sexta-feira, 20 de março de 2015

Conselho Científico da FCT arrasa a Estratégia de Investigação e Inovação do actual governo

Recebi este Parecer do CCCSH - Conselho Científico para as Ciências Sociais e Humanas da FCT sobre o documento “Estratégia de Investigação e Inovação para Uma Especialização Inteligente” (Fevereiro de 2015).  O título fala em especialização inteligente, mas ficamos a saber que de inteligente o documento só tem a palavra no título. Para aquele Conselho será antes um "atentado" à inteligência:

 Preâmbulo

 O Conselho Científico das Ciências Sociais e Humanidades exprime, através do presente documento, o seu parecer sobre A “Estratégia de Investigação e Inovação para Uma Especialização Inteligente”. Consultado sobre uma versão preliminar em julho de 2014, constatou-se que as Recomendações deste órgão não foram tidas em conta e em nada contribuíram para a versão final.

 Este é um documento estratégico, que define a agenda de investigação e inovação para os próximos anos e do qual as Ciências Sociais e as Humanidades são apagadas ou tornadas áreas subsidiárias de outros temas ou domínios de atuação. Este facto merece a nossa maior perplexidade e preocupação, levando-­‐ nos a emitir um parecer negativo a este documento. 

As consequências desta estratégia não são evidentes e é fundamental que seja transparente qual o seu impacto na futura alocação de verbas para a investigação. Isto é, que percentagem da dotação orçamental será colocada em projetos alinhados com o documento e qual a percentagem remanescente.

 Porque a eliminação das Ciências Sociais e das Humanidades de um documento com esta importância nos parece francamente empobrecedora para o país, consideramos importante a divulgação do presente parecer pela comunidade científica, para que possa haver uma reflexão conjunta e ponderada sobre a estratégia agora aprovada e para que se abra a possibilidade de reabertura deste documento, para uma inclusão de temas e questões pertinentes com o contributo destes domínios.

 Os nossos comentários dividem-­‐se nos seguintes tópicos: i) metodologia; ii) listagem de temas e eixos temáticos; iii) estrutura de governança; iv) implementação. 

(i) Metodologia 

O documento é muito explícito quanto à metodologia de elaboração e revela a existência de uma estratégia clara para a articulação entre setores que, tradicionalmente, não colaboravam na preparação e conceção do pensamento sobre investigação e inovação. 

É bastante evidente a articulação entre o Diagnóstico do SNCT e a preparação desta estratégia.

 É importante lembrar que a história da política industrial em vários países (enquanto incentivo a certos setores) não é muito estimulante, uma vez que é difícil saber-­‐se o que vai ter sucesso, não sendo provável que sejam os estados ou comissões criadas a descobrir as receitas de êxito. Mesmo centrado no desenvolvimento económico, um problema óbvio e estrutural que é apontado por qualquer observador da economia nacional é o nível de formação dos recursos humanos do país. Sem níveis mais elevados de capital humano, dificilmente qualquer estratégia de especialização inteligente funcionará numa economia moderna, porque o conhecimento está na base do sucesso, do mesmo modo que o acesso ao conhecimento é um direito de cidadania. O nível de educação médio do trabalhador português é muito baixo. As gerações mais jovens são bastante mais educadas, mas ainda assim o nível médio é baixo quando comparado com gerações equivalentes em outros países desenvolvidos. Além disso, vai passar muito tempo até que se renove o nível educativo da população ativa. Parece, portanto, essencial que a metodologia de elaboração desta estratégia coloque a qualidade de educação, a sustentabilidade do sistema de ensino e a qualificação como eixos prioritários ou preocupações estruturantes para a elaboração da estratégia. ´

Há alguns aspetos merecedores de preocupação sobre a metodologia desenvolvida: 

-­‐ É competência dos Conselhos Científicos o apoio à elaboração de políticas de ciência por parte da FCT. No âmbito desta competência, teria sido desejável que os Conselhos Científicos tivessem sido convidados a participar mais ativamente na elaboração deste documento, quer na fase de diagnóstico, quer na fase de identificação de temas e eixos prioritários. -­‐ Refere-­‐se, no documento, que o SCTN teve um crescimento muito significativo na última década, o que se torna visível nos indicadores de produtividade. Há uma correlação negativa que quer este documento quer o Diagnóstico ao SCTN estabelecem entre o investimento em Ciência e a baixa taxa de transferência de conhecimento para o setor empresarial que parece ser feita de forma algo elementar. Há dados cruciais para se entender este fenómeno – a que voltaremos – que não podem ser ignorados. 

-­‐ O crescimento do investimento em Ciência deve ser continuado. O sistema só amadurecerá e poderá dar frutos mais visíveis se houver previsibilidade e estabilidade no financiamento. O desenvolvimento do conhecimento científico não pode estar sujeito a modismos e a ciclos irregulares e instáveis de financiamento. Neste sentido, em termos metodológicos, o investimento em Ciência e a estabilidade do emprego científico devem ser perspetivados como eixos prioritários para qualquer tipo de especialização.

 -­‐ Refere-­‐se, no documento, que as áreas de maior competitividade científica foram aferidas também com base em publicações. Como é reconhecido por todos os stakeholders, a bibliometria de base comercial não é uma fonte credível de informação para garantir a visibilidade da produção científica em Ciências Sociais e Humanidades. Há, portanto, um enviesamento de raiz sobre o potencial das disciplinas destas áreas na sua participação na estratégia a definir.

-­‐ A palavra “excelência” é abundante no texto, mas a excelência não é nunca definida. Uma vez que o conceito é utilizado como critério, deve ser definido e, sobretudo, deve ser clarificado que a investigação de excelência carece de outra investigação que a promova e sustente e justifique, em termos relativos, o seu caráter de excelência. A nosso ver, uma estratégia inteligente deve não só capitalizar a investigação de excelência, mas identificar os potenciais de acesso à excelência a partir de uma cuidada e ponderada análise de progressão da produtividade e impacto. 

(ii) Temas e eixos temáticos 

Os 15 temas prioritários, agrupados em eixos temáticos, correspondem a tópicos porventura relevantes para a visão de Portugal em 2020, conforme enunciado no documento. Mas são, contudo, manifestamente insuficientes. 

Entende-­‐se a definição temática, e embora se sugira que todos os domínios científicos podem contribuir para estes eixos e temas de forma diferenciada, é muito claro que há domínios subsidiários ou que terão de recorrer a uma justificação fabricada para justificar a sua relevância para os temas escolhidos. 

A seleção de temas e eixos merece-­‐nos o seguinte conjunto de comentários: ´

-­‐ Estamos perante um conjunto de temas claramente orientados para a criação de valor económico, que surge, assim, como razão última da produção de conhecimento. Há alguma confusão entre temas e propósitos na forma como são apresentados. Deve ser tornado mais claro, no documento, se estão a ser listadas áreas temáticas de inovação e investigação ou setores de atuação que podem beneficiar de investigação e inovação. Esta diferença conceptual não é trivial, mas é fundamental para uma implementação das estratégias a desenvolver. 

-­‐ Por muito que não se queira, torna-­‐se evidente que há um enorme apagamento da investigação fundamental. Na melhor das hipóteses, pretende-­se que a investigação fundamental seja subsidiária ou enquadrada num conjunto mais vasto que tem como fim último a investigação aplicada e a articulação com o mundo empresarial. Deve ser tornado claro, idealmente até recorrendo-­se à exemplificação, o papel da investigação fundamental nesta estratégia. Se tal não for feito, corre-­se o risco de se estar a definir uma estratégia que tem efeitos a médio prazo na economia, mas que é estranguladora da criatividade científica e dos fundamentos epistemológicos do processo de criação de conhecimento – a experimentação e a falsificação de hipóteses.

 -­‐ A definição de uma agenda temática para a investigação deve envolver a comunidade científica. A definição de temas bottom-­up não pode ser descurada e, se existiu, tal não é visível no documento. A velocidade a que se produz conhecimento científico atualmente faz com que as agendas de investigação possam ser alteradas em períodos de três anos. Neste sentido, é fundamental que a definição de eixos e temas não possa ser considerada fechada, mas que haja espaço para que as comunidades científicas possam participar dinamicamente e de facto na definição de agendas de investigação. 

-­‐ Há temas cruciais que nos parecem não estar contemplados no documento. Parece-­‐nos que a listagem de temas pode ser fortemente enriquecida se forem incluídas as áreas de investigação a seguir referidas, que, não sendo exaustivas, são capazes de contribuir para uma melhor compreensão de Portugal em contexto europeu, da sua identidade e dos seus valores, numa lógica de diferenciação e especialização do conhecimento desenvolvido no espaço europeu: ´

Compreensão das cidades e do seu património – privilegiando-­se estudos de caracterização de cidades, de património histórico material e imaterial nas cidades em transformação, de fluxos migratórios, de multilinguismo, de urbanismo central e periférico e as diversas formas de expressão urbanas, nomeadamente envolvendo fusão de arte, empreendedorismo e ciência, etc. 

Aferição da qualidade das democracias e do exercício da cidadania – privilegiando-­‐se a identificação dos critérios que permitem aferir o papel na construção das identidades locais, nacionais e internacionais, as métricas de avaliação dos serviços públicos, os indicadores de desenvolvimento e qualidade do exercício da democracia, a especificidade da relação entre os estados europeus e cidadãos, o respeito pelos direitos humanos, etc. 

A este propósito, deve ter-­‐se em conta que Portugal e a Europa atravessam um período de profunda transformação/redução do Estado social e de incerteza, pelo que a reflexão/ação sobre os lugares vividos e a cultura partilhada tornam-­se essenciais como temas que enquadram o potencial de desenvolvimento económico e a segurança dos Estados, como contraponto aos nacionalismos emergentes. 

A aferição da qualidade das democracias (bem como a formação da opinião pública a que nos referiremos em seguida) deve passar pela constatação de que a relação dos cidadãos com as instituições representativas se tem vindo a deteriorar, como os elevados níveis de abstenção atestam de forma clara. Importa, assim, eleger como prioritária a qualificação da informação a que os cidadãos têm acesso. O documento aborda as indústrias culturais, mas apenas numa lógica de produção para o entretenimento, faltando referências à qualificação de informação para a tomada de decisão nos sistemas democráticos.

 Literacia, educação e desenvolvimento – sabendo-­‐se que a literacia e a qualificação são indicadores do desenvolvimento das economias, parece-­nos que são de privilegiar estudos que apontem caminhos para uma compreensão mais clara das estratégias para um melhor desempenho nestes domínios, face às características específicas do espaço europeu (assimetrias regionais, fluxos migratórios, variabilidade linguística, promoção da criatividade e da corresponsabilização comunitária pela tarefa educativa, etc.) 

Regista-­‐se ainda que o documento é omisso relativamente ao papel da educação no desenvolvimento individual, social, económico. Devem ser contemplados domínios como a criatividade, a educação artística e os aspetos sócio-­‐emocionais que matizam os processos educativos. Importa ainda salientar que tem vindo a ganhar enorme relevância a preocupação com o conceito de avaliação em todos os domínios de atividade, pelo que os estudos sobre avaliação não podem deixar de ser considerados prioritários.

 Conhecimento – privilegiando-­‐se estudos que, integrando a perceção de que a forma como o ser humano se relaciona com a informação está, atualmente, profundamente alterada, deem conta dos mecanismos cognitivos associados à organização e estruturação do conhecimento, bem como dos princípios filosóficos e éticos que norteiam, na sociedade contemporânea, a relação do indivíduo com a informação. Ainda neste âmbito, são de considerar os processos de decisão e os subjacentes à memória. Estes tendem a ser vistos como propriedade de indivíduos isolados. Contudo o estudo da memória social e colaborativa e dos processos de decisão grupais e em rede tem vindo a emergir com cada vez maior impacto em diversas ciências sociais e outras e tem-­‐se revelado crucial na explicação do sucesso ou insucesso na implementação de inovações e políticas. Daí que se devesse incentivar estudos sobre a forma como se constroem memórias e representações socialmente partilhadas quer de acontecimentos cruciais para as sociedades, quer de acontecimentos banais e estudos focados na maneira como as decisões políticas e económicas são condicionadas pelas redes institucionais e organizacionais em que se inserem.´

 Formação da opinião pública – obstáculos e facilitadores à formação de uma opinião pública informada – Aposta em estudos que elucidem e documentem os processos de formação de opinião em diferentes grupos etários e étnicos (entre outros enfoques identitários), nas suas facetas cognitivas, emocionais, societais e históricas, seus obstáculos e fontes principais.

 Língua portuguesa e lusofonia – têm sido vários os estudos e indicadores que reconhecem o valor económico da língua portuguesa. Parece-­‐nos que esta estratégia não pode ignorar estes resultados e deve privilegiar de forma explícita a língua enquanto instrumento de promoção da economia, da cultura e do encontro e aprendizagem recíproca entre culturas, das indústrias criativas e culturais e do próprio conhecimento científico. Mais do que se dizer que a língua pode ser um instrumento ao serviço de outros eixos de desenvolvimento, parece-­‐nos que a língua é, por si só, um eixo de desenvolvimento estratégico, em linha com as recomendações da última cimeira de ministros da educação e ciência da CPLP e o Plano de Ação de Lisboa. 

Famílias, parentalidade e envelhecimento – o tema do envelhecimento, que surge frequentemente em documentos estratégicos europeus, não pode ser dissociado dos temas “cuidado” e “baixa natalidade”, sobretudo num contexto de acesso restrito a elementos de cidadania reprodutiva (procriação medicamente assistida, etc.), e em que a prestação de cuidados a terceiros consolida fortes assimetrias em contexto familiar. Acresce que as práticas de conjugalidade e parentalidade estão em transformação acentuada, refletindo-­se nas expectativas individuais e na redistribuição de papéis sociais e recursos disponíveis, condicionados por crescentes taxas de desemprego e emigração de pessoas em idade reprodutiva. A conjunção destes fatores tem um forte impacto no sistema económico dos próximos anos e não estão devidamente singularizados no documento. 

(iii) Estrutura de governança. A gestão desta estratégia não está suficientemente explícita. Tendo, aparentemente, sido construída por vários agentes, as competências dos vários participantes devem ser clarificadas, sobretudo tendo em conta a perspetiva de este ser um documento em aberto com potencial de atualização e enriquecimento. 

(iv) Implementação 

As políticas enunciadas parecem-­nos demasiado centradas na articulação com o setor empresarial, afigurando-­‐se-­‐nos ser necessário equacionar um investimento em absoluto na investigação.

 Há um dado omitido neste documento que é fundamental para se perceber o diagnóstico: as qualificações médias dos empresários portugueses são bastante baixas, o que tem poder explicativo sobre a resistência à integração de pessoas doutoradas e pessoal técnico qualificado nas empresas. A inversão deste estado de coisas passa pela valorização da formação de quadros de empresas e pela promoção generalizada de uma valorização do conhecimento, o que não é visível no documento. 

Há propostas que nos parecem merecer revisão, como a sugestão de que os estatutos das carreiras de docente e investigador devem ser revistas para valorização da componente de colaboração com o setor empresarial ou o estatuto privilegiado dado à formação universitária conferida em associação com as empresas.

 A colaboração implica reciprocidade e, por este motivo, não nos parecem promissoras as políticas que submetem unilateralmente a academia ao meio empresarial. Não se encontram correlatos claros, como a valorização profissional de empresários que colaborem com as universidades ou políticas de benefício para as empresas que apoiem o conhecimento fundamental. Acresce que o conhecimento é um bem em si mesmo, e deve ser assim defendido independentemente das prioridades circunscritas de qualquer outro setor. Por esta razão, consideramos que o processo de auscultação descrito (50% de empresas e 50% academia) carece de sustentação ética e epistemológica, aspeto agravado pela ausência de auscultação das associações profissionais e científicas em CSH. 

Lisboa, fevereiro de 2015

O Conselho Científico das Ciências Sociais e Humanidades Fundação para a Ciência e Tecnologia

1 comentário:

Anónimo disse...

O primeiro passo fundamental para uma Especialização Inteligente é remover a secretária de estado e a direcção da FCT. Nessa altura fará sentido discutir o assunto.

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