Artigo recebido de Ana-Alice S. Pereira:
“A mente não é um vaso por encher; é uma lâmpada por acender”
Plutarco (século I)
O artigo de opinião de Guilherme Valente, publicado na última edição de “O Expresso”
sobre “O perfil dos alunos para o século XXI” aponta algumas questões bastante pertinentes, as
quais, infelizmente, têm passado despercebidas à opinião publica nacional. Quero crer que se a
grande maioria dos meus concidadãos anda distraída das questões verdadeiramente importantes
do ensino, será por ignorância dos factos e não por negligência cívica.
Sei do que falo: dirijo um centro de estudos e, portanto, conheço bem o paupérrimo estado
geral dos alunos, nos vários graus de ensino. E, contudo, tenho perfeita consciência que a “minha
gente”, com média de 4 no Básico, pode ser considerada na categoria dos bons alunos. No
entanto, nem os melhores de entre eles se mostram capazes de ordenar e exprimir ideias sem
hesitações. Um vocábulo menos habitual, é desconhecido; uma pergunta aberta, deixa-os sem
rede (“Mas o que é que eu digo?”).
Talvez o mais preocupante de tudo hoje no ensino em Portugal seja a incapacidade de os
alunos exprimirem ideias e articularem pensamento coerente em Português, ou seja na sua língua
materna. Aliás, acho que o mal até já chegou aos professores! Eu já vi claramente visto um recado
escrito na caderneta de uma aluna com dois erros ortográficos!! Muitas das dificuldades a
Matemática, são na realidade, dificuldades a Português, pois os alunos não conseguem interpretar
correctamente os enunciados. O mesmo a História, Geografia ou Ciências.
A Educação para a Cidadania deveria começar exactamente por aí: por transformar
completamente o ensino do Português de modo a proporcionar aos alunos a condição primeira da
cidadania, que é a capacidade de pensar, de articular ideias, e de se exprimir correctamente na
sua própria língua. É assustador como é hoje reduzido o vocabulário dos jovens portugueses! A
Língua Portuguesa correctamente falada e escrita tornou-se privilégio de uma elite culta, com
condições socio-económico-culturais próprias.
Mas, neste particular assunto como noutros, o Governo prefere entreter-se com floreados
ao invés de atacar os problemas de frente. Está-se mesmo a ver o que aí vem: uma nova área
disciplinar com um programa para tratar temas caros aos ideólogos do politicamente correcto. Na
melhor das hipóteses, acontecerá o mesmo que nas aulas de educação sexual, reduzidas a aulas
de higiene sexual, com enfoque quase exclusivo na prevenção de doenças, como se fosse
possível reduzir a sexualidade ao primado da f...., estripando a sua dimensão afectiva, amorosa e
espiritual!
O que o Governo nos propõe é que se arranje nos curricula escolares uma gaveta para a
cidadania, como se esta pudesse ser uma disciplina com matéria curricular e não um corpo de
valores intrínsecos à pessoa. Como se a cidadania pudesse não contemplar a Língua Portuguesa,
as Artes, as Ciências, as Humanidades, a Educação Física, como muito bem observa Guilherme
Valente no seu artigo. Afinal, o que faz um cidadão? Qual o perfil de um cidadão? Alguém capaz
de debitar umas ladaínhas do politicamente correcto ou alguém com espírito crítico, culto, capaz
de pensamento claro e expressão oral e escrita igualmente clara?
Há muitos anos que as corporações da mediocridade, quase sempre apadrinhadas pelo
Ministério da Educação, vêm roubando aos jovens portugueses o mais elementar direito de
cidadania: o direito à à liberdade de expressão. Pois, em última análise é disso que se trata: só os
que se conseguem exprimir correctamente (a Língua “como estrutura do pensamento e da
cidadania” de que fala Guilherme Valente no seu artigo), são capazes de se exprimir livremente.
Só esses serão capazes de dizer vemos, ouvimos e lemos, só esses serão capazes de avançar
sempre e não recuar / Quando se ergue a hora da ameaça.
É claro que este não é um problema exclusivamente português, mas isso já seria matéria
para outro escrito.
Mas, de uma coisa não tenhamos dúvidas: aproximam-se as horas de muitas ameaças. E,
na Europa cuja vida confortável temos por garantida, as ameaças sempre medraram sobre a falta
de cultura e de espírito crítico. Estamos a esquecer-nos disso porque há pelo menos uma geração
que já não sabemos história, nem filosofia.
Ana-Alice S. Pereira
D
irectora-geral do ATLAS do SABER
(ana.alice.pereira@atlasdosaber.pt)
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