sábado, 13 de abril de 2013

Não é o primeiro caso, não será o último

Na contemporaneidade, no mundo ocidental, escolarizado, ordenado e asséptico, exploram-se, até onde a imaginação pode alcançar, corpos e sentimentos para gáudio, diversão, júbilo público... Em estúdios de televisão, em casas e espaços fabricados para o efeito ou já existentes... põem-se umas pessoas a participar em situações delicadas e outras a assistir.

Essas situações são pensadas, planificadas, incentivadas, exploradas e mostradas ao mundo (com a garantia, por via das novas tecnologias, de ficarem eternamente acessíveis) as facetas menos humanos do Humano. Quem participa nelas ou quem a elas assiste fá-lo por vontade própria, diz-se. Logo, está tudo certo.

Afinal, o pensamento social vigente, que tudo relativiza e subjectiviza, embandeirando o slogan "o que vale para mim não vale para ti", cunha como "certo" apenas e só o que o deriva da "vontade do eu".

Sabem alguns que a "vontade do eu" é (sempre foi e sempre será) apetecivelmente manipulável, mas aqui há que distinguir os que, conscientes da integridade e respeito que são devidos a cada pessoa denunciam a manipulação (o que soa estranho); e os que... vivem (muito bem) disso e com isso.

Centremo-nos nestes últimos: "empresas" e audiências".

As empresas usam uma receita extraordinariamente simples. Quanto mais escabroso, mais audiências e quanto mais audiências mais dinheiro a correr. Sem barreiras axiológicas, a sua imaginação não encontra barreiras. Quanto às audiências, essas sobem a cada patamar de desumanidade. As audiências têm a crueldade que têm, depressa se saciam e querem mais e mais.

Neste "harmonioso" rolar, chegámos a programas de televisão, do género reality show, que se vangloriam de pôr os concorrentes no limite das suas possibilidades físicas e mentais. São os programas de sobrevivência.

Num deles, recente, um concorrente não sobreviveu a um ataque cardíaco. Tinha 25 anos. Como se pode deduzir,  neste cenário, uma morte em directo, é o máximo. O coração deslambido das audiências faz disparar os números. Um sucesso.

Mas o que pode ser melhor do que uma morte? Duas mortes, obviamente! E, foi isso que aconteceu com o suicídio do médico que assistia os concorrentes. Tinha 38 anos. A carta que deixou dá a entender que não aguentou a suspeita de negligência que imediatamente recaiu sobre ele.

Uma certa comunicação social, que propaga estes programas e proporciona a tal fama de 15 minutos depressa estende o dedo da acusação para, claro está, satisfazer a sede de sangue das tais audiências.

O dito programa "apesar da popularidade" (detenhamo-nos nestas três palavras) vai ser cancelado, afirmaram os responsáveis por ele. É uma deliberação que não nos deve impressionar nem descansar.

Se nada for feito novos programas, ainda mais degradantes, surgirão. A destruição de pessoas, com muitos outros antecedentes, continuará. Talvez deva ser o próprio poder político a intervir, uma vez que as instâncias que regulam a comunicação social parecem não dar sinal de existência.

Nesta sequência, aministra da Cultura e Comunicação de França declarou a necessidade de se regulamentarem os espectáculos realistas "de modo a preservar a dignidade dos seres humanos, dos participantes e dos telespectadores".

Outros textos sobre o assunto, publicados no De Rerum Natura:
aquiaquiaqui aqui

Para escrever este texto tomei como referência as notícias dos jornais:
- Expresso on-line (aqui).
- Diário de Notícias, edição de 11 de Abril de 2013, página 51.

4 comentários:

Anónimo disse...

Muito... muito bom.

Profudamente pertinente.

Haja bom senso.

Obrigado pelo excelente, post

Rui Gonçalves

Joachim disse...

Acético ou assético?
Mesmo que tires o p de asséptico (maldito AO) não vale a pena ir buscar o vinagre.

Helena Damião disse...

Assético ou asséptico, sem dúvida.
Muitíssimo obrigada Joachim.

Anónimo disse...

Eis um tema que merece ser aprofundado: as estratégias de fabricação de audiências para os 'reality shows'. Cuja psicologia da degradação merece ser estudada e criticada.
Recentemente vi uma notícia sobre uma concorrente que havia deixado de ser professora, porque não suportava os alunos, e se iria dedicar à via artítica; a pose e os trajos, ou falta deles, eram indicativos do tipo de arte... Será que isto é expressão do consumar da confusão entre fama e prestígio?
Em dois anúncios da mesma companhia, uma jovem é salva, num caso por um bombeiro, noutro por um nadador, ambos colocando em risco a própria vida, porém ao simples vislumbre de um astronauta ela corre para os seus braços... Não são as boas ações e o reconhecimento que estes 'spots' promovem.
Muito há a fazer a respeito da crítica da 'cultura' mediática, que alguns pós-modernos querem colocar no mesmo patamar de outras formas de cultura.

Carlos Reis

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