quinta-feira, 6 de julho de 2017

"O cidadão de sucesso", produto da escola do século XXI

Foi ontem publicado em Diário da República o despacho que "autoriza, em regime de experiência pedagógica, a implementação do projeto de autonomia e flexibilidade curricular dos ensinos básico e secundário, no ano escolar de 2017-2018". É o Despacho n.º 5908/2017 do Gabinete do Secretário de Estado da Educação (ver aqui e aqui).

Trata-se de um extenso documento em cujo preâmbulo - que abaixo transcrevo - se esclarece a actual orientação da educação escolar em Portugal.

Orientação, de resto, em tudo semelhante à que vinha a ser seguida, sobretudo depois das reformas de 2001 (para o ensino básico) e de 2004 (para o ensino secundário). Também em tudo semelhante às de reformas de países que, como o nosso, reconhecem legitimidade à OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico - para determinar o rumo dessa educação.

Nada de inovador, portanto... Com excepção da expressão "cidadão de sucesso", que, devo dizer, desconhecia. Interpreto-a como a inevitável alusão ao tal "homem novo do século XXI", de que toda a gente fala.

"O XXI Governo Constitucional assume a educação como um meio privilegiado de promover a justiça social e a igualdade de oportunidades, constituindo um dos princípios que enformam a sua política a promoção de um ensino de qualidade e sucesso para todos os alunos ao longo dos 12 anos de escolaridade obrigatória. 
A promoção de um ensino de qualidade implica garantir que o sucesso se traduz em aprendizagens efetivas e significativas, com conhecimentos consolidados, que são mobilizados em situações concretas que potenciam o desenvolvimento de competências de nível elevado, que, por sua vez, contribuem para uma cidadania de sucesso no contexto dos desafios colocados pela sociedade contemporânea. 
O conjunto de competências inscritas nas propostas de perfil de aluno no final da escolaridade obrigatória que têm vindo a ser apresentadas em Portugal e nos mais variados fóruns internacionais abarca competências transversais, transdisciplinares numa teia que interrelaciona e mobiliza um conjunto sólido de conhecimentos, capacidades, atitudes e valores. 
O cidadão de sucesso é conhecedor, mas é também capaz de integrar conhecimento, resolver problemas, dominar diferentes linguagens científicas e técnicas, coopera, é autónomo, tem sensibilidade estética e artística e cuida do seu bem-estar. 
A operacionalização do perfil de competências que acaba de se referir implica intencionalidade e ação educativa conducente ao desenvolvimento das áreas previstas. 
De igual modo, sabendo-se que a diferenciação pedagógica é um dos principais instrumentos para garantir melhores aprendizagens é fundamental que as escolas tenham à sua disposição instrumentos que lhes permitam gerir o currículo de forma a integrar estratégias para promover melhores aprendizagens em contextos específicos e perante as necessidades de diferentes alunos. 
Para cumprir este desiderato de promoção de melhores aprendizagens indutoras do desenvolvimento de competências de nível mais elevado, o Governo inscreveu no seu Programa orientações para a concretização de uma política educativa que, assumindo a centralidade das escolas, dos seus alunos e professores, permita a gestão do currículo de forma flexível e contextualizada, reconhecendo que o exercício efetivo de autonomia em educação só é plenamente garantido se o objeto dessa autonomia for o currículo. 
Tradicionalmente, os instrumentos de autonomia das escolas não incluem a área central de atuação das escolas, isto é, a autonomia no desenvolvimento curricular. 
Conferir às escolas a possibilidade de participar no desenvolvimento curricular, estabelecendo prioridades na apropriação contextualizada do currículo e assumindo a diversidade ao encontrar as opções que melhor se adequem aos desafios do seu projeto educativo, é sustentar a política educativa na conjugação de três elementos fundamentais: autonomia, confiança e responsabilidade — autonomia alicerçada na confiança depositada em cada escola, enquanto conhecedora da realidade em que se insere, com a assunção da responsabilidade inerente à prestação de um serviço público de educação de qualidade. 
Neste enquadramento, e em resultado de um longo processo de auscultação de diversos intervenientes a nível nacional e internacional, com especial enfoque para a participação no projeto Future of Education 2030, da OCDE, bem como para a iniciativa “A Voz dos Alunos”, a construção de um currículo do século XXI, a liberdade de atuação para garantir melhores aprendizagens a todos e o respeito pela autonomia das instituições e dos seus profissionais, passam, necessariamente, por criar as condições que permitam às escolas portuguesas responder com qualidade a estes novos desafios. 
A mudança não é, assim, consubstanciada numa vontade de inovar, é, antes, motivada pela valorização das escolas e dos professores enquanto agentes de desenvolvimento curricular, procurando garantir que com autonomia e flexibilidade se alcançam aprendizagens relevantes e significativas para todos os alunos. 
Por conseguinte, o presente despacho consagra a possibilidade de as escolas voluntariamente aderirem ao projeto de autonomia e flexibilidade curricular, que define os princípios e regras orientadores da conceção, operacionalização e avaliação do currículo dos ensinos básico e secundário. 
Este projeto é aplicado em regime de experiência pedagógica, o que permite um acompanhamento, monitorização e avaliação essenciais à sua reformulação. 
Deste modo, o conhecimento real da sua implementação sustentará o processo de revisão do quadro legal, tendo em vista a sua generalização, salvaguardando a sua aplicação gradual."

5 comentários:

Anónimo disse...

Vamos continuar a servir de cobaias em experiência de laboratório. Blá, blá, blá. Acho que qualquer um de nós fazia melhor, basta para isso sair do caminho! Muita parra, pouca uva!!

Helena Damião disse...

Caro Leitor Anónimo
A questão das "experiências pedagógicas" em educação é, na verdade, um problema com diversas vertentes, ética antes de mais. Uma experiência que envolva pessoas (mas também animais e o planeta) só deve ser feita se e quando, depois de um trabalho apurado, que, em geral, é demorado, se consiga a certeza quase absoluta de que dela não decorrem danos para ninguém (nem para nada). Infelizmente, em educação (ainda que não seja só em educação) não é assim que se pensa.
Cumprimentos, MHD

Daniel Ferreira disse...

«Uma experiência que envolva pessoas (mas também animais e o planeta)».

Gostei da parte dos animais. Belo pedaço de relações públicas enfiado a martelo (aqui e na Comcept, sabem-na toda de cor). Só se esqueceu de falar dos danos aos animais.

Vocês são como a Comcept. Tanto cepticismo, mas só no que convém. Torturar animais em laboratório é cada vez mais comum no nosso país (graças ao grande sacerdote do «publish or perish» chamado Mariano Gago). O que interessa é publicar. E o que se publica com animais é fantástico, porque pode provar ou refutar o que quer que seja! O que cria, inevitavelmente, a necessidade de proceder a mais estudos por falta de conclusões. Ah, e mais artigos, claro. O que é preciso é publicar, publicar, publicar...

Tenho a certeza de que as coisas em Portugal são bem controladas e avaliadas. Já dizia um antigo colega de trabalho (que certamente não se apercebeu da psicopatia da namorada) que ela tinha de fazer certas experiências com animais em Portugal porque não lhe era permitido no estrangeiro. Por motivos éticos. Um mimo.

Se vocês fossem realmente sérios, a maior parte dos artigos de jornal sobre medicina seriam imediatamente desmascarados como uma fraude. Mas, tal como na Comcept, deve haver entre os autores deste fórum «investigadores» que vivam à custa dessa banha da cobra que tem tanto de científico como a memória da água.

Carlos Ricardo Soares disse...

Já não bastam os problemas, ainda temos o problema dos discursos sobre os problemas. Em educação e no ensino, em geral, este problema é o maior de todos.É, digamos, o problema dos problemas.
Acho muito bem que se identifiquem e se caracterizem os problemas.
Acho muito bem que se analisem e se compreendam em todas as vertentes.
E que se estudem processos e metodologias (que não sejam milagrosas) de otimizar ensinos e aprendizagens, em todos os sentidos institucionais dos termos. Este é um trabalho sem o qual só podemos contar com o saber de experiência feito, o qual, como é sabido, tem imensas limitações e defeitos.
Na realidade, é muito mais fácil e apelativo traçar perfis para formandos do que, perante um grupo de formandos, assumir que é possível atingir/realizar um determinado perfil, mesmo que se soubesse que existem instrumentos e técnicas à disposição capazes de lá chegar.
Quando o perfil de cidadão não chega, recorre-se ao perfil de cidadão de (mais ou menos) sucesso e envereda-se por uma enumeração de competências, capacidades, que esvaziam a cidadania do seu próprio sentido.
Depois, espera-se da escola muito mais e muito menos do que aquilo que os professores e os alunos podem e sabem.
E não basta que a escola sirva uma mesa perfeita de alimentos de que todos se podem servir de acordo com as suas preferências, vocações, interesses, facilidades, curiosidades, talentos... Também é necessário que professores e alunos queiram servir-se e gostem. E, não menos importante, tudo isso é um jogo, que deve obedecer a regras, mas nem todos ganham justamente.
Por outro lado, vivemos numa fase em que parece já não ser a escola que lidera o destino, com propostas de formação, educação, aprendizagens, de reconhecido mérito e viabilidade. Em vez disso, na sua palidez desmaiada, apela aos alunos para que sejam eles a viabilizar e a descobrir o que aprender/fazer para sobreviverem no conturbado mundo de muitos mercados, de que as escolas são um.
Talvez a maioria dos professores e alunos se apercebam e sintam que a escola é mais do que instituição de ensino e de educação, até porque é lá que passam grande parte (cada vez mais) do tempo das suas vidas.
A escola tem vindo a deixar de ser instrumental relativamente aos mercados e à vida ao ponto de, cada vez mais, serem estes instrumentais relativamente à escola.

Carlos Ricardo Soares disse...

Sobre a temática, entre tantas outras publicações:

https://www.weforum.org/agenda/2017/06/the-most-forward-thinking-college-in-america-is-teaching-every-student-the-same-thing?utm_content=bufferfac44&utm_medium=social&utm_source=facebook.com&utm_campaign=buffer

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...