Meu texto que acaba de sair na revista "Sementinha" do Colégio Campo das Flores:
As Nações Unidas, através da UNESCO, o seu organismo para a Educação, Ciência e Cultura, decidiram que o ano de 2015 seria o “Ano Internacional da Luz”. Sob esse grande tema inspirador que é a luz, o objectivo das Nações Unidas consiste em ligar, educar e inspirar os cidadãos das mais diversas nacionalidades. Num mundo dividido por um sem número de questões, questões políticas, sociais e religiosas, foi emitida uma chamada à celebração conjunta da luz e das suas aplicações que nos tornam a vida mais fácil.
A luz é o fenómeno físico que nos permite tomar conhecimento do mundo. Com o sentido da visão, assegurado pelos olhos que estão ligados imediatamente ao nosso cérebro que conhece, recolhemos a chamada luz visível, que é a luz emitida com maior abundância pelo Sol. De dia dispomos da luz do Sol que, como diz o provérbio, “quando nasce é para todos”. De noite, para além da luz do Sol reflectida na Lua, e da luz das miríades de astros, luminosos como as estrelas ou não luminosos como os planetas e as suas luas, dispomos da luz artificial que desenvolvemos para tornar a noite mais parecida com o dia. Algumas dessas tecnologias são bastantes recentes e estão a proporcionar benefícios civilizacionais inestimáveis: por exemplo, em continentes como África onde há vastas regiões sem rede eléctrica é possível hoje recolher de dia a luz do Sol através de painéis fotovoltaicos, guardá-la em baterias e usá-la de noite para iluminação recorrendo a lâmpadas LED.
É graças à luz que o mundo se transformou numa “aldeia global” possibilitando, por exemplo, comunidades educativas à escala planetária. A Internet chega aos vários continentes através de cabos ópticos que atravessam os oceanos. Nas nossas escolas e nas nossas casas o acesso à informação faz-se à velocidade da luz por fibras ópticas, podendo ser distribuída em profusão por meio de redes sem fio (WiFi). Também as redes telefónicas sem fios são hoje asseguradas por luz: a radiação de microondas que permite as comunicações entre telemóveis mais não são do que uma forma de luz invisível, uma luz que apenas difere da visível por ter um maior comprimento de onda (sim, desde há 150 anos que se sabe que a luz são ondas electromagnéticas).
Mas a luz é muito mais que um fenómeno físico e o seu aproveitamento útil. A luz é também uma forma de expressão artística: os construtores de catedrais da Idade Média coavam a luz do Sol por meio de vitrais preparados de modo fornecer as mais variadas cores e, hoje em dia, os artistas da fotografia, do vídeo e do cinema servem-se de meios tecnológicos bem mais sofisticados do que nos tempos medievais para captarem a Natureza ou todas as recreações que se podem fazer dela. Manipulando a luz os artistas conseguem transmitir não só ideias como sentimentos e emoções.
Na cultura em geral, a luz é ainda uma poderosa metáfora que significa esclarecimento, entendimento, compreensão. Ter uma ideia luminosa consiste em perceber algo que antes não se percebia. Na ilustração e na banda desenhada uma lâmpada acesa representa a eclosão de uma ideia. Dizemos, por exemplo que alguém faz luz sobre um assunto quando sobre ele efectua uma apresentação particularmente clara (a palavra clara já indica a presença de luz). A dialéctica física que opõe luz a trevas, claridade a escuridão, é transportada para o domínio humano quando opomos conhecimento a ignorância, verdade a falsidade. Quando o poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe morreu na cidade de Weimar em 22 de Março de 1832, as suas últimas palavras foram Mais luz!. Ainda hoje se discute se teria sido um simples pedido para abrir a janela ou, com um significado e âmbito muito mais profundos, teria sido a expressão de um desejo humano que ele próprio protagonizou ao longo de toda a sua vida: a aspiração a mais conhecimento, a mais verdade.
A marcha da humanidade, desde os primeiros hominídeos que habitaram o planeta seguramente há mais de um milhão de anos até ao moderno homo sapiens sapiens, que apenas apareceu há cerca de duzentos mil anos, tem sido sempre no sentido do maior conhecimento. De início, um conhecimento rudimentar a respeito do mundo, expresso de modo muito limitado, desde há cerca de seis mil anos, expresso simbolicamente através da escrita. Pese embora a invenção do papel e da impressão pelos antigos chineses, só desde meados do século XV, com a oficina do alemão Johannes Gutenberg na cidade de Mainz, foi possível espalhar conhecimento sob a forma impressa de um modo maciço e sistemático. A Revolução Científica, com a explosão de conhecimento a respeito do mundo que se deu a seguir com o astrónomo polaco Nicolau Copérnico, no século XVI, e com o físico italiano Galileu Galilei e com o físico inglês Isaac Newton, os dois no século XVII (o segundo a ocupar um bocadinho do século XVIII), não teria sido possível se as ideias científicas não se tivessem espalhado rapidamente a vastas regiões do globo sob a forma do livro impresso. Convém lembrar que tanto Galileu como Newton conseguiram grandes avanços no uso e conhecimento da luz, o primeiro ao construir e utilizar o primeiro telescópio, ampliando muito o poder do olho humano, e o segundo ao explicar o aparecimento do espectro de cores – as cores do arco-íris - quando a luz branca do Sol incide num prisma. É curioso que O Discurso do Método (de 1637) do filósofo, matemático e físico francês René Descartes, um contemporâneo de Galileu, contenha num dos seus apêndices uma descrição do mecanismo de formação do arco-íris, um conhecimento que, na geração seguinte, Newton haveria de completar. Quer dizer, o conhecimento científico não só se serviu da luz para compreender o mundo como procurou desde que eclodiu fazer luz sobre a própria luz, compreendendo melhor esse indispensável intermediário entre nós e os objectos do mundo.
Em 1865, o físico escocês James Clerk Maxwell escrevia, num artigo, as equações que hoje têm o seu nome, com as quais conseguiu decifrar a natureza da luz: uma onda, com qualquer comprimento de onda, capaz de se propagar mesmo onde não exista qualquer meio material, como o espaço entre o Sol e a Terra. Essa teoria matemática do electromagnetismo (uma descrição unificada da electricidade e do magnetismo) foi o “farol” que permitiu ao físico suíço de origem alemã Albert Einstein, no início do século XX, ver mais longe do que tinham visto os gigantes Galileu e Newton. Celebramos em 2015, neste Ano Internacional da Luz, o centenário da teoria maior de Einstein, a teoria da relatividade geral, que veio explicar melhor a gravidade que Newton já tinha descrito: a atracção gravítica deve-se a uma deformação geométrica do espaço à volta de um corpo pesado. A observação de um eclipse solar em 1919 na ilha do Príncipe, então território colonial português, permitiu confirmar a previsão einsteiniana de que a luz de estrelas situadas por detrás do Sol encurva ao passar rasante à nossa estrela. A luz segue a trajectória mais curta, mas perto do Sol o espaço é curvo.
Devido ao valor limite que representa a velocidade da luz (c = 300 000 km/s), muito provavelmente nunca conseguiremos viajar até essas estrelas de onde nos chega luz. Decompondo a luz vinda delas ou de quaisquer outras estrelas, usando um prisma semelhante ao de Newton, sabemos que a matéria das estrelas é matéria que encontramos aqui na Terra: hidrogénio que se transforma em hélio, que por sua vez se transforma em carbono e noutros elementos mais pesados. Com a ajuda da luz, sabemos hoje que todo o Universo é feito da matéria que conhecemos. Organizámos boa parte desse conhecimento recorrendo à Tabela Periódica. Sabemos ainda que o carbono e os elementos mais pesados que entram na nossa constituição só podem ser feitos naturalmente numa estrela e que foram "cozinhados" numa estrela anterior ao Sol, uma estrela que explodiu violentamente, espalhando a sua matéria no espaço. Nesse sentido, somos “filhos das estrelas”.
Usando agora a luz como metáfora, temos feito progressiva luz sobre o Universo em que vivemos embora haja muita coisa sobre a qual ainda falta fazer luz. Por exemplo, a chamada matéria escura, cuja natureza desconhecemos, é matéria que existe nas galáxias e que possui massa sem emitir luz como fazem as estrelas. Não sabemos, mas haveremos de saber! O nosso destino, como tão bem afirmou o astrofísico norte-americano Carl Sagan, é o conhecimento. Somos os únicos seres inteligentes do Universo, tanto quanto sabemos, que ambicionam conhecer e que conseguem conhecer. Sagan termina o seu livro Cosmos (edição ilustrada: Gradiva, 2001) afirmando:
“Somos a encarnação local de um Cosmos que toma consciência de si próprio. Começámos a contemplar as nossas origens: pó de estrelas meditando acerca das estrelas; ajuntamentos organizados de dez mil biliões de biliões de átomos analisando a evolução do átomo: descobrindo a longa caminhada que, pelo menos para nós, levou ao aparecimento da consciência. Devemos a nossa lealdade às espécies e ao nosso planeta. Somos nós que nos responsabilizamos pela Terra. Devemos a nossa obrigação de sobreviver não só a nós próprios, mas ao Cosmos, vasto e antigo, de onde despontámos.”
A escola é, na sociedade, o meio por excelência de transmissão de conhecimento às novas gerações. Não houve e provavelmente não haverá nunca um meio tão adequado para cumprir essa tarefa. A escola deve iluminar os jovens com base nos conhecimentos do passado para que eles se sintam capazes de viver melhor no mundo. Nalguns casos, da escola sairão aqueles que terão novas ideias, aqueles que conseguirão como tão bem disse Goethe Mais luz!
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2 comentários:
Um belo e muito acessível texto de divulgação científica, a que o autor nos habituou há muito. Vou colocar alguns excertos no meu blogue ( com a devida referência à origem).
Há uma pequena gralha no excerto que transcrevo (....)De noite, para além da luz reflectida do Sol reflectida na luz(...)
Regina Gouveia
Obrigado, Regina, já emendei essa e outras gralhas. Abraço Carlos Fiolhais
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