quinta-feira, 13 de abril de 2017

Reportório da ciência matemática em Portugal entre 1582 e 1623: André de Avelar em Coimbra e os jesuítas da Aula da Esfera em Lisboa

Início do artigo meu e de Décio Martins, com o título de cima, que acaba de sair no livro "Concilio de Trento. Inovar na tradição História, Teologia, Projeção", José Eduado Franco et al. (dirs.), Alcalá de Henares, Universidade de Alcalá, 2016 , p. 711:

 A meio do século XVI, o Concílio de Trento (1545-1563), que foi organizado em três sessões intervaladas no tempo) exerceu uma influência decisiva em todo o mundo católico. Que Portugal estava na primeira linha desse mundo é mostrado pelo facto de pertencer ao pequeno grupo de países que, em 1582, adoptou imediatamente o Calendário Gregoriano, preparado por uma douta comissão da Santa Sé presidida pelo jesuíta alemão Christophoro Clavius (1538-1612), talvez o mais famoso estudante de Coimbra, uma vez que estudou no Colégio das Artes, nessa cidade, entre 1555 e 1560, e promulgado, sob a forma de bula, pelo Papa Gregório XIII (1502-1585) [1]. O maior sábio português dessa época foi Pedro Nunes (1502-1578) [2] , cuja fama foi ampliada no estrangeiro graças a Clavius, que dirigiu o Colégio Romano, na casa-mãe dos Jesuítas: o jesuíta não foi discípulo de Pedro Nunes, mas apercebeu-se da sua reputação em Coimbra e estudou a sua obra como auto-didacta mais tarde, em Roma. Nunes, já velho e doente, não chegou a responder à solicitação que o Papa lhe dirigiu em 1577 de um parecer sobre a alteração do calendário juliano. Nunes, que se tinha jubilado da sua cátedra de Matemática na Universidade de Coimbra em 1562, um ano antes da conclusão do longo Concílio, faleceu na sua propriedade em Tentúgal, perto de Coimbra, em 1580, dois anos antes de o novo calendário entrar em vigor.

Passado o período áureo de Nunes, os tempos posteriores ao Concílio foram de um quase deserto da Matemática Cronografia ou reportório dos tempos: o mais copioso que até agora saiu a luz. Conforme a nova reformação do Santo Padre Gregório XIII no ano de 1582 [3],  no qual, conforme indica o subtítulo, apresentava e discutia o então muito recente Calendário Gregoriano. Essa obra, além de lhe ter assegurado consagração entre o vulgo, talvez lhe tenha também valido o lugar académico, dado ser a sua única obra publicada até então. Apesar de, à data da publicação desse livro, terem já decorrido mais de quatro décadas desde a publicação da polémica obra do astrónomo polaco Nicolau Copérnico (1473-1543), As Revoluções dos Orbes Celestes [4],  Avelar manifestava-se ainda, de resto tal como Nunes [5] e muitos outros nomes notáveis da ciência, favorável à imobilidade da Terra e, portanto, contrário à revolucionária tese heliocêntrica de Copérnico, que na época era repudiada em todo o mundo cristão, tanto por católicos como por protestantes. Avelar, em consistência com o que era então a doutrina oficial da Igreja Católica, baseada numa leitura literal da Bíblia, afirmou que ainda que aquele “doutíssimo astrónomo” tivesse suposto a mobilidade da Terra por suas demonstrações, não era crível que uma tal mobilidade fosse verdadeira, tendo Copérnico dado à Terra aqueles movimentos apenas para melhor conseguir o seu intento de salvar “as aparências dos planetas”, tal como aliás Ptolomeu tinha feito ao introduzir habilmente excêntricos e epiciclos no sistema heliocêntrico que largamente o antecedeu. Mas a posição tomada por Avelar de abono das teses da Igreja no que à astronomia dizia respeito não evitou que o seu livro viesse mais tarde a ser incluído no Index Librorum Prohibitorum, numa sequela da famosa lista de 1564 criada por Pio IV, o papa que presidiu à sessão final do Concílio de Trento, na sequência do primeiro Índex criado pelo Papa Paulo IV (1476-1559) em 1559. A proibição não ocorreu por o livro versar temas de astrologia.  A interdição da obra de Avelar deve-se antes ter ficado a dever à acusação de judaísmo que contra ele proferiu em 1623 a Inquisição, uma instituição instalada em Portugal em 1536, que floresceu sob a longa direcção do cardeal D. Henrique (1512-1580), inquisidor-mor entre 1539 e 1579, regente da coroa entre 1562 e 1568 e, finalmente, monarca entre 1578 e 1580, o último da sua dinastia. A Inquisição portuguesa viu-se revigorada após o Concílio, designadamente no início da dinastia filipina, tendo atingido um auge de processos na segunda década do século XVII. Era, de facto, comum os autores malditos verem proibida toda a sua obra, independentemente dos conteúdos particulares de um ou de outro livro. 

André de Avelar, professor de Matemática em Coimbra até se jubilar em 1612 (o ano em que Clavius faleceu), era cristão-novo tal como Pedro Nunes. Mas, ao contrário deste, que nunca foi incomodado pela Inquisição (dois seus netos foram-no, tendo estado presos durante longos anos), Avelar foi vítima de uma acusação do Santo Ofício. O processo contra o lente coimbrão correu a partir de 1616, tendo sobre ele recaído em auto-de-fé de 18 de Junho de 1623 a sentença de reclusão perpétua Avelar morreu em data algo incerta, muito provavelmente ainda em 1623, na prisão em Lisboa. Nessa época o Santo Ofício manifestava particular zelo: o lente de Cânones da Universidade António Homem foi queimado vivo após um auto-de-fé em 1624, depois de dado como culpado de criptojudaísmo, agravado por práticas homossexuais. Como é bem sabido, a Inquisição romana haveria de condenar Galileu uma década depois, em 1633. 

 Neste escrito, baseado em material contido na tese doutoral do segundo autor[6], para além de apresentarmos uma nota biográfica sobre André de Avelar, procurando divulgar o papel que desempenhou entre nós no ensino da Matemática, traçamos um panorama mais geral da ciência astronómica e matemática em Portugal nos finais do século XVI e inícios do século XVI, mais precisamente entre a publicação do Calendário Gregoriano, em 1582, e a morte de Avelar, provavelmente em 1623, um período assinalado na história da ciência mundial pelo alvorecer da Revolução Científica. Intentamos um breve “reportório” desses tempos da ciência no nosso país, que na Universidade de Coimbra ia fenecendo após o brilho conseguido por Nunes em meados do século XVI. À medida que em Coimbra a ciência declinava, ela continuava a ser praticada em bom nível na Aula da Esfera que os jesuítas, com a ajuda da sua boa rede internacional tinham instalado no Colégio de S. Antão, em Lisboa, em 1590. Nomes de professores de Matemática ligados de uma maneira ou de outra a Clavius iam mantendo viva a chama da ciência, conseguindo que o telescópio, o extraordinário instrumento utilizado pela primeira vez por Galileu, fosse usado primeiro em Portugal e depois no Extremo Oriente, evangelizado pelos jesuítas. Na conclusão, discutimos os efeitos do Concílio de Trento e da Inquisição nas ciências em Portugal. Ambos têm sido, com razão, associados à decadência da ciência e da cultura nacionais, como o fez, entre outros, Antero de Quental na sua famosa Conferência do Casino de 1871 sobre as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, mas há que não esquecer o papel positivo desempenhado pelos jesuítas ao longo do nosso bastante apagado, até pela perda da independência, século XVII.

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REFERÊNCIAS:

[1] FIOLHAIS, Carlos e MARTINS, Décio,  Breve História da Ciência em Portugal, Coimbra: Imprensa da Universidade e Gradiva, 2010  e FIOLHAIS, Carlos, História da Ciência em Portugal, Lisboa: Arranha Céus, 2013.
[2]  LEITÃO, Henrique, Pedro Nunes e a Matemática do Século XVI, in  C. Fiolhais, C. Simões e D. Martins (eds.),  História da Ciência Luso-Brasileira: Coimbra: Imprensa da Universidade, 2012, p. 19.
[3] AVELAR, André de. Cronografia ou reportório dos tempos: o mais copioso que até agora saiu a luz. Conforme a nova reformação do Santo Padre Gregório XIII no ano de 1582. Lisboa: Manoel de Lyra, 1585.
[4] COPÉRNICO, Nicolau, As Revoluções dos Orbes Celestes, Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1996 (tradução em português).
[5] LEITÃO, Henrique, «Uma nota sobre Pedro Nunes e Copérnico», Gazeta de Matemática, 143 (2002) 60-78.
[6] MARTINS, Décio. Aspectos da Cultura Científica Portuguesa até 1772. (Dissertação de Doutoramento). Departamento de Física. Universidade de Coimbra, 1997.
[7] QUENTAL, Antero de, Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, Lisboa: Tinta da China, 2008 (prefácio de Eduardo Lourenço).

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