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Realizaram-se ontem, em mais de meio milhar de cidades espalhadas pelo mundo, as primeiras "marchas pela ciência". Percebendo os motivos em favor dessas marchas, há qualquer coisa nelas que me desagrada profundamente e temo que o efeito seja contrário ao que se propõe: valorizar a ciência.
Voltamos a ver, na verdade, neste início de século, o conhecimento científico - aquele que é devidamente validado - igualado a ideias e práticas pseudo-científicas e, mesmo, anti-científicas. Isto acontece não numa mas em várias áreas disciplinares e tem lugar privilegiado no mundo académico, onde se torna difícil distinguir - nos sistemas de produção, divulgação, publicação e ensino - o que é ciência e o que só usa o seu nome.
Esta confusão, até pela rapidez com que a informação e a desinformação circula, depressa se infiltra no modo de pensar social: sem confiança na "verdade possível", que é a que a ciência pode buscar e oferecer, sem pontos de apoio que mereçam alguma confiança, depressa chegamos à dificuldade ou impossibilidade de comunicar e daqui à irracionalidade é um passinho de pardal.
Acresce que os sistemas de financiamento da ciência - de produção, divulgação, publicação e ensino - que, num determinado momento se entendeu deverem ser públicos, precisamente para evitar pressões sobre o pensamento livre de que a ciência se alimenta, têm sido deslocado para entidades privadas da mais diversa natureza.
E, mesmo quando financiados pelo dinheiro de todos nós, esses sistemas têm sido postos ao serviço da competição tecnológica, traduzida em ganhos económico-financeiros, entre países e entre regiões do mundo, pelo que os cientistas ou as equipas são instadas a mostrar produção que tem de ser de aplicação certeira, imediata e, claro, rentável.
Vence, como se tem visto, a tecnologia, muita dela sem ter sido submetida a qualquer critério ético. Nesta linha de ideias, entendendo-se que "só a ciência" - melhor, "a ciência que produz tecnologia usável" - vale, outras formas de conhecimento, a menos que se submetam a essa lógica, têm sido desconsideradas, acantonadas ou afastadas do cenário académico: a filosofia, a história, a ética, as línguas clássicas, a estética e a arte... são, talvez as mais prejudicadas. Tudo isto tem escavado os alicerces da própria ciência.
As reacções contra a ciência têm crescido em comunidades que nem sequer são desinformadas, a fraude infiltra-se, as empresas ligadas à ciência florescem... E tudo isto é aproveitado por quem precisa, como de "pão para a boca" da desorientação social para impor os seus propósitos políticos, comerciais ou outros.
O que acima descrevi já aconteceu antes e volta a acontecer. E isto por reacção ao cientismo/tecnicismo, a que os cientistas não têm dado a devida atenção, até pelo afã da produção em que se vêem envolvidos e que, se não for refreado, lhes consome todo o tempo e atenção.
Terão agora acordado para uma realidade que desaba, quando a "pós-verdade" e os "factos alternativos" já se encontram infiltrados no pensamento social, sendo que devemos questionar se será gritando, como afirmou um responsável político, em manifestações de rua, em favor da ciência que alguma coisa mudará nesse pensamento.
Duvido muito. E duvido porque entendo que, antes de mais, há pelos menos dois exercícios de reflexão muito profunda a fazer, sobretudo por parte de quem tem responsabilidades nesse campo de conhecimento tão maravilhoso quanto fundamental que é a ciência.
Um é interrogar-se sobre os desígnios a que ela tem sido conduzida e sobre a imagem que dela se dá para o exterior; outro é interrogar-se sobre as relações que mantém com outros campos de conhecimento.
Neste particular, em nada ajuda os cientistas dizerem que a "ciência é a resposta", que a “ciência e a tecnologia são os pilares do desenvolvimento de qualquer sociedade", que a "ciência é a principal ferramenta ao serviço da humanidade, que "o investimento em ciência é um investimento no futuro, para que todos possam viver num mundo melhor”, ou que “sem ciência não há paz, não há democracia e não há futuro”.
Estas frases desmobilizam quem, não sendo cientista e, mesmo, amando a ciência como forma de conhecimento, se vê desvalorizado e vê desvalorizado o seu também amado campo de estudo e de trabalho: os filósofos, os literatos, os artistas...
Na verdade, são os diversos campos de conhecimento, e não só a ciência, em conjunto e em diálogo próximo, que "são a resposta", “os pilares do desenvolvimento de qualquer sociedade", "a ferramenta ao serviço da humanidade, que "investindo neles é um investimento no futuro, para que todos possam viver num mundo melhor”, e que “sem eles não há paz, não há democracia e não há futuro”.
Mudar meia dúzia de palavras no discurso de cientistas e políticos ligados à mencionada marcha, não custa muito e faz toda a diferença. Mas é também mudar todo um sistema e isso não se faz com a facilidade com que escrevi o parágrafo acima.
Ver notícias aqui e aqui.
1 comentário:
Estão a marchar por George Soros, lamento!
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