quarta-feira, 24 de abril de 2013

Toda a Ciência (menos as partes chatas)


Prefácio de Carlos Fiolhais ao livro "Toda a Ciência (menos as partes chatas)", dos Cientistas de Pé, que acaba de ser publicado pela Gradiva: 

O romancista Arthur Koestler, de origem húngara mas fixado na Grã-Bretanha, escreveu em 1964 um livro notável sobre a criatividade no humor, na ciência e na arte — The Act of Creation — em que analisou as ligações profundas entre o cómico e a ciência, por um lado, e a literatura, por outro. A sua tese pode resumir- -se na seguinte citação:

 O padrão lógico do processo criativo é o mesmo nos três casos: consiste na descoberta de semelhanças escondidas. Mas o clima emocional é diferente [...]: o símile cómico tem um toque de agressividade; o raciocínio por analogia do cientista é emocionalmente desligado, i.e., neutro; a imagem poética é compreensiva ou admirativa, inspirada por uma espécie positiva de emoção. Em qualquer dos casos, existe aquilo a que ele chamou «bissociação», uma ponte inesperada entre dois quadros de referência aparentemente incompatíveis. 

Numa anedota, há um efeito de surpresa, conseguido em regra por um final surpreendente, um punch, tal como na descoberta científica há um momento de eureca, quando se unem dois quadros conceptuais que se julgavam distintos, tal como na arte há uma visão amplificadora, conseguida, por exemplo, com uma metáfora, que permite a justaposição de duas visões antes independentes. O ensaio de Koestler, que foi, além de escritor de ficção, um grande divulgador de ciência (o seu The Sleepwalkers: A History of Man’s Changing Vision of the Universe, de 1959 é um clássico da divulgação da astronomia), insere-se em toda uma tradição filosófica de uma teorização do humor, de uma tentativa de fazer uma «filosofia do humor», que poderá remontar a Aristóteles («o riso pertence à categoria do horrível, vem de algo feio mas que não causa dor nem desastre, como a máscara cómica que é grotesca mas não dolorosa »), que passa seguramente por Kant («o riso é a afectação que surge da transformação súbita de uma expectativa tensa em coisa nenhuma») e por Schopenhauer («dois ou mais objectos são pensados usando um conceito, tornando-se manifesto da enorme diferença entre eles que esse conceito só se pode aplicar com uma visão unilateral»), para chegar até Wittgenstein («uma obra filosófica séria e de qualidade pode consistir inteiramente em anedotas»).

A ligação entre humor e ciência pode-se também estabelecer no domínio linguístico. Na língua alemã, a língua de Kant, Schopenhauer e Wittgenstein, Witz (dito humorístico, piada, anedota) tem uma raiz que é, afinal, a mesma de Wissen (saber) e Wissenschaft (ciência). No alemão antigo, a palavra Witze significava, para além de humor, inteligência, compreensão e sabedoria. O humor é, portanto, uma forma de inteligência. O escritor e filósofo setecentista alemão Gotthold Ephraim Lessing afirmou que «die schoenen Wissenschaften and freyen Kuenste das Reich des Witzes ausmachen» («as belas ciências e as artes livres compõem o reino do humor»).

Talvez David Marçal e a sua trupe de Cientistas de Pé tenham lido Koestler, ou, remontando no tempo, Aristóteles, Kant, Schopenhauer e Wittgenstein. Talvez dominem as subtilezas da etimologia da língua germânica. Ou talvez não. Mas o certo é que a presente colecção de escritos de humor, com base em temas científicos, abona a tese de Koestler e dá razão a Lessing. Um elemento de surpresa está omnipresente na comédia, tal como na ciência e nas artes. E, neste livro, há uma surpresa para além das surpresas, uma metassurpresa, já que os autores usam na sua escrita humorística ingredientes de ciência, um domínio geralmente considerado sério, muito sério, desmesuradamente sério. E a conclusão não pode deixar de ser a mesma de Lessing: as ciências e as artes são parte do reino do humor. Com esta obra, além de ficarmos a saber mais sobre alguns aspectos das multifacetadas ciências modernas, as ciências que tão fortemente moldam o mundo de hoje, ficamos também com uma imagem mais verdadeira da ciência e dos cientistas. Estes são capazes de não se levar demasiado a sério. Tal como estes Cientistas de Pé, os melhores cientistas são capazes do melhor humor. Uma das anedotas de ciência mais engraçadas que conheço é aquela em que alguém pede a Einstein para fazer uma conta simples, passível de ser feita mentalmente por um físico laureado com o Nobel,  este dá uma resposta surpreendente: «Julgam que sou algum Einstein?» 

O grupo dos Cientistas de Pé foi das iniciativas mais originais que surgiram na cultura científica em Portugal nos últimos anos. Tal como as numerosas pessoas que viram os seus espectáculos, ri-me muito. Com a publicação de Toda a Ciência (menos as partes chatas), a sua criatividade chegará mais longe. Muito mais gente se vai rir. Tenho a certeza de que, como a audiência dos seus espectáculos, os leitores inteligentes se vão sentir ainda mais inteligentes no fim da leitura.

Carlos Fiolhais

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