quinta-feira, 27 de abril de 2017

"A educação do cidadão no século XXI" ou a reafirmação de que só "uma pessoa pode educar outra pessoa"


Transcrevo abaixo uma parte substancial da uma conferência proferida pelo filósofo espanhol Fernando Savater a meio do passado ano. As ideias que defende são, na linha do que defende para a educação, substancialmente diferentes do discurso vigente um pouco por todo o mundo. Por isso mesmo, vale a pena dar-lhe atenção.
"Queria falar-vos de educação para a cidadania. Educar não é simplesmente formar para o mercado de trabalho, formar trabalhadores de tal ou tal área. Obviamente, adquirir habilidades profissionais é algo importante e parte dos temas dos quais a educação trata. Mas a educação tem um projecto muito mais ambicioso. 
A educação quer formar pessoas completas. Na democracia é preciso educar pessoas de maneira aberta. Não se pode educar apenas para a guerra ou apenas para a agricultura ou apenas para o artesanato. Deve-se educa-las para a vida numa sociedade democrática. E, a partir daí, cada qual escolherá o seu caminho, a sua possibilidade. 
O destino da democracia está intimamente ligado ao destino da educação. A educação é o que permite a cada um ocupar um lugar não preestabelecido e sim aberto a todas as possibilidades dentro da democracia. Sabemos que pesam muito os condicionamentos sociais, as diferenças de estatutos e de riqueza, de economia, etc. (...). 
Mas se queremos fazer uma transformação não sangrenta (...) que não passe pelas execuções e pelas mortes, o mais parecido com uma revolução não sangrenta é, precisamente, a educação. Porque a educação é o que permite lutar contra a fatalidade social, o que se opõe à fatalidade social. É o que faz com que o filho do pobre nem sempre tenha de ser pobre, que o filho do ignorante não tenha necessariamente de ser ignorante, que os filhos do excluídos, dos que de alguma forma não têm colocação social, possam alcançar a sua colocação e o seu lugar social. A educação luta contra essa fatalidade que faz com que os filhos não tenham de repetir os erros, as deficiências, as carências dos seus pais (…). 
Há dois inimigos fundamentais da democracia, são a ignorância e a miséria. Esses são os dois inimigos que em todos os lugares corrompem e destroem a democracia. Todos os que lutam contra a ignorância e contra a miséria estão a defender a democracia. A democracia não é defendida bombardeando países ou exibições de força bélica. É evidente que hoje também existem outros males nas democracias. A corrupção, por exemplo, é um dos males que afectam a liberdade, onde existe liberdade, há quem a use bem e quem a use mal. Mas tudo isso tem de ser combatido, em grande parte, por meio da educação. Porque o mal da corrupção não é a violação em si da confiança que os cidadãos depositam num político, o mal da corrupção é a impunidade (…). 
Então, para isso deveríamos formar uma sociedade consciente. A educação tem de tentar reforçar os elementos de consciência democrática dos cidadãos. Os cidadãos têm de saber que o que ocorre na sociedade é algo que lhes diz respeito (…), que a vida social não é espectáculo que está a ser representado e nós estamos na plateia (…). Nós, cidadãos, estamos todos na plateia e estamos todos no palco (…). Por isso, a educação existe para formar cidadãos capazes de intervir na representação. 
Até que ponto é importante a educação na democracia? Pensemos que a educação é tão importante quanto a confiança que depositamos nos demais (…). A ignorância que é perigosa na democracia é a ignorância de quem é incapaz de entender o argumento alheio (…), é incapaz de entender um texto simples que apresente uma série de pontos importantes (…). 
Ora bem, só uma pessoa pode educar outra pessoa. Só podemos aprender a viver com outra pessoa, não com uma máquina, por mais perfeita ou extraordinária que seja. A internet e outros instrumentos, o que faz é dar-nos cada vez mais informação, essa informação é muito importante. É verdade que antes educar era, em certa medida, informar. As crianças chegavam à escola sem conhecer muitas coisas essenciais: as verdades do sexo, da morte, da ambição, etc. E aos poucos ia-se-lhe revelando essas verdades, digamos, conflituosas (...); hoje uma criança pequena viu tudo o que tem a ver na televisão até antes de a ver na escola (...). 
Então, a educação é ajudá-la a navegar por essa informação que ela recebeu (...) de modo avassalador, de modo surpreendente e que nela tem de distinguir o verdadeiro do falso, o útil do supérfluo, o positivo e socialmente interessante do atroz e criminoso (…). Ou seja, hoje a informação é simplesmente um mar no qual se deve aprender a navegar (…). 
Portanto, nunca se pode substituir o professor por um instrumento mecânico. Penso que uma das questões pendentes é reconhecer a importância e a dignidade social do professor."

1 comentário:

Anónimo disse...

Há os ignorantes de cima e os de baixo. Grande parte das pessoas mais educadas andam metidos em crenças pouco recomendáveis e/ou colaboram de alguma forma para coisas com as quais discordam.

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