à licenciatura , não sei , e esse palavreado também não o percebo , mas lá está , nunca estudei nada desde essa perspectiva. agora que faz figura de urso quando se mete com a milenar acumpuntura , faz. acha que os chineses são parvinhos ? só o facto de ser usada para anestesiar nalgumas cirurgias , com uma redução de custos upa upa , diz tudo. a acumpuntura não é a homeopatia...

Anónimo disse...

De acordo! Ainda ha lucidez nalgumas pax. No entanto tamos num país que glorifica a nossa medicina baseada no comprimido. E nao convém pôr isso em cheque

Anónimo disse...

Não confundir antiguidade com eficácia. As meta-análises mostram que a acupunctura não funciona melhor que um placebo, logo não é uma forma de tratamento válida além de coisas como apenas aliviar a dor... Não critique as figuras de urso dos outros quando não sabe do que está a falar.

CM disse...

Gostaria de saber o que têm a dizer sobre as intervenções sobre ioga no Encontro Ciência 2017, e as suas alegações para o aumento do rendimento escolar, ou equilíbrio hormonal. https://www.publico.pt/2017/07/03/ciencia/noticia/no-encontro-ciencia-2017-houve-lugar-para-uma-palestra-sobre-ioga-1777840

Anónimo disse...

Eu diria que nenhum povo é parvinho mas, apesar disso, há povos que acreditam durante séculos em coisas falsas. No entanto também penso que a acupunctura é diferente da homeopatia, provavelmente com alguma eficácia. Necessita de uma abordagem mais séria. Anestesia mesmo?

Anónimo disse...

" No entanto tamos num país que glorifica a nossa medicina baseada no comprimido" Claro, comprimidos, injecções, intervenções cirúrgicas salvam muita gente e aliviam ou evitam muito sofrimento. Não convém pôr em cheque porque pôr isso em cheque resulta em sofrimento. Mas pode pôr em cheque se quiser, não é proibido.

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...