segunda-feira, 17 de abril de 2017

"Pressupostos para uma nova escola democrática” apresentados por um grupo de professores franceses

Um grupo de professores franceses, de várias disciplinas, “animados por um ideal escolar de esquerda”, fundou, no ano 2000, uma associação a que deu o nome “Sauver les Lettres”, manifestando-se contra as várias reformas curriculares que foram empobrecendo o ensino da literatura e que tiveram como consequência uma “gradual diminuição da exigência e dos resultados da escola pública”. Esses professores dirigiram-se agora aos candidatos à presidência francesa com um texto colectivo (publicado em Humanité.fr, no dia 13 de Abril de 2017 e que pode ser lido na totalidade aqui) onde expõem o que, segundo eles, deve ser uma escola pública. Porque nos identificamos com muito do que nesse texto se enuncia, aqui deixamos alguns parágrafos significativos:
“Se a escola, depois de quarenta anos de governos de direita e de esquerda, continua a transmitir conhecimentos é porque os professores continuam a ensinar apesar de todas as reformas. 
Podemos esperar que um projecto sensato e ambicioso seja, por fim, proposto pelo próximo governo de modo a evitar o naufrágio total ou a desvirtuação da missão de instrução democrática que cabe à escola? 
Não esperamos nada daqueles para quem as soluções decorrem sempre do enquadramento étnico, social e geográfico dos alunos, da competição e do triunfo dos mais fortes. Mas esperamos que aqueles que se afirmam de esquerda deixem de administrar a escola pública como os de direita: atribuindo-lhe um orçamento insuficiente, diminuindo o tempo curricular, reduzindo o número de professores, reiterando pressupostos pseudo-modernos que, ao abrigo da ideia de pedagogia inovadora, impõem, sem debate, métodos absurdos que têm arruinado a escola e criado um afastamento da aprendizagem e do ensino; esperamos que os governantes parem de fingir que estão a lutar contra a desigualdade, fingindo que têm a pretensão de instruir, fingindo consultar-nos. 
Nós, professores que estamos no terreno, conhecemos bem os danos que as reformas educativas têm causado, numa mesma lógica de empobrecimento: o currículo está cada vez mais vazio de conteúdos e submetido apenas à óptica utilitarista da concorrência económica. 
Assim sendo, decidimos intervir no debate eleitoral, expondo os princípios que consideramos que devem presidir a uma política de educação democrática realmente nova. 
A instituição escolar tem por missão dar a todos os alunos, qualquer que seja a sua origem e o seu meio, uma verdadeira formação intelectual exigente. 
Consideramos que ela falha quando, sob o pretexto de se adaptar a um presumível déficit decorrente de uma proveniência culturalmente pobre, propõe aos jovens um simulacro de instrução, apoiado em ferramentas informáticas pedagógicas e em actividades infantilizantes.  
Defendemos uma política ambiciosa para todos. 
É preciso acabar com os programas “atraentes” e organizar os saberes consistentes, segundo uma ordem de dificuldade crescente de ano para ano, a fim de permitir aos jovens enfrentar desafios que estão ao seu alcance. 
Não se deve impor a interdisciplinaridade como uma panaceia a alunos que não dominam as matérias disciplinares. É preciso retirar do currículo as componentes que não contribuem para tal, de modo que haja tempo para uma real apropriação do conhecimento, incluindo a repetição e o treino. 
Para concretizar a igualdade no que respeita à instrução é preciso defender uma escola básica única e ensinar os mesmos conhecimentos com a mesma exigência em todos os estabelecimentos do país. 
São os métodos que é necessário adaptar aos alunos, não os conteúdos. É fundamental recorrer a todos os meios disponíveis para ajudar os alunos com dificuldades em vez de iludir gerações inteiras com a cantilena «tudo está bem, senhora marquesa», enquanto se opera sub-repticiamente uma estratégia para manter os privilégios daqueles que já são privilegiados. 
Denunciamos, pois, as propostas enganadoras como o «acompanhamento personalizado» a 30 alunos, ou a cartilha de competências complexas e vagas, que tornam impossível um real acompanhamento da aprendizagem. 
Chamamos, portanto, a atenção para a necessidade de um trabalho continuado de acompanhamento dos alunos, que deve ser reforçado, nos casos de dificuldades persistentes. 
A língua materna e as humanidades desempenham um papel fundamental na formação dos jovens, pelo que denunciamos a erosão que o seu ensino tem sofrido ao longo de quarenta anos, tanto com os cortes no orçamento como com ideias perniciosas: não é verdade que um aluno que não saiba ler no final do primeiro ciclo do ensino básico possa recuperar o seu atraso no segundo ciclo e assim por diante; nem que a língua materna seja ensinada em todas as disciplinas; nem que a gramática seja aborrecida, desnecessária ou demasiado normativa; nem que a cultura clássica seja elitista ou discriminatória. 
O primeiro ciclo deve, de facto, permitir que as crianças aprendam a ler fluentemente e a compreender o que lêem, e também a escrever, pelo que o tempo que lhes é dedicado deve aumentar. 
A literatura deve ser revalorizada, com uma presença forte e continuada, pois dá acesso a uma linguagem que faculta a expressão clara e um pensamento estruturado, abre horizontes ao conhecimento e desenvolve a curiosidade intelectual. As línguas clássicas, além de facilitarem a aprendizagem da língua materna, facultam «um espaço alternativo» e «outras referências éticas», contribuindo «para a libertação do imaginário» [Cf. Florence Dupont, L’Antiquité, territoire des écarts. Entretiens avec Pauline Colonna d’Istria et Sylvie Taussig, Albin Michel, 2013]. É por isso que o latim e o grego devem poder ser estudados em todas as escolas. A educação artística deve também ser mais ambiciosa. 
Longe de limitar a laicidade às questões religiosas, pensamos que a escola deve proteger os jovens de todas as pressões ideológicas e económicas. A ingerência das religiões nos conteúdos disciplinares deve ser firmemente interdita, quer se trate de programas, de actividades ou de obras estudadas, do mesmo modo que as tentativas dos actores políticos de usar a escola para converter os alunos aos seus pontos de vista, quer se trate de engrandecer a história do país quer de fazer ver as virtudes do liberalismo nas ciências económicas. A escola pública deve também recusar a intromissão dos sectores comerciais que proporcionam actividades lúdico-pedagógicas para vender os seus serviços. 
A escola não é campo de instrumentalização pois «a primeira condição da instrução não é outra que não ensinar a verdades, de modo que as instituições públicas de ensino devem ser independentes de toda e qualquer autoridade política» [Rapport sur l’organisation générale de l’instruction publique, 20 et 21 avril 1792], disse Condorcet. 
Defendemos uma ideia mais elevada do papel do professor. Intelectuais, titulares de graus académicos avançados, os professores não podem ser meros executores das directrizes de uma hierarquia geralmente ignorante da realidade concreta de sala de aula. 
É preciso, portanto, acabar com os dogmas pseudo-pedagógicos impostos [por responsáveis políticos]. 
Os programas devem ser reorientados para os conteúdos e não para os procedimentos; deve ser banida qualquer referência a um método obrigatório. 
Temos de apoiar um estatuto que reconheça a especificidade da profissão docente, que exige uma grande parte de tempo de trabalho organizado livremente, dedicado à pesquisa, à monitorização dos alunos e à colaboração com os pais e colegas. 
Os professores devem beneficiar de uma formação universitária de alto nível na sua disciplina, bem como em psicologia, sociologia, e história da educação. A iniciação progressiva às práticas da profissão deve ser organizada através da observação de aulas e do trabalho com os pares. A formação inicial e contínua deve dar uma visão geral de todas as correntes pedagógicas com base em conhecimentos comprovados.“ 
Isaltina Martins e Maria Helena Damião

4 comentários:

Carlos Fiolhais disse...

Comentário recebido de Maria do Carmo Vieira:

Muito grata por este artigo, Helena!

O grande problema é que o tipo de instrução que o Poder político tem impingido à Escola, não é nacional, mas fruto da Comissão de Educação e Cultura da Comunidade Europeia. É forçado. Bastou ver os programas de 2003 e o decalque de texto francês.

Não são só os professores franceses, mas os espanhóis, os alemães, os italianos, etc. A sociedade globalizante quer isto. Veja-se o que se passa no Brasil. Igual. Uma parte está com este sistema, outra parte de professores está frontalmente contra, de forma quase idêntica à dos franceses. As competências, a cidadania, os interesses dos alunos, os perfis (alunos, professores e tudo mais que apareça), a maldição lançada às aulas expositivas e à Literatura e outras artes, à Filosofia e à História, a psicologia de rua e outros vocábulos ou expressões aparecem por todo o lado. É o domínio do discurso absurdo, porque absurda e desumana (apesar de uma pretensa bondade) é a sociedade globalizante.

A Esquerda (e eu sou de Esquerda, mas não me integro nisto) ao defender os «coitados dos alunos» e ao optar por um discuro miserabilista (Agostinho da Silva bem o analisou), tem vindo a destruir a qualidade do Ensino. A Direita, pelo seu lado, aposta na destruição da Escola pública e nós andamos como peões nestas brincadeiras.

Um abraço cordial Maria do Carmo Vieira

Carlos Fiolhais disse...

Comentário recebido de Guilherme Valente:

Leiam e pensem neste texto colocado agora por Helena Damião, no Blog De rerum natura. Sinto-o, como se compreende, estou certo, como um acto de justiça e de reconhecimento ao que tenho andado a dizer há mais de trinta anos, quase sozinho, enfrentado insultos, ignorância, partidarites, estupidez e incompreensão. Sujeitando-me a comentários miseráveis no anonimato asqueroso e cobarde das chamadas redes sociais. Sem me apresentarem nunca qualquer argumento, ignorando os factos e a prova da realidade. E como eu sempre disse o erro não era da esquerda ou da direita, porque todos os partidos que passaram pelo poder deram displicentemente cobertura ao crime do que se foi fazendo desde o 25 de abril na Educação. Sottomayor Cardia foi o primeiro a perceber o que aí vinha. E os responsáveis por esse crime contra várias gerações de Portugueses continuam em cena, sem vergonha nem arrependimento. Leia-se o meu último artigo, por exemplo, Os Finalistas do Eduquês, os autores do documento que HD transcreve até parece que o leram: a mentira da interdisciplinaridade, etc., etc, tudo como referi.

Sei que não o publicou por mim, Caríssima Helena, publicou-o pelo País, pela Escola, pelas crianças, jovens, alunos que aí vêm, mas obrigado na mesma, por tudo isso, e também por mim...

Guilherme Valente

Helena Damião disse...

Agradecendo os comentários de Maria do Carmo Vieira e de Guilherme Valente esclareço que este texto foi publicado por mim e por Isaltina Martins. Aliás foi ela que o encontrou, trabalhámos ambas na sua tradução e adaptação e acabei por ser eu a disponibilizá-lo.
Este pormenor serve para sublinhar a ideia de que há muitas pessoas preocupadas com a orientação da educação escolar e a trabalhar na sua análise.
Cordialmente,
MHD

Anónimo disse...

Corroboro completamente as afirmações dos professores franceses.
Gostaria que os professores portugueses tivessem a coragem de proferir tais palavras.
Todavia, não acredito.

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