segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Da nossa vitalidade intelectual

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Novo texto de João Boavida, na sequência do debate que tem convocado os leitores do De Rerum Natura e que tão interessantes achegas tem produzido.

A discussão provocada pelo meu artigo Podem destruir-se as culturas? foi muito interessante. Pela quantidade de bons e maus argumentos, pela maneira como alguns vão desviando a discussão daquilo que se disse, e logo outros a tentam recentrar, pelos preconceitos de quem lê, até lermos o que lá não está, pela reacção mais ou menos irracional que certos temas causam, pela fobia que certos portugueses sentem a uma cultura portuguesa, como se não houvesse efectivamente traços distintivos de uma cultura portuguesa, ou espanhola ou americana, (que, de resto, todos os dias nos entra em casa pela televisão). Penso que, de qualquer modo, o assunto é polémico e, como se vê, continua em aberto. E a quantidade de ideias postas em movimento é bastante significativa. De muitas coisas, e até de uma vitalidade intelectual que temos, muito maior do que a que julgamos e dizemos ter.

A resposta do Desidério à minha resposta/esclarecimento foi, obviamente, muito mais moderada que o seu artigo original, que, note-se, desencadeou inúmeros comentários dos leitores sempre atentos do De Rerum Natura. Nessa resposta Desidério, ajuda a colocar as coisas no seu lugar, mas insiste em certas ideias que não são as minhas e que, por isso mesmo, não as disse. Talvez consiga acabar por me colocar numa posição que não é a minha, mas não é justo.

Ninguém quer obrigar ninguém a expressar-se cientificamente em português. São atitudes inaceitáveis e além disso contraproducentes. São boas para isolar e estiolar culturas e pessoas. Nem o artigo pretendia defender a língua portuguesa, porque ela não precisa de defesa. Muito menos conservá-la, porque ela é por natureza dinâmica. E é dinâmica porque está viva e é falada por muitos milhões de pessoas. A sua vitalidade e riqueza (em boa parte pelo Brasil, Angola, Moçambique, enfim, PALOPs em geral), é impressionante. E a sua expansão em termos de falantes é também espantosa. Pelos números do Expresso de há poucas semanas ela vai já em 244 milhões de falantes e é a segunda de todas, depois do árabe, em termos de crescimento. (Estes números são de memória e não os garanto, mas podem ser verificados). Uma língua assim, não precisa de ser defendida e muito menos necessita de conservantes. Vir ainda por cima, a propósito disto, a falar em discurso nacionalista de defesa da língua, quando ela engloba já muitas nações, povos, e culturas, acho quase ofensivo, porque pensá-lo, nestes termos, seria um completo disparate.

Também ninguém defendeu a superioridade da língua portuguesa, relativamente às outras línguas cultas do mundo de hoje. O que eu pretendi dizer, e muita gente o percebeu e com isso concordou, é que não há razão nenhuma para a considerar inferior. Vir com o argumento de que ela é um erro histórico derivado de políticas perversas, é completamente errado. O que aconteceu com ela aconteceu com as outras línguas da Europa, quer de origem latina quer germânica. O desenvolvimento do inglês é sobretudo o resultado de factores económicos e políticos. A sua justificação científica, no ponto de vista histórico, não é nenhuma, ou, pelo menos, não é superior ao francês, ao alemão ou ao italiano. É hoje um veículo predominante, mas as línguas são mais do que veículos.

Portanto, sendo assim, é inaceitável que certas políticas científicas apostem na inferiorização, a prazo, do português. Desvalorizá-lo e diminui-lo, à partida, por certas opções de política científica, parece-me um enorme erro histórico.

É claro que nós temos necessidade de reconhecimento internacional, estamos em fase de crescimento, e precisamos de debate, e de confronto de ideias e de experiências e de resultados, e temos que ir ao encontro dos que, em cada área científica, o podem proporcionar ao mais alto nível. E para isso, hoje, o inglês é indispensável. Mas também precisamos de nos qualificar, e a partir de dentro. E de levar isso ao maior número possível de pessoas que entre nós disso precisam. E de nos respeitarmos por aquilo que somos capazes de fazer bem, levando a que um número sempre crescente de portugueses o saiba fazer e se sinta estimulado a percorrer os mesmos caminhos. E que isso seja, de facto, factor de dinamização social, cultural e económica. E que uma massa cada vez maior saiba distinguir o que é de boa qualidade científica e cultural e o que não presta, o que é cientificamente válido e o que não é. E isso passa pela publicação, o debate e a divulgação em português. E como o que produzimos pode ser sempre traduzido e publicado em inglês, parece-me que saltarmos por cima do português e dos portugueses, que até estão em dramático débito de formação e de qualificação, parece-me quase criminoso. Acho que sobre isto não é preciso dizer de novo o que muitos, e bastante bem, disseram já aqui. Agradeço-lhes na medida em que ajudaram a esclarecer e qualificar o debate.

Mas, para se perceber melhor a minha posição, volto ao ponto de partida, e até mais para trás, à origem da minha razão para escrever os artigos, o último dos quais foi aqui publicado, e originou tudo isto. Pertenço a um centro de investigação – o Centro de Psicopedagogia da Universidade de Coimbra – que sofreu as consequências da política de avaliação dos centros de investigação mandada fazer pelo Ministro Mariano Gago. É um pequeno centro, onde têm trabalhado cerca de trinta professores, que à investigação, em várias linhas, dão algum do seu tempo; aquele que podem em vista de tudo o mais que têm de fazer. Tem feito muitos congressos internacionais, com participação de investigadores internacionais cotados, juntamente com os do Centro e de outras universidades e organismos portugueses onde há gente que tem trabalhado nesses temas. Desses doze ou treze congressos, dos últimos anos, tem resultado uma assinalável produção, de investigadores portugueses e estrangeiros (dos Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Espanha, Neo-zelândia, Austrália, Brasil, Canadá, Escócia e Porto-Rico, pelo menos). Ou seja, para lá do que cada um dos investigadores publicou, por si, em revistas portuguesas e estrangeiras, e em livros, estes congressos produziram, e deram origem à publicação, de cento e setenta e seis artigos (176), oitenta e seis (86) de portugueses e oitenta e nove (89) de estrangeiros, tendo ainda a maioria dos artigos sido traduzida pelos membros do Centro.

No final, e em trabalho visível e avaliável, e repito, independentemente das publicações de cada elemento em diversas publicações da especialidade, temos: Um número temático da Revista Portuguesa de Pedagogia (2000, 1, 2, 3), Comportamento anti-social e educação (729 pp), e dois volumes publicados pelo próprio Centro de Psicopedagogia: Problemas emocionais e comportamento anti-social (2001) 281pp. e Comportamento anti-social: escola e família (2003) 361 pp. E, ainda, oito (8) volumes da colecção Psicologia, da Almedina (uma colecção notável, até pela originalidade e qualidade gráfica) onde foram publicados: Comportamento anti-social e família – uma abordagem científica (2002), 499 pp.; Crianças e jovens em risco – da investigação à intervenção (2004), 235 pp.; Comportamento anti-social e crime (2004), 461pp., Ensaios sobre o comportamento humano – do diagnóstico à intervenção (2005), 484 pp.; Psicologia forense (2006), 665 pp.; Psicologia e educação – novos e velhos temas (2007), 417 pp.; Psicologia e justiça (2008), 505 pp. e A maldade humana – fatalidade ou educação? (2008), 360 pp.

Não contando ainda com outro volume que está para sair, temos, em oito anos (2000 – 2008) cinco mil páginas publicadas (5000), metade das quais de autores estrangeiros, com trabalhos e investigações nestas áreas, que foram convidados a participar nos congressos precisamente por isso, e outro tanto, basicamente, dos membros do Centro. Os livros estão aí à venda e podem ser avaliados à vontade.

Ora bem, todo este esforço de internacionalização, feito nas condições precárias e difíceis em que as coisas são feitas em Portugal, foi considerado sem valor por critérios que deliberadamente desvalorizaram o publicado em Português. Mesmo que, como neste caso, metade resulte de traduções de especialistas estrangeiros, obrigue os nossos investigadores a confrontarem-se com os estrangeiros e concorra para a divulgação científica de alto nível em Portugal. Digam-me se isto é justo e se é o melhor caminho para estimular a investigação em Portugal.

João Boavida

37 comentários:

Vitor Guerreiro disse...

Aqui há um problema no uso da palavra "cultura", porque a palavra tornou-se ambígua devido à bibliografia de inspiração antropológica.

a) por um lado há noção de cultura como simplesmente o conjunto das contribuições humanas para o conhecimento e a produção de valor, artístico ou outro. Segundo essa noção, a cultura é apenas as ciências, a literatura, a filosofia, as artes, etc, independentemente das associações políticas, territoriais, étnicas, genéticas, etc.

b) há outra noção de cultura, que em alguns círculos de inspiração antropológica dão origem a expressões bizarras como "cultura material", segundo a qual a cultura é tudo o que alguém faz em qualquer lado e em qualquer momento do tempo. Os partidários desta noção dividem-se entre os monoculturalistas, que defendem a superioridade de uma "cultura", e os multiculturalistas que defendem o igual valor de todas as "culturas".

Acho que a noção b) é problemática, embora não seja aqui o lugar para a discutir. Traduzi ontem um pequeno texto do Julian Baggini sobre este assunto que deve ficar disponível na Crítica em pouco tempo. Podemos discutir depois as virtudes e maleitas dessa apresentação.

Basicamente: a ideia de uma "cultura portuguesa" distintiva é problemática porque não passa de tentar definir as pessoas em função de um denominador comum ilusório. Sou "mais" português se ouvir fado do que se ouvir blues? Porquê? Sou "mais" português se ouvir um mau compositor português clássico (por exemplo, o pimba Ruy Coelho) do que um bom compositor húngaro que inspirou compositores portugueses muito melhores? Será que uma porcaria musical que insista em temas reconhecíveis do folclore português é "mais" português do que uma sinfonia "cosmopolita" musicalmente muito melhor? Porquê

Em suma: que importância têm as culturas nacionais, se é que tal coisa existe, e por que raios devem ser importantes? A imagem que sugerem (o Baggini explora isto) é a de pequenas jaulas onde ficamos presos para divertimento dos multiculturalistas que pretendem valorizar por igual todas os modos de viver, sem perceberem que o seu prazer particular depende de haver outras pessoas que ficam presas numa única jaula. Se as pessoas saltarem frequentemente de jaula para jaula, até esbater as fronteiras, lá se vai o arco-íris que o multiculturalista tanto aprecia.

Esquecendo agora isto do multiculturalismo.

A língua portuguesa não é inferior nem faz sentido dizer que seja, a não ser metaforicamente. Talvez para agitar as consciências, caímos na tentação de usar uma linguagem mais ácida do que o normal. Eu faço isto com o nacionalismo porque é realmente uma coisa que me poe fora de mim. Enoja-me realmente. Tanto mais quanto a paranóia tem aumentado nos últimos anos, de uma maneira aberrante, ridícula, pimba.

Não há línguas inferiores ou superiores porque qualquer língua pode ser trabalhada e cultivada. Mas há línguas menos cultas do que outras, desde que nessa língua não haja produção cultural relevante. Significa isto que nao temos monumentos na nossa língua? Não. Mas o que temos são coisas como um "Camões" de 100 em 100 anos e não uma prática consistente que tenha uma relação vívida, real, com o grande público.

O que um filósofo precisa é de discutir com os pares, por isso faz sentido textos e artigos mais "pesados" numa língua que lhe dê maior público. O que ele pode fazer é contribuir (Se quiser) para a diminuição do défice científico, artístico ou filosófico na sua língua materna.

Mas como o Desidério sugeriu, talvez o mais interessante fosse mesmo sermos bilingues.

Por exemplo: estou neste momento a traduzir uma obra de filosofia política que pouco ou nada vai adiantar ao grande público português. Porquê? Porque o grande público que lê português tem falta de boas obras introdutórias à filosofia em geral, quanto mais à filosofia política. Durante anos "filosofia política" entre nós não passou de umas escaramuças ridículas entre fãs do marxismo a vomitar frases feitas, contra fãs de outra coisa qualquer a vomitar frases feitas. Há um défice tremendo de pensamento e sensibilidade a estas áreas. Como vamos colmatar isso? Com obras muito avançadas que só percebem aqueles que de qualquer maneira as lêem no original?

Bolas, é mais útil que as pessoas que dominam essas obras as discutam no original, e publiquem boas obras de divulgação em português.

Dito isto, peço desculpa por quaisquer extravasamentos ruidosos que a minha antipatia pelo nacionalismo possa ter suscitado, em particular ao autor do post. Isso e talvez ter divagado entre coisas muito diferentes sem mostrar sempre que já não estava a atacar a mesma coisa.

joão viegas disse...

Caro Vitor Guerreiro,

Eu ja nem estou a procurar convencê-lo, mas apenas a ver se você compreende a critica que lhe é dirigida (e, desculpe la, mas não me parece ser o caso).

Quando leio o antepenultimo paragrafo do seu comentario fico na duvida... e até com alguma curiosidade em saber qual sera a obra que você esta a traduzir, tão fina que você exclui à partida que ela possa vir a interessar os Portugueses ?

E também me custa compreender quem pode ser perverso ao ponto de o obrigar a fazer um trabalho em que você manifestamente não vê nenhum interesse. Deve ser bem pago com certeza, mas quem paga, e porquê, é para mim um mistério. So se fôr para o distrair de actividades mais nobres...

E qual pode ser a relação disto tudo com filosofia politica, é também uma coisa que me escapa.

Mas não perca tempo em responder-me, eu sou apenas um brutamontes de um Português...

joão boaventura disse...

Do joão Boaventura ao João Boavida

I - Como os filósofos têm horror ao óbvio, posso entender as razões que levaram John Locke a considerar, no § 134: “That which every gentleman (that takes any care of his education) desires for his son, besides the state he leaves him, is contained (I suppose) in these four things, virtue, wisdom, breeding, and learning. I will not trouble myself whether these names do not some of them sometimes stand for the same thing, or really include one another. It serves my turn here to follow the popular use of these words, which, I presume, is clear enough to make me be understood, and I hope there will be no difficulty to comprehend my meaning.” (Some thoughts concerning education, A New Edition, London: Sold by J. and R. Tonson in the Strand. 1779).

Por ser a segunda vez que faço referência a Locke, neste blog, peço desculpa, mas, por me parecer a propósito, o incluo, não sem me penitenciar.

II - Como permanentemente falamos dos permanentes (passe o pleonasmo)deslocamentos entre (na linha de Saussure)o significado e o objecto, entre o significado e o significante,
Wittgenstein considera, como Locke, que o signo ganha sentido apenas no seu uso: “Todo signo sozinho parece morto. O que lhe dá vida? No uso ele vive.” (Investigações filosóficas, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 129).

III - Habermas depois de ter ouvido um conferencista falar sobre a legitimidade, levantou a voz para dizer:
"Você falou de legitimidade, mas é necessário saber do que é que fala, quando fala de legitimidade, para nos entendermos."

Posto isto, é meu parecer, que os desvios que ocorreram, e ocorrerão, como reacção à exposição de João Boavida, resultarão, hic et nunc, do facto de o autor não explicitar "de que é que fala, quando fala de cultura, para nos entendermos".

Porque, deixar ao arbítrio de cada um o conhecimento ou o entendimento do que seja "cultura", origina a dispersão de ideias e imagens, e a multiplicação de significados e significantes, não coincidentes com o signo "cultura". E, porque é deste desentendimento que João Boavida se lastima, penso que o primeiro problema reside na clarificação de "cultura", e não deixar, como Locke, que confiava no entendimento de cada um, e como Wittgenstein para quem o uso do signo lhe dá vida.

Nesta ordem de ideias, é muito provável que também acabe por não me ter explicado convenientemente, e ficar sujeito a múltiplas e dispersas interpretações.

Cordialmente

Anónimo disse...

Dizia o Boavida no seu post original:
"Quando os cientistas só falarem e escreverem em inglês e os alunos tiverem que falar inglês nas universidades, o inglês acabará por vir para as ruas, TRANSFORMANDO AS OUTRAS LINGUAS NUMA MISTURADA, como aconteceu com o baixo latim."

Parece que a má-vontade do Boavida se resume toda ao sublinhado. É a versão do purista-nacionalista mais ou menos consciente. Causa-lhe horror a mistura, seja ela de linguas, de raças, de culturas ou do que for. E se virar uma misturada? Qual o mal nisso? Para o Boavida claro que seria um desastre. Mas para a imensa maioria não seria pelo contrário salutar? Eu sou defitivamente pela mistura, por uma lingua tutti frutti.

Anónimo disse...

Está aqui a dar-se um ênfase exagerado à vertente cultural na questão da língua. Há perspectivas práticas bem mais importantes.

Quando um dia os EUA disserem aos europeus que estão fartos de mandar os seus soldados para as guerras de que os europeus têm vindo a fugir, a União Europeia vai ter de constituir um exército a sério. Os militares vão ter instruções em quantas línguas? Ou vão adoptar uma língua comum ? Qual será?

Quando se reunirem numa mesma nave espacial uma série de astronautas de diferentes nacionalidades, numa viagem que pode durar vários meses ou anos, juntam-se aos grupinhos a falar as suas línguas maternas ou vão adoptar uma língua comum? Qual será?

De uma forma mais geral, os habitantes do planeta vão continuar eternamente a falar milhares de línguas diferentes, ou vão adoptar uma língua comum? Qual parece que seja? Por muito que custe aos nossos nacionalistas, o português não será certamente.

Por isso, não nos fica mal começar a preparar o caminho para, daqui por uma geração, podermos decretar o inglês como segunda língua oficial do país.

Não vale a pena gastar o dinheiro dos contribuintes a ensinar outras línguas nas escolas públicas. Mas quem quiser não fica proibido. Terá é que pagar do seu bolso. Usarem os meus impostos para pagar o ensino do francês, alemão e até mirandês, é que não aceito.

Jorge Pacheco de Oliveira

Anónimo disse...

A resposta a essa questão já foi dada há muito. Por exemplo, na Airbus a língua france é o inglês o que não impede que os seus trabalhadores, ao falarem uns com os outros no corredor, usem as suas próprias línguas nacionais. Acho que não vale a pena perder o sono com isso. O tipo de situações descritas resolve-se por si mesmo devido aos requerimentos operacionais.

Anónimo disse...

Esteja descansado Kyriu. Eu não perco o sono com isso. Até porque sei que o inglês será a língua comum no planeta dentro de alguns anos. Mas não tenho qualquer preconceito contra as línguas maternas. Cada um fala em casa o que quiser.

O que acontece é que neste debate anda escondido um argumento que alguns fazem os possíveis por não deixar vir à superfície : a animosidade contra os países anglo-saxónicos, em particular contra os EUA.

JPO

Anónimo disse...

Summa summarum: fazendo o ponto da situação psrece haver duas conceções frontalmente opostas:
Uma, a dos adeptos do Viva a Lusofonia!; a outra, a dos que preferem o lema Que se Foda a Lusofonia! Será viável a famosa terceira via?

Desidério Murcho disse...

“ninguém defendeu a superioridade da língua portuguesa (...). não há razão nenhuma para a considerar inferior. Vir com o argumento de que ela é um erro histórico derivado de políticas perversas, é completamente errado. O que aconteceu com ela aconteceu com as outras línguas da Europa, quer de origem latina quer germânica. O desenvolvimento do inglês é sobretudo o resultado de factores económicos e políticos. A sua justificação científica, no ponto de vista histórico, não é nenhuma, ou, pelo menos, não é superior ao francês, ao alemão ou ao italiano. É hoje um veículo predominante, mas as línguas são mais do que veículos. Portanto, sendo assim, é inaceitável que certas políticas científicas apostem na inferiorização, a prazo, do português. Desvalorizá-lo e diminui-lo, à partida, por certas opções de política científica, parece-me um enorme erro histórico.”

Isto parece querer dizer que se a língua portuguesa fosse inferior, poderíamos deitá-la fora; e que se a língua inglesa fosse intrinsecamente superior (seja lá isso que misticismo for), e não o resultado de meras contingências históricas, poderíamos também deitar fora a língua portuguesa. Tudo isto resulta de uma incompreensão fundamental das coisas. A força da língua inglesa como língua de ciência nada tem a ver com qualquer essência mística da língua inglesa, ao contrário do que o tolo do Heidegger parecia pensar relativamente ao alemão e o Álvaro Ribeiro relativamente ao português. Estas ideias são tolas. Línguas diferentes têm diferentes recursos lexicais, sintácticos e gramaticais, mas estes são alargados e modificados com o tempo à medida que as pessoas que usam a língua precisam disso; a única razão pela qual o alemão ou o inglês têm capacidades expressivas que não temos em português é porque o português nunca foi muito usado para fazer ciência, filosofia ou história – é uma língua sobretudo oral e a esmagadora maioria das pessoas que a falam hoje em dia não sabem escrever ou sabem escrever muitíssimo mal, e são incapazes de compreender um texto escrito com uma página.

Desidério Murcho disse...

Quanto à última parte do artigo, eu teria de conhecer os pormenores para saber se concordo ou não com a desvalorização. Mas desde sempre admiti que o provincianismo do inglês é grotesco na academia lusa. Na verdade, o provincianismo é grotesco, ponto. Como referi, isto resulta da incapacidade para ver a qualidade em si, sem estar sancionada por autoridades estrangeiras, o que é uma enorme tolice. Mas se queres que te diga, discordo de outra coisa mais fundamental: do modelo de financiamento da investigação, baseada em formulários e critérios e tolices burocráticas em excesso. Só que não sei qual poderia ser a alternativa. Pessoalmente, prefiro trabalhar sem me meter nessas tretas dos centros e financiamentos e formulários e etc. Na verdade, a maior parte do trabalho académico de valor que se pode fazer em filosofia, felizmente, não exige quase dinheiro porque não usamos laboratórios, químicos, máquinas, pelo que posso passar ao lado dessas maluquices das avaliações.

Desidério Murcho disse...

Concordo com o tutti frutti!

Anónimo disse...

Há uma nota que gostaria de deixar e que se prende com a literatura em português. Uma coisa de que me apercebi nos últimos tempos é da falta de visão global em relação à literatura que se dá a estudar aos nossos alunos (especialmente no secundário). Notem-se as obras (ou autores) que são lidas (falo do que eu tive que ler, há cerca de 15 anos) na disciplina de Português: Camões, Pessoa, Eça, Almeida Garret, Júlio Dinis, etc. Talvez possamos adicionar Vergílio Ferreira, José Saramago, Lobo Antunes, Camilo, etc.

Em qualquer dos casos estamos a falar apenas e só de autores portugueses. Entendo ser esse um dos problemas. Fechamo-nos numa tradição de escrita algo hermética, apenas porque a disciplina é "Português". Não vejo porque razão não se deveria transformar a disciplina em "Literatura" e passar a incluir grandes autores da literatura mundial (Tolstoi, Cervantes, Mann, etc, cada um que dê as suas ideias. Este conceito, a meu ver, é válido, especialmente a partir do momento em que a gramática é deixada para trás e nos centramos apenas em análise aos textos e às obras.

Vantagens? Bom, a língua e a perspectiva passaria a ser mais rica devido à contribuição de outras visões (de notar que isto só seria válido com traduções decentes), o que, em contrapartida, teria o efeito futuro de tornar a língua portuguesa mais dinâmica e mais viva.

Anónimo disse...

Quanto ao ensino de outras línguas, estou em profundo desacordo com a perspectiva de Jorge Pacheco de Oliveira. Concordo apenas no facto de se promover o ensino da língua inglesa e, na minha opinião, o mais cedo possível (o contacto poderia ser iniciado ainda na pré-primária). Aquilo com que estou em desacordo é com a ideia de se dever pagar do próprio bolso qualquer aprendizagem de outras línguas (sejam elas o alemão, o francês ou o castelhano ou ainda outra qualquer).

É um facto que se devem estabelecer prioridades. Para além do inglês, faz sentido considerar que as restantes línguas importantes para Portugal, num contexto linguístico, geográfico e histórico, serão o francês, o alemão, o castelhano e o italiano. Para além das clássicas - latim e grego - naturalmente. Estas línguas devem continuar a ser apoiadas pelas mesmas razões que referi no meu comentário anterior: enriquecem-nos. Não só enriquecem a língua (aprende-se muito do português ao aprender outras línguas) mas enriquecem as próprias pessoas. É o mesmo que ensinar literatura. Pela lógica de JPO, a literatura não deveria ser ensinada publicamente. Quem quisesse aprender mais, que o fizesse com o seu dinheiro. Mas aprendemos literatura e saímos enriquecidos disso. Como indivíduos e como população (não gosto do termo "povo").

Quanto à salada-russa linguística, eu tenho uma perspectiva diferente: não gosto dela. Vivo num país (Holanda) que, tendo a sua língua (neerlandês), usa frequentemente neologismos estrangeiros (essencialmente ingleses), quando não são palavras ditas exactamente como nesses países. Se o enriquecimento da língua por esse processo é evidente, não se deve deixar esse processo seguir sem controlo, caso contrário arriscamos um abastardamento da mesma e perdemos algumas expressões deliciosas.

Um exemplo simples. No holandês, o termo "desculpe" aparece cada vez mais na sua versão inglesa, "sorry". O termo original neerlandês, "Neem mij nie kwalijk", significa algo como "não me considere mau", embora seja usado como "peço desculpa". O termo "sorry" faz perder muitos destes pormenores deliciosos. Ainda que beneficie os estrangeiros como eu...

João Sousa André

joão viegas disse...

Caros,

Plenamente de acordo com o que diz João Sousa André. A nossa lingua e a nossa literatura so podem ficar beneficiadas se, ao lado de Gil Vicente e de Sa de Miranda, estudarmos Shakespeare ou Petrarca em literatura, e não so nas disciplinas de Italiano e Inglês.

Muitas vezes, alias, estudar a tradução portuguesa de grandes obras é ao mesmo tempo estudar um grande prosador de Português, que as traduziu.

Se não estou em erro, no sistema escolar francês por exemplo, é comum dar-se o Fausto de Goethe, ou os contos de Poe, na disciplina de francês e ninguém vê nisso qualquer problema, até porque estas obras foram vertidas para francês por Nerval e Baudelaire...

A tradução do Dom Quixote por Aquilino é ao mesmo tempo uma obra prima mundial (e eu não concebo que pessoas criadas e nadas na Peninsula Ibérica possam considerar-se cultas se não a leram, ou se apenas a leram por alto) e uma magnifica obra de Português. Eu não tenho duvidas nenhumas que os alunos do ciclo ou do liceu ficariam beneficiados se esta obra fosse dada em vez de O Malhadinhas (e reparem que eu adoro Aquilino Ribeiro).

Acresce que quem estuda Petrarca tem ao mesmo tempo uma optima preparação para entender melhor Camões e quem estuda Shakespeare percebera muito mais facilmente o que ha de genial em Gil Vicente.

100 % de acordo.

Desidério Murcho disse...

JSA, isso jamais irá acontecer porque o ensino do Português tem fins nacionalistas, patrióticos, não tendo por fim o enriquecimento cultural das pessoas, mas o aprofundamento da expressão que inadvertidamente o João usa no próprio título do post: “nós” contra “eles”. E repara como o Viegas vê logo essa proposta como uma maneira de se ver a imensa, a genial a insuperável grandiosidade da “nossa” literatura, por oposição à “deles”. Isto é pura manipulação política porque não há “nós” e “eles”, e quem pensa assim foi psicofodido à grande e à francesa. Há menos em comum entre Eça e um taxista português do que entre Eça e Victor Hugo; há menos em comum entre Tolstoi e um empresário russo, do que entre Tolstoi e Sartre. A ideia de que as pessoas, pelo facto irrelevante de terem um carimbo nas costas que os marcam como sendo pertença deste ou daquele país, têm coisas em comum que são fundamentais e que não têm com as outras pessoas de outros carimbos é o que está em última análise na origem das guerras entre estados, que de outro modo não seriam possíveis. A identidade estatal é uma mentira política, cuja expressão nas lides culturais é a mística da língua e da cultura portuguesa. Há músicos, romancistas, físicos e historiadores de grande valor que são portugueses, tal como os há que são australianos. Tanto num caso como no outro são de valor por fazerem o que fazem e fazerem-no bem e não por terem este ou aquele carimbo nas costas.

joão viegas disse...

Isso mesmo Desidério,

Não existem Estados, nem linguas nacionais e uma pessoa que diz da sua lingua materna que é "dele" é uma pessoa condicionada, perdida para a inteligência (como é que eu devia ter dito : "a lingua que essas entidades abusivas e fantasmagoricas chamadas Estados obrigam os seus cidadãos a falar ?").

Continuamos à espera de saber em que lingua foram escritos os livros em que foste buscar essas ideias : em Inglês não é com certeza, nem em Grego, nem em Latim, nem em Alemão, nem em Francês.

Quanto ao resto, estaras tu a sugerir que os alunos do secundario deviam estudar Shakespeare ou Dostoievski no original ?

E ja agora uma pequena pergunta : achas que um professor de Inglês que leciona no secundario em Portugal deve saber umas coisas de Português, ou achas que isto não interessa nada ? Porque nesse ultimo caso, podemos economizar rios de dinheiro : em vez de professores, pomos televisões. E com as sobras, havera dinheiro para mais bolsas para Harvard...

Abraços (mas cuidado com o carimbo que eu tenho nas costas)

Anónimo disse...

Desidério, ou eu não entendi o que escreveste ou fui eu que não me expliquei bem e levei à tua resposta (a qual também não entendo por estarmos deslocados).

Por um lado concordo, «há menos em comum entre Tolstoi e um empresário russo, do que entre Tolstoi e Sartre». Por outro lado não concordo com a parte «A identidade estatal é uma mentira política». ou melhor, concordo se mantiveres a parte "estatal", discordo se a mudares para "nacional".

Usar Tolstoi neste contexto (ou outros autores eslavos, que escolho conscientemente) é importante, porque o pensamento eslavo (lá está) tem peculariedades muito próprias. Claro que um homem como Tolstoi tinha uma formação que o afasta de um condutor de coches, mas a proximidade cultural também lá está. Ou seja, da mesma forma que Tolstoi está intelectualmente mais próximo de Sartre, também está culturalmente mais próximo do tal condutor de coches em S. Petersburgo. Também eu prefiro que não exista essa demarcação nacional/estatal, mas as evidências de culturas diferentes vão muito para além da língua. Agora, por muito curtas que sejam as diferenças culturais, o simples alargar do leque de escolhas apenas poderá beneficiar um estudante, não concordas?

Quanto ao ensino dessas obras estrangeiras em português, concordo que será difícil vir a acontecer (não vou ao ponto de dizer "impossível", contudo). Seria, no entanto, desejável.

Vitor Guerreiro disse...

viegas,

O que está em questão não é "os portugueses" serem demasiado burros para ler filosofia política. São tão burros quanto a generalidade dos americanos e dos ingleses. O que está em causa não é a "superioridade" racial de uns sobre outros. Nem uma propriedade misteriosa de os portugueses serem mais burros.

O que eu afirmei é que os portugueses que beneficiam de obras de filosofia política avançada são inevitavelmente aqueles que as lêem no original e as discutem no original, e discutem muito mais em inglês porque em inglês há mais pessoas para o discutir.

Ora bem, as pessoas são burras por não saberem ler um texto de bioquímica avançado? Não. E os portugueses são tão burros nessa matéria como quaisquer outros, embora num país com um sistema de ensino pior haja maior probabilidade de as pessoas não dominarem conceitos básicos para poderem ler com proveito divulgação dessas áreas.

Portanto, é muito mais útil ao grande público que se traduza obras de divulgação, porque quem vai comprar obras de filosofia política avançada, traduzidas, é precisamente quem já tem essas obras em inglês. Ou seja, vende menos o editor do que venderia um livro de divulgação que apelasse ao público em geral, parece-me.

É precisamente por não ganhar regiamente bem que não me posso dar ao luxo de dizer que não traduzo isto e não traduzo aquilo. E pergunto-me quando vão as pessoas fartar-se deste tipo de comentários de mau gosto sobre dinheiro e conjecturas fantasiosas sobre o que os outros têm ou deixam de ter a ganhar. Quando vai ao médico ou ao ginásio fica depois à porta, com um olhar de soslaio, a perguntar-se se os indivíduos "só fazem" aquilo para ganhar dinheiro? Pelo menos alguns de nós (como eu agora) ainda ganham o suficiente para poder passar algum tempo a escrever comentários na net, o que não se pode dizer de boa parte da população mundial. Mas seja como for, que interesse tem isso? Faço o meu trabalho e procuro fazê-o o melhor possível, para que depois você não tenha de ir a livrarias pagar 18 euros por um volume que teve dois tradutores e dois revisores e ainda assim vem com erros que podiam ser evitados olhando outra vez para o que se está a fazer e pensando duas vezes.

Dito isto, não é que não seja interessante ter obras de filosofia avançada em português. No caso em particular da obra que estou a traduzir (se não a refiro é porque os contratos de tradução têm clausulas de confidencialidade e não por estar envolvido numa conspiração reaccionária para me tornar rico e explorar o proletariado relativista e patriótico) isso permite-nos uma coisa muito valiosa: fixar terminologia filosófica que está pura e simplesmente ausente do vocabulário português. Mas significa isto que a obra vai beneficiar os leitores em geral? Não. Não por estes serem estúpidos mas porque aqueles que beneficiam com este tipo de obras são aqueles que já as lêem no original e até têm competência para discutir a qualidade das traduções e a fixação do vocabulário. Essas pessoas deviam (se se preocupam de facto com a filosofia em português) fazer divulgação desses conhecimentos de forma inteligível, como o Kukathas (escreve-se assim?) fez com as críticas libertárias e comunitaristas ao Rawls, por exemplo, da qual há um livrinho na Gradiva (não, não é o editor para quem estou a trabalhar, não é publicidade encartada para me tornar rico e explorar o proletariado relativista e patriótico).

E o que o move a fazer comentários nos blogues? Está só a matar tempo ou a distrair-se de actividades mais nobres? Eu cá faço-o porque sou um grande calão, e um explorador da classe operária relativista e patriótica.

Dito isto, já chateei de sobra os outros. Vou fazer qualquer coisa útil e maquiavelicamente lucrativa.

joão viegas disse...

Caro Vitor Guerreiro,

Eu não tenho absolutamente nada contra o facto de você ganhar dinheiro e não era este o sentido da minha pergunta (eu também ganho dinheiro, quando não estou na net). Apenas estava a procurar dizer que se alguém resolveu pagar para que você traduza para português uma obra de filosofia (e muito embora eu compreenda que você põe em causa essa escolha editorial) é porque ha alguém que acha que existem Portugueses interessados em lê-la em Português...

Pode ser que a escolha da obra seja infeliz, e que existam outras obras que possam despertar mais interesse junto dos Portugueses, ou até que os Portugueses precisem objectivamete de conhecer outras obras de filosofia, que não existem em Português, antes de lerem a que você esta a traduzir.

Mas não vejo ai nenhum motivo para dizer que é tolice traduzir obras de filosofia (e mesmo de filosofia avançada) para Português. No maximo, haveria aqui argumentos para que se traduzam mais obras em Português... E quem sabe se não é o que vai suceder. Se entre os leitores portugueses da sua tradução, não se vai achar um que se interesse pelo tema e que tenha a ideia de traduzir as tais outras obras que você se queixa de não existirem em Português ?

E também tenho a certeza que você não vai passar a ser menos bom filosofo por fazer esse trabalho de tradução, antes pelo contrario.

Vitor Guerreiro disse...

Não acho que seja estúpido traduzir obras de filosofia para português (perdia o emprego) mas tenho noção da diferença entre impacto de vendas e impacto na recepção por parte do público entre uma obra de filosofia política que exige horas e horas de concentração e anos de leituras prévias, para ser bem lida, e o impacto de uma obra de divulgação. Ou muito me engano ou o principal público daquilo que estou a fazer neste momento vão ser juristas que já leram em inglês, filósofos que já leram em inglês, e alguns professores que o vão comprar, ler dois capítulos e meter na prateleira. Claro que muita gente poderá beneficiar mais, mas estatisticamente serão irrelevantes comparando com o publico potencial de um livro que explique os conceitos básicos da filosofia política de uma forma apelativa. De resto, a dificuldade que um português tem em ler Rawls (não é esse o autor) não é maior do que a dificuldade que qualquer americano que não estudou filosofia possa ter a ler Rawls. Só que o editor do Rawls é capaz de ganhar muito mais a publicar o Rawls do que qualquer editor estrangeiro a publicar a sua tradução. Porquê? Porque o público, tirando os especialistas, poucos, vão ser os estudantes universitários. E esses o que vão fazer? Já apanham seja como for com a obra nas aulas, no original, possivelmente. E, invariavelmente, um deles compra o livro e os outros 50 fotocopiam.

No final do ano quantos livros vendeu o editor? Dois livros a duas turmas de filosofia política que o fotocopiaram, mais uns 100 a profissionais e investigadores?

É disto que falo e não da estupidez congénita dos portugueses. A mediocridade é a mesma em todas as línguas: o que é parte da razão pela qual as culturas nacionais, se é que tal coisa existe no sentido que os nacionalistas lhe dão, não devem ser importantes. Na minha opinião, as culturas locais são tão importantes como a cor dos olhos o é para o avanço do conhecimento. O que realmente importa é a verdadeira cultura, as ciências, as artes, a filosofia... etc.

também houve um tempo em que eu pensava que esta noção universal de cultura era a "cultura com C" e outros disparates. Mas é ao contrário. O localismo é que é uma forma perversa de aristocratismo. Um conselho que eu daria às pessoas que se vêem como progressistas mas que engolem os preconceitos contra o "universal", contra a lógica, contra a razão, etc, é que pensem nisto: tentem ser progressistas POR CAUSA da razão e não APESAR dela. A rejeição da razão e o apelo às fidelidades étnicas e às identidades místicas é que uma forma de aristocratismo do pior. Por um motivo muito simples: a razão não escolhe cores ou línguas, a verdade é apenas a verdade. É por isso que a arbitrariedade gosta tanto do relativismo.

Estou a divagar... regresso às traduções.

Vitor Guerreiro disse...

... ah, e traduzir estas obras não me dá menos prazer por causa disso. Muitíssimo pelo contrário. Quando digo que público beneficia mais com obras de divulgação não estou a dizer que para mim é mau traduzir obras avançadas. Venham elas. Ganho mais ou mesmo do que faria com divulgação, dá para exercitar as faculdades e ainda podemos fixar muito vocabulário filosófico que está por fixar. É fantástico. Haja muitos. Quando digo estas coisas estou a falar pelo interesse geral, porque o meu está garantido a partir do momento em que se decide traduzir essas obras, avançadas ou não. Para mim, de um ponto de vista meramente pessoal, tanto faz traduzir obras avançadas ou de divulgação. O prazer é o mesmo e o ganho também.

joão viegas disse...

Caro Vitor Guerreiro,

Esta-me a atribuir ideias que não tenho nem nunca defendi. Eu sou e sempre fui adversario do localismo e do aristocratismo que critica. Alias, por isso mesmo é que não segui carreira universitaria, embora tenha um grande interesse por filosofia (entre outras coisas).

Mas fazer com que as pessoas façam filosofia na sua lingua materna, na medida em que significa também que elas o farão pensando mais pela sua propria cabeça, vai no sentido do racionalismo que você preconiza.

E nada disto obsta a que aprendam outras linguas e que aprendam também a trabalhar noutras linguas. Acabei de ler o texto do Prof. Queiro postado no De Rerum e subscrevo a tudo o que ele diz.

E um dia vai ver que acabaremos por discutir Rawls (que não conheço bem) e outros autores de filosofia juridica norte americana importantes, como Hart, ou Dworking, ou outros mais recentes. Custa-me aceitar que você pense que a sua tradução para Português apenas possa interessar meia duzia de gatos pingados.

Mas também é verdade que ha muita perversão no mercado editorial e que se publicam coisas que ha algumas décadas atras, não passariam de sebentas, com propositos que nem todos são informativos.

O mandarinato não é de hoje. Mas não tem nada a ver com a lingua. Nem a lingua portuguesa, nem os Portugueses, têm culpa disto. Pelo contrario, fazer com que os Portugueses aprendam mais filosofia a sério (na Universidade, mas não so) sera o primeiro passo para se acabar com o mandarinato.

Anónimo disse...

Caro Vítor Guerreiro, se me permite uma adenda a isso tudo, acrescento que um dos problemas da tradução de muitas obras para português está precisamente no número de interessados. Eu estudei química e optei muitas vezes por manuais em inglês porque as únicas traduções em português eram feitas por brasileiros (não que fossem más, mas eu tinha dificuldade em entender alguns termos que eles traduziam de forma diferente).

porque razão havia traduções do Brasil mas não de Portugal? Volume, obviamente. A população brasileira, mesmo a universitária, será sempre muito maior que a portuguesa, o que permite economias de volume e reduções de preço. Isso leva, obviamente, a que mais pessoas optem por comprar o livro em vez de o fotocopiar ou pedir emprestado. No final, isso leva a lucros que permitem algumas editoras, mais conscienciosas, a publicar alguns livros/manuais menos acessíveis ou "vendáveis" e que não lhes dão lucro.

A quantidade tem, portanto, uma qualidade em si mesma.

Vitor Guerreiro disse...

Para o avanço da filosofia em Portugal, tanto faz que os estudantes de filosofia escrevam em português ou inglês. A diferença é que, para eles, que têm aspirações profissionais ou outras na área, ao escrever as teses em inglês e ao participar em revistas internacionais, vão ter mais público e discutir com mais profissionais relevantes. É muito melhor para eles. Se escreverem só em português, vão ter como público, possivelmente, um bom professor capaz de dialogar com eles e faze-los avançar, e uma horda de malucos que andam há 30 anos a ensinar o sermão do S Antonio aos peixinhos e para quem a filosofia acabou com o Heidegger, ou com o Marx ou com o Husserl. Porque é isto que temos nas nossas universidades. Arautos do quinto império e decifradores de pergaminhos gregos que não sabem coisas básicas de filosofia e em 30 anos a receber ordenados do estado nunca se deram ao trabalho de ir ver. Porra, eu aprendi coisas elementares de filosofia da religião a traduzir divulgação, coisas que não aprendi no curso de filosofia numa cadeira anual nem nos 4 anos restantes. Foi preciso largar o curso, passar alguns tempos longe da filosofia a trabalhara em coisas que nada têm a ver, para depois voltar e começar a aprender coisas que o curso me devia ter dado ou pelo menos sugerido fontes.

Ao forçar os estudantes a escrever teses e artigos em português não estamos a prestar uma serviço maior ao público em geral porque esse público beneficia mais com outro tipo de artigos e textos, estamos a ingerir inaceitavelmente na vida das pessoas com meros fins políticos e de propaganda, e estamos a cortar as asas às pessoas que beneficiam muito mais em escrever numa língua que lhes dá mais público, o que por sua vez os obriga a levantar a fasquia de qualidade. Porquê? Porque aqui em portugal, basta escrever uns parágrafos crípticos e com dois ou três empurrões, amanhã já somos filósofos publicados. Mas escrever em inglês obriga-nos a um outro tipo de procedimento, em que as coisas não se fazem em cima do joelho, os artigos são devolvidos para correcções e reformulações, etc. Ao subir a nossa qualidade, pela participação nas publicações internacionais, estamos a retribuir melhor o investimento que o público porventura fez em nós, pois teremos maior competência para fazer o tipo de trabalhos que beneficiarão o público.

Expliquem-me agora em que é que os enclaves pseudofilosóficos do quinto império e das águas renascidas e outras conversas da treta beneficiam seja quem for. Quando muito serve para uns saudosistas baterem umas punhetas ao cérebro.

Anónimo disse...

Seria conveniente que Mariano Gago reconhecesse a importância da escrita científica em língua portuguesa.

É importante haver bons artigos científicos em língua portuguesa, pois permite mais rápida actualização de conhecimentos e introdução de novos termos científicos e técnicos na língua portuguesa. Torna mais fácil a aprendizagem por parte dos professores e alunos que falam Português, do universo não universitário. São importantes também para a aprendizagem por parte de alunos universitários (nem todos dominam ainda convenientemente o Inglês, o Francês ou o Castelhano).

Devem, contudo, ser publicados em publicações com ISSN ou ISBN, e peer-review. Neste caso poderiam ter um estatuto quase tão importante quanto as publicações ISI, escritas por portugueses em língua inglesa ou francesa.

O Ministro poderia ainda tomar medidas no sentido de se introduzir pelo menos uma revista científica portuguesa por área científica, no sistema ISI, defendendo-se assim a qualidade da produção científica em língua portuguesa. A alternativa é utilizar revistas brasileiras ISI, que aceitam e valorizam, portanto, a língua portuguesa.

Vitor Guerreiro disse...

Isto está ligado à ilusão de que a ciência e a filosofia e as artes são coisas de génios torturados e isolados do mundo. Um bom livro, uma boa tradução, um bom argumento, resultam de muita discussão. Acho sempre graça quando os editores não sentem necessidade de, por exemplo, fazer uma revisão técnica do livro só porque o tradutor tem formação em filosofia. Há coisas que só detectamos com o controlo mútuo de erros, com a discussão, não podemos aprende-las ou percebe-las a ler masturbatoriamente livros no silencio da biblioteca lá de casa ou na mesa do café onde lançamos as nossas profecias de Delfos para um caderno à poeta, cofiando a barba e beberricando na chávena.

A boa filosofia faz-se na discussão porque ninguém pensa bem isoladamente. Agora pense-se nisto: em Portugal predominam as ideias que reduzem a filosofia à história da filosofia, o trabalho filosófico não passa de comentários pseudo-eruditos de textos e a maioria dos professores não tem o calibre dos profissionais internacionais relevantes que estão neste momento a contribuir para o avanço da área. MAis: na universidade IGNORA-SE pura e simplesmente os debates actuais entre filósofos.

Agora diga-se aos estudantes que querem fazer filosofia e precisam de interlocutores para escrever em português. COMO RAIOS é que os profissionais de calibre internacional podem dialogar com eles?

Anónimo disse...

Apenas uma achega para que se compreenda como de facto se alimenta a vitalidade intelectual em Portugal.

A título de exemplo...
Estamos a comemorar o bicentenário do nascimento de Charles Darwin e, como não podia deixar de ser, porque em Portugal não somos de meios-termos, fazemo-lo, apenas, com a maior exposição do mundo.
Acorre uma multidão, com filas de duas horas de espera, atropelando-se num frenesim para ver a vida, o percurso e o legado desse naturalista fundamental para a visão actual do modo como se processou o desenvolvimento biológico ao longo dos tempos.
As visitas de estudo, para as escolas, estão esgotadas até ao final da exposição.
Os lares de terceira idade têm pacotes especiais, com autocarro e almoço incluído, para que os nossos seniores possam, também eles, aceder ao acontecimento do momento.
Afinal de contas falamos da maior exposição do mundo a respeito de Darwin, que ninguém fique de fora.
Qualquer estrangeiro intrépido, que visite a dita exposição, ficará certamente impressionado não só com o conteúdo como também com a afluência de um povo que, por incontestável ignorância, imaginou bem menos esclarecido.
Mas, o hábito não faz de facto o monge e não obstante todo o aparato, a verdade é que o mesmo país capaz de organizar tamanho evento não tem a capacidade de estruturar a aprendizagem dos seus cidadãos de modo a que o conhecimento não lhes seja dado apenas em doses cavalares e passageiras.
Nenhuma criança, que frequente o 7ºano de escolaridade do ensino obrigatório português sabe quem foi Charles Darwin isto porque, não obstante o seu programa de ciências naturais falar de fósseis, de Eras, de Pangeia e Pantalassa em momento algum se fala no conceito de evolução e nenhuma referência é feita ao cientista em questão. Nenhuma!
O conhecimento não é ministrado de forma gradual, continua e direccionado no sentido de uma maior complexidade sem que se perca a linha condutora que liga todas as áreas sejam elas das ciências naturais, sociais, físicas ou matemáticas.
Ao invés de uma dose contínua de oxigénio, a nossa vitalidade intelectual é mantida à base de ocasionais choques eléctricos de elevada voltagem.
Face a isto o ideal de democratização do ensino fica por isso mesmo, um ideal que em nada é sinónimo de democratização do conhecimento.
Traduzir filosofia política? Neste momento o português acabou de descobrir que existe uma coisa chamada livro e tudo o que vá além de uma Margarida Rebelo Pinto ou de um José Rodrigues dos Santos bem pode ser vendido em chinês dado que o resultado, em termos de vendas, será o mesmo.

A seu tempo.

AdR

Desidério Murcho disse...

Sempre que as pessoas falam do espírito russo por lerem Tolstoi ou do espírito português por lerem Eça já sei que leram e não entenderam o que leram. Os grandes artistas são quase invariavelmente muitíssimo críticos em relação à mentalidade que os rodeia, porque quase invariavelmente as pessoas vivem rodeadas de uma mentalidade idiota. Eça e Tolstoi denunciam isso nos seus livros, opondo-se claramente a essa mentalidade. Os grandes artistas não são expressões da alma linguística de um povo ou de uma nação ou de um estado; pelo contrário são, quase invariavelmente, manifestações de saudável crítica distanciamento perante essas expressões. Quando não se compreende isto, estamos prontos a condenar Saramago, porque pôs em causa a Família Cristã, tão genuinamente portuguesa, ou Rushdie, porque pôs em causa a Família Islâmica, tão genuinamente iraniana. Os grandes artistas, cientistas, matemáticos ou filósofos são seres humanos plenos e como seres humanos plenos que são libertaram-se por momentos das mentalidades tolas do seu tempo e do seu espaço. Como escreveu Yourcenar, “Um homem que lê, ou que pensa, ou que calcula, pertence à espécie e não ao sexo; nos seus melhores momentos escapa mesmo ao humano.” É não apenas ilustração de extrema tolice como muitíssimo injusto que um escritor que lutou com as palavras contra a mentalidade do seu tempo e contra os atavismos das tradições seja depois de morto eleito símbolo nacional dessa mesma mentalidade e desse mesmo atavismo que combateu.

Anónimo disse...

«Os grandes artistas não são expressões da alma linguística de um povo ou de uma nação ou de um estado; pelo contrário são, quase invariavelmente, manifestações de saudável crítica distanciamento perante essas expressões»

Este pedaço de texto prova o meu ponto. Eu não quis dizer que Tolstoi vai escrever o pensamento do condutor de coches de S. Petersburgo. Mas ao escrever sobre ele, criticando-o, em vez de escrever sobre a vida do limpa-chaminés de Londres, está a reflectir sobre o seu mundo, a sua cultura. Falando em limpa-chaminés ou Londres, Dickens também fez um retrato do seu tempo, criticando-o, mas foi sobre o tempo e a cultura que viu, não foi escrever sobre os grandes lavradores do Ribatejo (isso caiu sobre a pena de Redol, por exemplo).

Obviamente que o pensamento de Tolstoi será diferente das gentes dos seu tempo e será também moldado pelo que leu. Mas foi certamente moldado pelo que viu, e o que viu foi maioritariamente russo, eslavo. É nesse sentido que eu escrevi o que escrevi.

Já agora, esta afirmação «Sempre que as pessoas falam do espírito russo por lerem Tolstoi ou do espírito português por lerem Eça já sei que leram e não entenderam o que leram» é de grande arrogância e um atestado de menoridade aos outros. Será que os outros não têm a sua opinião e esta não pode ser diferente da tua?

Desidério Murcho disse...

JSA, os outros podem ter opiniões diferentes da minha, e é natural que muitas vezes tenham razão e eu não. E também é natural que por vezes eu me arme em besta e te chame besta a ti. Ninguém é perfeito.
Mas se reinterpretares o teu argumento como agora o apresentas, torna-se completamente irrelevante. Pois só seria relevante se os escritores fossem a tal alma da nação, a expressão do sentir de um povo e todas essas tolices fascistas. Mas agora reconheces que afinal não são isso, são geralmente muito críticas em relação ao seu tempo. E acrescentas a banalidade: só Tolstoi poderia escrever sobre os russos e Saramago sobre os portugueses. Sim, mas isto agora nada tem a ver com coisa alguma linguística, porque resulta exclusivamente do conhecimento em primeira mão que eles têm dos povos e mentalidades onde cresceram. De modo que acaba a ideia maluca de que a Língua Portuguesa é a expressão mística do Sentir Português. Isto é uma palermice, e tu vês que é uma palermice se pensares realmente nisso, ao invés de te limitares a dar voz aos preconceitos fascistas que te foram enfiados na cabeça por viveres precisamente numa cultura que cultiva essa palermice. Cá estou eu a ser arrogante outra vez, tens de ter paciência!

Anónimo disse...

Desidério, o que o JSA te queria dizer é que não podes pedir ao BB King que te toque um fado ou ao Paco de Lucia que te toque um funky, não dá, os gajos estão na deles e não podem fazer nada sobre isso. Acho que estás a ser burro (Cá estou eu a ser arrogante outra vez, tens de ter paciência!), é evidente que a língua portuguesa tem uma arte que a inglesa não tem, tem palavras para as quais o inglês não tem palavras, etc, etc. É evidentíssimo e não percebo porque estás a ser uma besta tão grande (Cá estou eu a ser arrogante outra vez, tens de ter paciência!), vê lá se atinas.
Não há artistas universais, há gajos muito bons que fazem muito com aquilo que aprenderam localmente, como o Jorge Amado, que com umas putas, uns bêbados fez grandes obras, que não poderia ter escrito se não fosse baiano e brasileiro. Se o gajo fosse de Londres se calhar não lhe apeteceria escrever nada. mesmo que lhe apetecesse tu nunca vais poder provar isso, seu grande burro (Cá estou eu a ser arrogante outra vez, tens de ter paciência!).
luis

Anónimo disse...

Se é para falar de língua, deixo um acrescento então: parece que ter vivido um total de 6 anos (os últimos 5 de forma contínua) em países onde não se fala o português me terá estragado a capacidade de expressão ou de interpretação. É que, ou eu me exprimi muitíssimo mal no que escrevi, ou eu estou a compreender muito mal o que escreveste, caro Desidério.

A terceira hipótese: o Desidério prfere fingir que não entendeu.

Ainda estou para saber quais são os «preconceitos fascistas que te foram enfiados na cabeça por viveres precisamente numa cultura que cultiva essa palermice» e de qual cultura estás a falar. Se da holandesa, onde vivo agora, se da portuguesa, onde cresci. Juro que estou para saber onde foste buscar esses fantasmas.

«só seria relevante se os escritores fossem a tal alma da nação, a expressão do sentir de um povo» - eu escrevi isso? Deves ter um problema com causa e efeito. Se eu escrevesse que que o choque de um carro contra o muro desfez o carro, creio que irias apontar que o muro não apareceu ali por causa do carro. Eu disse que Tolstoi foi influenciado pela cultura onde viveu. Não disse que é a voz da mesma. Há uma diferença enorme. E tu sabe-lo bem, não desconverses.

Último ponto: a língua tem tudo a ver com a cultura e até as características intrínsecas dos povos. Moldam-se mutuamente. Eu nem sei assim tantas línguas nem de forma tão profunda para que as possa analisar científicamente, mas do que sei, isto parece-me mais que evidente.

Desidério Murcho disse...

Mas nesse caso tudo o que estás a dizer é irrelevante para o que está em causa. Porque tudo o que estás a dizer é que a língua portuguesa é diferente da língua dos bosquímanos e do suaíli e do sueco. E depois? Também estás a dizer que se um artista não estivesse num dado contexto não poderia escrever sobre ele. Sim, claro, e depois? Nenhuma destas verdades tem qualquer implicação para o que está em causa, que é saber se se deve obrigar as pessoas nas universidades a usar esta ou aquela língua. Essas duas verdades são também irrelevantes para a ideia sub-repticiamente defendida por todos os que afirmam a ideia fascista de que a pátria deles é a língua portuguesa, citando Pessoa fora de contexto, pois o que está subjacente sempre a esse fascismo da língua é a ideia de que a nossa língua é superior a qualquer outra porque é nossa. Isto é exactamente o mesmo do que dizer que eu sou superior a qualquer outra pessoa porque sou eu — é o cúmulo da irracionalidade e da parvoíce.

Se as pessoas deixarem de falar português, algo se perde? Sim. Tal como se perdeu quando deixaram de falar latim. Mas algo se ganha, porque presumivelmente deixam de falar uma língua e passam a falar outra. É irrelevante dizeres que quando saímos de A para B perdemos algo, porque o relevante é saber se o que ganhamos em B não compensa o que perdemos em A. Quando passamos da infância à idade adulta perdemos algo, mas como raio vamos usar esse facto apenas para argumentar que era melhor ter ficado na infância? Analogamente, quando a língua portuguesa desaparecer, como desapareceram já tantos milhares de línguas, algo se perderá, com certeza que sim. Mas isso é irrelevante porque se a língua portuguesa não se perdesse algo se perderia também: perder-se-ia a possibilidade de expressão na outra língua que a substituiu. Pensa no latim: quando se perdeu em Portugal esta língua, Portugal perdeu algo, nomeadamente exposição internacional, pois nessa altura os académicos portugueses escreviam na mesma língua que os gregos, italianos, suecos, franceses ou alemães. Mas ganhou-se algo: ganhou-se uma nova língua. Perde-se sempre algo e ganha-se sempre algo. Querer à viva força e contra a vontade das pessoas manter uma língua em detrimento de outras é puro tradicionalismo e é indefensável. O único argumento que poderia funcionar para isto é um essencialismo ou um patriotismo da língua, e ambas as ideias são palermices.

Posso estar enganado, mas isto é o que penso. Consegui agora tornar mais claro o meu pensamento? Lamento irritar tanta gente pelo facto de o meu pensamento sobre esta matéria ser tão diferente do que é comum, a ponto de se fazer psicanálise dos meus ocultos motivos para pensar tal coisa. Calculo que as pessoas que em pleno séc. XIX defendiam a igualdade das mulheres fossem objecto do mesmo tipo de tratamento, como foi o caso de Mill. Chegaram a argumentar que tal defesa era absurda porque implica defender igualmente os direitos dos cavalos e dos porcos.

Anónimo disse...

«a ideia fascista de que a pátria deles é a língua portuguesa, citando Pessoa fora de contexto, pois o que está subjacente sempre a esse fascismo da língua é a ideia de que a nossa língua é superior a qualquer outra porque é nossa»

O que é que é fascismo da língua? A ideia original de Pessoa ou a citação descontextualizada? É que eu concordo com a citação, mas nunca por causa de qualquer noção de superioridade, apenas porque a língua me dá uma sensação de familiaridade, seja onde for que eu esteja. É possível que estejas de acordo, mas não o percebi.

Desidério Murcho disse...

Fascismo da língua é a ideia entranhada na mentalidade portuguesa (e que não vês entre os suecos ou os bosquímanos) de que a nossa língua é inerentemente superior a todas as outras e como tal tem de ser preservada mesmo contra a vontade das pessoas que a usam cada vez menos.

Quem ler a passagem toda de Pessoa vê que ele começa por dizer que se está nas tintas para que lhe invadam o país desde que não o incomodem. Não se trata portanto de patriotismo; nem se pode inferir que Pessoa protestaria se as pessoas passassem a falar sueco em vez de português. E ao dizer que a pátria é a língua portuguesa, Pessoa só quer dizer que odeia com ódio verdadeiro o português mal escrito, mas isto nada tem a ver com a ideia de superioridade da língua portuguesa, nem com a ideia de que a língua dele é especial por ser dele. Apenas odeia o português mal escrito como um pintor odeia um quadro mal pintado e como eu odeio a filosofia mal feita — um profissional de qualquer área, que come e dorme e vive e pensa na sua área odeia que lhe aporcalhem as coisas com tretas mal feitas, feitas em cima do joelho, mal pensadas, palermas, instrumentalizadas para outra coisa qualquer. Eu compreendo Pessoa perfeitamente, mas isto nada tem de patriótico. Ele é como um artesão que ama o que faz e o faz com cuidado e amor e depois vê uns baldas a pegar numas pedras e a fazer umas tretas à balda para pôr à venda e ganhar bem e sair cedo. O que Pessoa odeia é o tipo de português que poder ler em praticamente todos os documentos do... Ministério da Educação. Curioso, né? É o português enrolado, lamacento, pretensioso, deselegante e que é escrito por quem não está a pensar no que escreve, limitando-se a pôr à frente umas das outras as expressões da moda, como denunciou também Orwell no célebre “A Política e a Língua Inglesa”, recentemente publicado pela Antígona.

Desidério Murcho disse...

Ah, não é dessa sensação de familiaridade que Pessoa está a falar, João! O que ele está a dizer é que reage com o mesmo horror ao português mal escrito que um patriota à invasão do seu país. Ele não está a falar da familiaridade da sua língua, pois isso é banal e desinteressante: a língua materna é sempre mais familiar do que outra qualquer. E as pessoas que escrevem português mal escrito, e que Pessoa lamenta (e tem curiosamente o cuidado de dizer que não os odeia a eles, mas ao que escrevem), certamente que também sentem a mesma familiaridade com o português que tu e eu sentimos e Pessoa sentia. Não é disso que ele está a falar.

carolus augustus lusitanus disse...

Numa época de ruptura de paradigma talvez fosse útil olhar mais à frente e começarmos todos a aprender uma nova língua internacional - «interlingua» -, porque o inglês, tal como aconteceu ao latim, tem os seus dias contados (seria fastidioso enunciar esses motivos, e fica como motivo de reflexão a quem se interessar por isso).
Só para desfazer dúvidas: a minha pátria foi, é e será sempre «a língua portuguesa»...

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