quarta-feira, 18 de março de 2015

ROUBOS NAS ESTRADAS


Minha crónica no Público de hoje:

Pertenço ao numeroso grupo de portugueses a quem a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) está a ameaçar com penhoras por "dívidas de valor reduzido". Valor reduzido é um eufemismo pois, tudo somado, são largas centenas de euros.

A história não parece ser diferente de outras que já ouvi. Ao consultar a minha página no portal das Finanças fui surpreendido pela existência das tais dívidas. Achei-as muito estranhas pois sempre cumpri escrupulosamente as minhas obrigações fiscais e não tinha recebido qualquer notificação. Mas lá consegui desenterrar das profundezas do ciberespaço das Finanças (dizia, num português macarrónico, que o sítio “abria a AT à colaboração com os contribuintes”) uma série de formulários electrónicos que consubstanciavam vários processos de contra-ordenação. Eram “instaurações automáticas” todos elas por alegadas violações da lei n.º 25/06 ocorridas há três anos. A entidade autuante era uma tal Ascendi, que eu não conhecia de lado nenhum. Mas a entidade que fixava as coimas, portanto ao serviço da Ascendi, era o Chefe do Serviço de Finanças. Só para dar um exemplo, o Chefe tinha decidido aplicar uma coima estapafúrdia de 55 euros por suposta falta de pagamento de uma portagem de 5,50 euros, acrescida de custas obscenas de 38,25 euros. O “grau de culpa”, fiquei a saber, era “negligência.” Ora, se ali havia “culpa” e “negligência” era da Ascendi e da AT pois eu possuo um aparelho de Via Verde e todos os meses o meu banco transfere sem discussão a totalidade do que me pedem. Por descarga de consciência, ainda fui consultar os meus registos de Via Verde de há três anos. E tudo tinha sido rigorosamente pago. Portanto era um engano. Alertaram-me, porém, que a AT nunca se engana e raramente tem dúvidas, pelo que achei melhor colocar o assunto nas mãos de um bom advogado. Este depois de mais escavações na Net e de visitas às Finanças, conseguiu saber que as infracções não tinham, como eu supunha, sido feitas pelo meu carro, mas sim por um outro veículo, que tinha aliás passado em sítios onde eu nunca fui.

De repente, a olhar para a matrícula, fez-se-me um clique. Há três anos tinha comprado um carro novo, dando um velho à troca num stand de Coimbra. Deduzi que o carro antigo teria andado, depois de vendido (quando obviamente já não era meu), a passar por baixo de pórticos da Ascendi. O meu advogado entregou reclamação, informando-me que um tribunal de Braga já tinha anulado vários processos semelhantes e que o assunto estava até em discussão na Assembleia da República. Ainda procurei o stand que me tinha vendido o carro, ficando a saber que estava em processo de insolvência. O responsável pela empresa falida é dirigente do clube de futebol local, que me fez promessas de que ia ver o que se teria passado. Não foi nem vai pois pertence ao grupo de gente cujo “grau de culpa” é a negligência permanente. 

Ainda acredito na justiça e o processo seguirá os seus lentos trâmites. Estou a procurar desatar o processo tremendamente injusto que a AT me moveu. Eu não fui identificado, como manda a lei. E também não fui notificado, como também manda a lei. Isto é, a entidade autuante, a Ascendi, porta-se, em estreito conluio com a AT, à margem da lei, para não falar da evidente exorbitância que consiste em cobrar “quantias exequendas” e “acrescidos” (a terminologia faz parte da tortura!) que, podendo ser legais, são manifestamente imorais. Ilegal devia também ser o levantamento pela Ascendi e pela AT de processos distintos por cada passagem de um pórtico, num festim processual que é um insulto à inteligência.

O Estado português, actuando em nome de uma empresa privada, está a querer cobrar-me dívidas por infracções que não cometi. Embora inocente, já me vi obrigado a pagar parte das falsas dívidas, para evitar mal maior. Tem de haver responsáveis. O Ministério das Finanças tutela a AT. E as leis são feitas ou alteradas pela Assembleia da República que, neste momento, tem uma maioria PSD-CDS. Vou ser claro: a Ascendi, com a complacência do governo e da Assembleia da República, está a portar-se como um vulgar ladrão de estrada. E o Estado, despido de qualquer dignidade, está a defender interesses que não são públicos. O problema não é apenas do actual governo, é também da actual oposição, que consumou desastrosas parcerias público-privadas e aprovou a referida lei. Fui ver quem é o responsável pela Ascendi e descobri que é o sucessor de Jorge Coelho à frente da construtora Mota Engil.

O Estado é uma entidade abstracta, mas os políticos são pessoas concretas. São os políticos que ocuparam e que ocupam a máquina do Estado os responsáveis pela violência inaudita que está a ser exercida sobre cidadãos desprotegidos. Vejo muita gente conformada com o estado a que isto chegou, mas eu não me conformo. Nas nossas estradas os roubos não deviam ser permitidos.


3 comentários:

Anónimo disse...

Naturalmente, você tem 100% de razão. O que conta é absolutamente obsceno.

Mas, por que é que isto está num blog como o Rerum Natura? Quem vem aqui, vem à procura de Ciência e de outros assuntos entusiasmantes.

Por que é que, mesmo aqui, temos de levar com a Via Verde? E com um assunto pessoal de uma pessoa particular...

Tem de pensar nisso. Tem de haver locais onde não levemos com a crise, com processos de tribunal, com a Merkel... Se não for num espaço como este, onde é?

É claro que em nome da liberdade, todos devem falar do que quiserem, mas, por outro lado, quando se vai à página oficial do Benfica, não se espera lá encontrar debates sobre a lei de Newton.

Este post não é pontual. Mais de 1/3 dos posts deste blog, nos últimos tempos, são coisas análogas.

sobrevive-se disse...

Se calhar porque é por estes dias tão despudorada a acção do estado, desconsiderando de forma tão ultrajante os cidadãos em nome de interesses tão vis, tão descarados são o nepotismo e a venalidade de quem nos (des)governa ou alegadamente administra, tão impune e arrogante é tudo isso, que é urgente e legítimo dar disso conta em todo e qualquer local, em toda e qualquer oportunidade.

Rui Baptista disse...

Subscrevo totalmente o post e comentário "sobrevive-se". Trata-se de uma questão de cidadania que o cidadão Carlos Fiolhais critica por não se tratar de uma questão pessoal, mas de um assunto que diz respeito a todos nós quando vemos o Estado (com o dinheiro dos nossos pesados impostos!) cobrar "dívidas" (????) de uma entidade privada...

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