Meu artigo no último "As Artes entre as Letras" (quadro do pintor neoclássico austríaco Joseph Anton Koch, mostrando uma oferenda de Noé a Deus no fim do Dilúvio) :
Neste Ano da Luz
vale a pena falar do arco-íris. Este fenómeno atmosférico tem descrições muito
antigas. Uma referência aparece no Génesis
(9, 12-16):
“E disse Deus:
Este é o sinal do pacto que firmo entre mim e vós e todo ser vivente que está convosco, por gerações perpétuas: O meu arco tenho posto nas nuvens, e ele será
por sinal de haver um pacto entre mim e a terra. E acontecerá que, quando eu
trouxer nuvens sobre a terra, e aparecer o arco nas nuvens, então me lembrarei
do meu pacto, que está entre mim e vós e todo ser vivente de toda a carne que
está sobre a terra.”
Esta citação explica por que razão em português
arcaico se chama ao arco-íris “arco da velha”: Por velha subeentende-se a velha
aliança entre Deus e os seres vivos segundo a qual o Dilúvio não se voltará a
repetir. Coisas do arco da velha, por extensão, são coisas extraordinárias. O
arco-íris aparece também na cultura popular: de acordo com a lenda irlandesa
existe um pote de ouro num extremo do arco-íris. De facto, esse pote é uma
quimera, pois o arco-íris não passa de uma imagem. Se nos tentarmos aproximar
de uma ponta do arco-íris verificaremos que ela é etérea: mantém-se à mesma
aparente distância.
O arco-íris é uma imagem da luz do Sol, intermediada
por numerosas gotas de chuva (uma torneira
de rega também serve). Para haver arco-íris o dia tem de estar chuvoso, mas ao
mesmo tempo tem de fazer Sol: o Sol fica por trás do observador quando ele vê o
arco-íris. Se no tempo do anónimo escritor bíblico o arco-íris era um sinal
divino, hoje sabemos que não passa de um fenómeno natural. A luz do Sol entre
numa gota, é reflectida internamente na parede fronteira da gota e sai desta. Um
raio de luz muda ligeiramente de direcção ao entrar (fenómeno conhecido por refracção),
reflecte-se na parede do fundo e muda de novo ligeiramente de direcção ao sair.
O arco-íris resulta de duas refracções e de uma refracção em cada gota. Se o
Sol estiver demasiado alto, como acontece ao meio-dia, não haverá meio de a luz
entrar, ser reflectida e chegar aos olhos de um observador à superfície da
Terra (embora um arco-íris possa ser visto por um observador a bordo de um avião,
que poderá mesmo ter o privilégio de ver um arco circular completo, ao
contrário de um observador terrestre que não verá mais do que meio arco).
Esta explicação foi dada por um monge dominicano
alemão Teodorico de Freiberg, no início
do século XIV, embora o persa Qutb al-Din al-Shirazi tenha chegado quase ao mesmo tempo à mesma
conclusão. Os dois, sem qualquer contacto entre eles, conheciam as obras
antigas dos gregos (principalmente Aristóteles) e dos árabes (o mais famoso Ibn
Al-Haytham, cujo tratado de óptica data de há um milénio). E os dois
experimentaram a refracção com o auxílio de vasos esféricos de água.
Uma teoria mais elaborada da refracção, com uma lei
matemática precisa, foi proposta pelo francês René Descartes na obra Dióptrica
que aparece em apêndice ao Discurso do Método de 1637. Se o livro era
considerado um meio de encaminhar a razão de modo a não errar, o apêndice fornece
exemplos de aplicação. Chama-se em França lei de Descartes à descrição
cartesiana da refracção, mas no resto do mundo chama-se – e justamente – lei de Snell-Descartes ou
simplesmente lei de Snell, porque, em rigor, o holandês Willebrord
Snellius antecipou
essa lei (discute-se ainda hoje se Descartes teria tido conhecimento ou não do
trabalho de Snell), Uma famosa figura no livro do Discurso do Método apresenta
a descrição basicamente correcta do fenómeno do arco-íris.
E porquê as cores do arco-íris, supostamente sete,
mas de facto em número infinito, pois a cor vai variando continuamente no
arco-íris do vermelho em cima para o violeta em baixo? Pois foi Newton o
primeiro a oferecer uma explicação razoável: para ele a luz era formada por
corpúsculos e estes, dependendo da cor, andariam com velocidade diferente,
dentro de uma gota de água. Cerca de 1666 o inglês Isaac Newton efectuou
experiências com um prisma, que ele próprio poliu, de modo a criar um arco-íris
em sua casa. Para ele as cores estavam contidas na luz branca (na luz branca
existiriam, portanto, partículas vermelhas e violetas), não tendo origem no
prisma, que apenas as separava. Newton, ao tentar ver o que acontecia quando a
luz vermelha passava por um segundo prisma, verificou que esta não se
desdobrava em mais cor nenhuma. O branco contém as cores todas, mas o vermelho
já é uma cor elementar. A diferença entre os ângulos de entrada e saída da luz
branca e de raios violeta e vermelho numa gota é de, respectivamente, 40º e 42.º
Um observador verá o vermelho de uma gota mais acima e o violeta de uma outra
gota mais abaixo no céu. Cada observador vê o seu arco-íris, pois ele é uma miragem
individual: Outro observador, apesar de ver algo parecido, estará a receber os
raios vindos de outras gotas. De certo modo, cada observador é o centro do seu
próprio arco-íris, pelo que o leitor quando voltar a ver um arco-íris lembre-se
que ele é apenas seu.
Apesar da matematização do arco-íris, ele continuou
a maravilhar os seus mirones. Mas houve quem reagisse à sua captura pela
ciência. Em 1820, quando a reacção romântica se erguia contra a acção
iluminista, o inglês John Keats escreveu o poema:
“Todos os encantos não se
vão
Ao mero toque da fria
filosofia?
Existia um maravilhoso
arco-íris no firmamento:
Conhecemos a sua trama, a
sua textura, aparece
No frio catálogo das
coisas comuns.
A filosofia podará as asas
de um Anjo,
Decifrará os mistérios por
instrumentos,
Esvaziará o encanto do ar
e o tesouro escondido –
Desvendará o arco-íris.”
Julgo que não tinha razão, pois a ciência
acrescenta ao encanto estético do arco-íris o encanto da sua compreensão.
4 comentários:
Estimado Professor
Carlos Fiolhais,
Boa tarde. Apenas uma pequena nótula. Na frase parentética no título, onde refere Moisés, deverá escrever-se Noé, por se tratar deste último, a personagem bíblica retratada.
Obrigado por mais um artigo excelente.
Cordialmente,
Carlos Artur
Uma correcção, a bem da nossa matriz cultural. Moisés, a ter existido, viveu muitos anos após o dilúvio. O que se verá na imagem é uma oferenda de Noé, como, aliás, a Bíblia descreve.
Já emendei o lapso (que não sei explicar pois até andei na catequese). Muito obrigado pela pronta correcção!
Carlos Fiolhais
Um viveu no meio das águas, o outro separou-as e não se fie na catequese: não fosse o filme "A Bíblia" do John Huston produzido por Dino de Laurentiis e os "Dez Mandamentos" do Cecil B. DeMille, o que saberíamos nós!? :) ... coisas do arco da velha...
Enviar um comentário