segunda-feira, 21 de abril de 2008

Química no ensino básico - um instrumento de opressão

Do not all charms fly
At the mere touch of cold philosophy?
There was an awful rainbow once in heaven:
We know her woof, her texture; she is given
In the dull catalogue of common things.
Philosophy will clip an Angel’s wings,
Conquer all mysteries by rule and line,
Empty the haunted air, and gnomed mine -
Unweave a rainbow

John Keats in Lamia

«Desvendando o arco-íris: A Ciência, a Ilusão e o Apetite pelo Deslumbramento» publicado pela Gradiva em 2000, é um livro de 1998 de Richard Dawkins que deve o nome à acusação de John Keats a Isaac Newton de que este destruiu a poesia do arco-íris explicando-o. De facto, para Keats a poesia/beleza do arco-íris seria indissociável da mística que permite imaginar panelas de ouro escondidas no local onde toca a terra, ver nele a túnica de Íris, mensageira dos deuses, ou o sinal da paz entre Deus e os homens.

A verbosidade mística ou antes, a mítica construtivista, das orientações curriculares da Química no ensino básico (debitada por peritas em eduquês Ciências da Educação) parece inspirada em Keats. As emanações do ministério dir-se-iam desenhadas para garantir que os alunos do básico nunca desvendarão o que seja química e que muitos ficarão indelevelmente marcados por uma aversão profunda à mesma, que destruiu a «poesia» e «sustentabilidade» da Terra.

Estas orientações configuram ainda um programa ideológico que desdenha toda e qualquer fundamentação científica e que confere à química ensinada no nosso ensino básico um carácter «confessional», aparente não só na demagogia construtivista em que assenta (e sobre a qual ninguém melhor que a Helena para nos esclarecer) como principalmente na forma como se ignora a neutralidade que devia caracterizar a ciência e se usa o programa para transmitir uma mundivisão específica, nomeadamente uma visão romântica/rousseauniana de um mundo ideal «estragado» pela ciência.

Um dos livros de Química do oitavo ano que analisei ajuda a perceber o que quero dizer. No livro, que supostamente ensinaria e despertaria para a ciência os nossos alunos, pode ler-se no final da página 37, inscrito no capítulo «A Química, o Homem e a Sociedade»:

«É aos cientistas que cabe a responsabilidade dos riscos criados ao fabricarem explosivos, armas químicas e nucleares; são eles também os responsáveis pela poluição dos solos, dos mares e do ar».

Uma análise das competências específicas para as Ciências Físicas e Naturais, nomeadamente do parágrafo final do tema «Sustentabilidade na Terra» explica este descalabro. No livro que mais me escandalizou achei inacreditáveis o assacar das culpas de tudo e mais umas botas aos cientistas, a convicção cretina e errada transmitida aos alunos de que sem ciência não havia poluição, guerras e sabe-se lá que outros horrores. A esta barbaridade total segue-se uma dissertação pueril e imbecil sobre poluição que culmina, duas páginas à frente, depois de muitos negritos em Sociedade, Homem e Química, numa outra pérola redonda de raciocínio:

«Sejamos optimistas; não criemos sentimentos de culpa em relação aos danos causados pela Química (...) tomando medidas concretas para combater os efeitos nocivos da Química, por forma a melhorar o mundo».

Este capítulo, repetido em tons mais suaves e menos idiotas noutros manuais, permitiu-me finalmente perceber a origem da onda neoludita que avassala o país - e não só, uma vez que esta ideologia pós-moderna da demagogia pedagogia construtivista não se restringe cá ao burgo. Por exemplo, outro «perito» em Ciências da Educação, agora do lado de lá do Atlântico, afirma peremptoriamente que a Química, «incapaz de romper com o hermetismo linguístico que lhe é próprio» é um «instrumento de opressão e de discriminação, na medida em que contribui para punir os alunos que, sem compreensão de seus fundamentos, são mal sucedidos».

Pensava eu na minha ingenuidade que a inclusão da Química nos curricula escolares visava exactamente introduzir os alunos ao suposto «hermetismo» da linguagem química, transmitir-lhes os fundamentos desta ciência e desenvolver neles o pensamento científico/químico. Erro meu, má fortuna dos alunos, embora esteja certa que homeopatetas e demais vendedores de banha da cobra agradecem os esforços construtivistas para que os alunos sejam analfabetos químicos - e se, em Portugal pelo menos, aprendem alguma coisa de Química, fazem-no à revelia dos programas e graças exclusivamente aos esforços dos professores com formação científica, que me merecem todos os encómios.

Em que consistem então as orientações curriculares que, conjuntamente com o horror à avaliação, garantem que o ensino da Química no básico não corre o risco de se transformar num «instrumento de opressão»?

Estas orbitam o planeta Terra em quatro temas inscritos num diagrama circular (de raciocínio). O diagrama «salienta a importância de explorar os quatro temas numa perspectiva interdisciplinar, em que a interacção Ciência – Tecnologia – Sociedade - Ambiente deverá constituir uma vertente integradora e globalizante da organização e da aquisição dos saberes científicos».

Esta abordagem CTSA (Construção Total de uma Sociedade de Analfabetos) é uma ilusão de ensino científico que não ensina, pelo contrário, imuniza os alunos contra a ciência. Aliás, o seu objectivo não é o ensino de ciência mas sim «uma desejável educação para a cidadania».

Mesmo antes de entrar no programa propriamente dito, para mim uma aberração total, considero que este ultrapassa largamente os limites da acção do Estado ao pretender condicionar os alunos para um pensamento único, o seu, e para uma única interpretação de cidadania, a sua.

Neste ponto estou completamente de acordo com Humboldt e considero que todos têm o direito social a uma educação que forme cidadãos capazes de pensar por si próprios, direito social que assegura os direitos político e cívico em que supostamente assenta o nosso estado democrático e moderno. Para mim, a formatação do pensamento que este programa constitui é um atentado às nossas liberdades individuais. Acho especialmente perverso que seja utilizado o ensino de ciência para impôr aos alunos uma qualquer mundivisão, mesmo que essa mundivisão seja a minha. O ensino em geral e da ciência em particular deve ser neutro, factual e não colorido pelo deslumbramento de ideologias sortidas!

Assim, a transformação do ensino de ciência numa «desejável educação para a cidadania» (cidadania segundo o eduquês) é não só uma perversão da ciência como uma perversão da própria cidadania, metamorfizada num mundo «ideal» como o retratado em Fahrenheit 451. Tal como criticava Humboldt, este ensino visa não o pleno desenvolvimento dos indivíduos através do estímulo do pensamento independente, mas sim o fornecimento de ideias «mastigadas» que os cidadãos devem engolir sem pensar muito. Não há assim riscos de desenvolvimento de pensamentos «dissidentes» pelos cidadãos já que são inibidas quaisquer veleidades de liberdade de pensamento e de pensamento crítico.


Imagem: Pieter Brueghel, o velho: A Parábola de um cego conduzindo outro cego, 1568, Têmpera sobre Tela.

19 comentários:

G. Mbeki disse...

Isto hoje está quente. Só dois comentários: um dos problemas mais referidos em trabalhos internacionais sobre a qualidade dos sistemas de ensino é precisamente a falta de qualidade dos manuais escolares, agravada pela excessiva dependência dos professores desses instrumentos. Portanto, não me parece viável atacar um modelo de sistema de ensino pelos seus manuais escolares (que como se sabe, são feitos depressa, mal e com poucos custos).
Segundo comentário: alguém já percebeu que o ensino por competências procura precisamente estimular a capacidade crítica? A tal de que se fala aqui? Se não, alguém é capaz de fazer um texto tão longo como este(s) a explicar como se promove a cidadania através de um sistema de ensino público, universal, com constrangimentos orçamentais, com limites temporais (9 ou 12 anos, escolham), com uma miríade de conteúdos a abordar, e que promova o sucesso escolar e elimine os problemas de abandono que caracterizam o ensino português? Certamente que numa universidade tão moderna e avançada como a de Coimbra haverá uma solução...é porque o resto do mundo não a encontrou.

JSA disse...

Caro Mbeki, quanto aos manuais, de acordo. Mas se estes seguirem as indicações do ME, bem ou mal feitos, acabam por obrigar os professores a irem para lá do que lhes é pedido para oferecerem um bom ensino.

Quanto ao conceito de promover a capacidade crítica, nada contra. O que pergunto é: como se critica aquilo que se desconhece?

leandro ribeiro disse...

Não me parece que estejam aí todos os (ou mesmo os piores) pecados no ensino da ciência. Um pouco a propósito disto, escrevi há tempos o seguinte comentário num outro blog:

«A ciência é muito mal ensinada na escola exactamente porque funciona como mecanismo de transmissão de conhecimento adquirido. Ensina-se, por exemplo, a lei da gravitação universal, proposta por Newton, como se fosse uma equação caída do céu. Os miúdos são levados a acreditar que aquilo descreve o modo como dois corpos com massa interagem e são levados a aplicar essa equação noutros contextos. E isto repete-se pelas diversas áreas do ensino da ciência.

Ora, isto assim é treta e é tão válido quanto acreditar que Deus obriga a Lua a sentir a atracção da Terra. Acreditar por acreditar, como é que se escolhe? Assim não há distinção entre ciência e religião - aliás, assim ciência passa mesmo a ser religião.

O que é preciso é ensinar o método, caramba!, é preciso ensinar como é que Newton chegou àquela conclusão e como é que se procedeu à verificação dessa equação.

E depois não basta dizer que a seguir veio Einstein e inventou a relatividade: é preciso explicar que falhas se encontraram na teoria de Newton que pediam melhor explicação e porque é que a relatividade é uma melhor explicação nesse sentido.

Ou até, mais que explicar essas limitações, seria produtivo apresentar aos alunos dados observacionais e obrigá-los a confrontarem esses dados com as previsões da equação de Newton, de modo a serem eles próprios a perceberem as suas limitações.»

Em suma, sai-se da escola com a ideia de que ciência é um cardápio de factos e tecnologias que devemos engolir porque são ciência.

JSA disse...

Caro Leandro, não concordo. O importante, antes de mais, é fazê-los compreender a ciência que já passou o teste do tempo e da experiência. A física de Newton, limitações à parte, conseguiu-o. Ainda hoje é usada, dentro de determinados parâmetros. O mesmo para Einstein ou para a mecânica quântica. Tentar explicar as limitações é avançar imediatamente para as teorias seguintes. Querer explicar os problemas com a teoria da gravitação de Newton obrigaria a explicar a relatividade muito mais cedo do que seria desejável. Isso apenas serviria para provocar a confusão na cabeça dos estudantes. Concordo que essa metodologia é adequada, mas apenas na universidade. No secundário, o essencial é que os alunos compreendam as diversas disciplinas da ciência antes que se lhes explique as limitações que existem.De outra forma apenas se estará a minar a confiança na matéria que se ensina, uma vez que o aluno desconfiaria de tudo que se lhe ensinasse.

G. Mbeki disse...

Amigo JSA,

Mas assim não estaríamos a impedir "o pleno desenvolvimento dos indivíduos através do estímulo do pensamento independente...", estimulando antes "...o fornecimento de ideias «mastigadas» que os cidadãos devem engolir sem pensar muito." ?

JSA disse...

Em relação a isso, creio que se pode notar a confusão existente sobre o que se deseja ser pensamento crítico (na minha opinião). O pensamento crítico desejável na ciência não é especificamente o de rejeição, antes o de análise. Quando se diz que propriedade X tem valor Y, quer-se que o aluno compreenda as implicações que isso tem no mundo real, não que desconfie do valor. Um exemplo específico e simples de como desenvolver essa capacidade está em classificar como correctas apenas as respostas que ofereçam uma análise, mesmo que muito rápida, sobre a resposta que se obteve.

Dessa forma obtém-se um pensamento crítico científico real, não formatado. Claro que haverá sempre quem apenas observe e não aja, mas isso é inevitável. É inerente à personalidade e inteligência individual. Um pensamento crítico sobre a sociedade em geral deve ser antes desenvolvido no conjunto da formação dos estudantes, de forma global por todas as disciplinas, desenvolvendo o pensamento crítico inerente a cada uma.

O que há a diferenciar, repito, é aquilo que se pode ver como crítica (um simples "gosto", "não gosto"), do pensamento crítico ("é assim porque..."). E para isso, não vejo um ensino holístico a ajudar, bem pelo contrário.

Palmira F. da Silva disse...

Caro mbeki:

Está a confundir ideias com factos.

Para além disso não percebeu o que o JSA disse.

O que o JSA está a tentar dizer é que tudo tem o seu tempo e ninguém pensaria, digo eu que só recentemente tomei contacto mais intímo com o eduquês, em discutir com alunos de 6 anos as pormenores, por exemplo, do acordo ortográfico no que respeita à queda das consoantes antes de os ensinar a ler e a escrever!

Ensinar e aprender são anátemas para os eduqueses mas sem se ensinar o b-a-ba de ciência é ilusório pensar que alguém desenvolve um pensamento crítico em ciência. E elimina-se qualquer possibilidade disso quando para além de não se darem os fundamentos de ciência e factos/dados sobre os quais os alunos deveriam desenvolver o seu raciocinio científico, apenas se lhes dá a interpretação biased de ciência de alguém que odeia ciência em geral e química em particular!

G. Mbeki disse...

Cara Palmira,

Uma vez mais, uma demonização do eduquês (eu confesso que já não sei o que esta palavra significa, e que isso pode estar a inquinar toda a minha argumentação): não me parece que alguém do eduquês pretenda discutir o acordo orotgráfico no 1º ciclo, nem vejo onde se nega em absoluto a importância dos conteúdos. A questão está na mudança do objecto central do ensino, que deixam de ser os conteúdos - que continuam a ser essenciais - e passam a ser as competências. Ninguém adquire competências sem conteúdos! A diferença é que já não se pode ficar só por estes, é preciso levar o ensino mais além.
E, acima de tudo, não vejo de onde se depreende que alguém do eduquês "odeia ciência em geral e química em particular"! Uma frase algo exagerada, não? É a criação desse bicho-papão a quem se pode atribuir todas as culpas...esse monstro...

Diomyr disse...

Acho aterrador o que se passa ao nível do ensino das ciências em Portugal, muito em paralelo com o que se passa no estrangeiro. Esta estupidificação do processo científico e trituração daquilo que realmente é ciência num amontoado de predicados pré-embalados que (coisa notável!) nem sequer são regurgitados com a devida neutralidade é mais do que errado, é verdadeiramente aterrorizante! É normal que a sociedade que estamos a construir use os telemóveis, os fornos de micro-ondas, tire radiografias/faça TEPs como se fossem caixas pretas mágicas, mas isto é muito pior - em vez de ensinar aos alunos que podemos separar a realidade da superstição através de um método (completamente radical para os responsáveis pelos curricula, parece-me) chamado observação, que podemos pensar em experiências, medir coisas, e ficar a saber como elas funcionam, aoinvés disso tudo estamos a ensinar os alunos a engolir aquilo que vem no livro sem pensar mais.
Temos que dar o braço a torcer - é bem mais fácil fazer isso do que fazer integrais.
E é por isso que se pode dizer que há alguém do eduquês que "odeia ciência em geral (...)", porque este tipo de pensamento é incompatível com o cepticismo-padrão e a máxima científica de que "tudo o que é apresentado sem provas pode ser rejeitado sem provas"! A Química não é uma coisa que se ensine palestrando prosa corrida ou que se aprenda por osmose, é preciso demonstrar resultados, mostrar que as coisas são assim não porque alguns senhores se lembraram, mas porque realmente funcionam, e contra factos não há argumentos, a não ser mais factos, e estes têm uma tendência a não se contradizer.
Finalmente, esta abordagem da "educação para a cidadania" não vai fazer mais do que gerar uma chusma de intelectuais da pior espécie: os que não sabem, mas pensam que sabem, como já foi referido no post anterior. A cidadania é importante hoje em dia, mas lembro-me bem que no último ano (ou dois últimos, não me lembro já bem) do ensino básico tive uma horinha por semana chamada "Educação Cívica". Querem ensinar cidadania? Acho óptimo. Mas por favor, as aulas de ciências não são o lugar para isso. Mas não haverá um Físico/Químico/Matemático responsável pelos programas das matérias destas disciplinas? É que isso parece-me óbvio, mas dado o resultado final, custa muito a acreditar.

Diogo Capelo

Armando Quintas disse...

Tal como criticava Humboldt, este ensino visa não o pleno desenvolvimento dos indivíduos através do estímulo do pensamento independente, mas sim o fornecimento de ideias «mastigadas» que os cidadãos devem engolir sem pensar muito. Não há assim riscos de desenvolvimento de pensamentos «dissidentes» pelos cidadãos já que são inibidas quaisquer veleidades de liberdade de pensamento e de pensamento crítico."

Claro, este tem sido objectivo dos sucessivos governos após o 25 de abril, dar aparecia de democracia suavizando os ideiais fascistas.
Por causa do defice metemos 1 ministro das financas no governo que se tornou ditador, agora é um primeiro ministro que por causa do defice começa a mostrar tiques de autoritarismo..
Então acreditaram que os sucessivos governos queriam cidadãos a pensar pelas suas cabecinhas?
Que grande engano!
Porque acham que não interessa resolver a bagunçada da eduação?
Aos alunos deve dar alcool, droga e morangos com açucar, a cee ajuda com 1 subsidios e isto vai na maior..

jak.ohmygod!! disse...

Pois é Palmira,
bem-vinda ao mundo dos alguns ou muitos perplexos e perdidos professores do Básico...

Graças a Deus, ao menos a Matemática foi reformulada.

Mas eu podia enviar-lhe um manual de CN do 2º ciclo que é uma preciosidade na abordagem CTS.
Queixam-se os pais, queixam-se os alunos, eu queixo-me..
Conclusão: uso-o pouquíssimo.
Só mesmo para ir treinando a leitura/interpretação.
Vejam isto, entre outros:

http://br.youtube.com/watch?v=bwXvqSqAgKc

http://br.youtube.com/watch?v=D3ZDJgFDdk0&NR=1

http://br.youtube.com/watch?v=fpOxgAU5fFQ

http://br.youtube.com/watch?v=lrYlZJiuf18&feature=related

E mais uns tesourinhos que eu tenho..

Dissecar pulmões ou corações de porco? Também o fiz, mas ...

Maria

leandro ribeiro disse...

Cara JSA,

«O importante, antes de mais, é fazê-los compreender a ciência que já passou o teste do tempo e da experiência.»

Concordo, claro, mas não se compreende a ciência sem compreender os mecanismos da ciência. Fazer um sem o outro é convidar o aluno a "acreditar" não na ciência, mas em cientistas. Um aluno não pode "acreditar" na teoria da gravitação universal só porque foi Newton que a disse. Ele tem de compreender como é que Newton chegou até ela, como é que a verificou e porque é que, ainda hoje, se pode contar com ela. Se os ensinamos a acreditar em cientistas, como é que depois eles conseguem escolher entre a mecânica Newtoniana e a mecânica Aristotélica?

«No secundário, o essencial é que os alunos compreendam as diversas disciplinas da ciência antes que se lhes explique as limitações que existem.»

Não estou certo de concordar. Parece-me que isso é ceifar do ensino das ciências um conceito muito importante: a ciência constrói-se sobre ciência. Se há limitações que, efectivamente, só devem ter explicação numa cadeira universitária devido à sua complexidade, o conceito abstracto de que uma teoria científica tem limites e que é exactamente nesses limites que a ciência opera, se constrói e evolui é um conceito que me parece obrigatório quando queremos ensinar ciência. Não é fazê-los duvidar da ciência, pelo contrário, é fazê-los compreender que esse é um mecanismo muito importante para que possamos confiar nela.

leandro ribeiro disse...

Cara JSA,

«De outra forma apenas se estará a minar a confiança na matéria que se ensina, uma vez que o aluno desconfiaria de tudo que se lhe ensinasse.»

E não tem de desconfiar? A ciência não evoluiu porque se foi "desconfiando"?

Simplesmente entregar "factos" aos nossos alunos é promover um comportamento contrário ao que se deseja. Saem formatados, "crentes" em cientistas. O aluno tem de duvidar do professor, claro, desconfiar dele, questionar o que lhe está a ser dito; e o professor tem é de aproveitar o momento para lhe mostrar que essas teorias resistentes ao tempo também são resistentes às dúvidas do aluno. Se não fossem, então teriam de ser mudadas.

leandro ribeiro disse...

CarO JSA,

Peço desculpa, mas por algum motivo vi na sigla JSA uma presença feminina :)

JSA disse...

Caro Leando,

quanto ao género errado, não há problema. Não costumo assinar o nome completo (João Sousa André), por isso acontecem estas trocas. Não há problema, não me incomoda :).

Quanto à discussão, não se pode realmente explicar como é que a ciência chega a determinados pontos porque a explicação é frequentemente mais complexa que o facto. Por exemplo, dar uma explicação consistente sobre o número "zero" exigiria mais matemática que aquela que um aluno do básico poderia compreender. Isso, contudo, não o impede de compreender o conceito abstracto do número e de o utilizar de forma concreta.

O mesmo se poderia dizer de diversas "leis" (sinceramente não gosto deste termo) da Natureza. Newton recorreu essencialmente à matemática para chegar à sua lei da gravitação universal. Contudo, os cálculos matemáticos que usou não estão ao alcance dos alunos que aprendem a mesma lei no secundário. Duvido muito sinceramente que eu percebesse esses mesmos cálculos e estou bastante à frente da formação do secundário. O mesmo se poderia dizer de Einstein e das suas teorias da relatividade, para as quais precisou de ajuda na parte matemática, uma vez que ele mesmo não chegava lá.

E isto são só as bases. Mas, voltando ainda e sempre a Newton, se quisermos ensinar a lei da gravitação universal a um aluno, dizendo-lhe simultâneamente que está "errada" (ou que tem limites e que o comportamento é melhor descrito pela relatividade geral), o mais provável é que ele se pergunte simplesmente do porquê de ter de aprender Newton se esse já foi ultrapassado. Seria o mesmo que ensinar as técnicas médicas da idade média, que passavam, frequentemente, por sangramentos, dizendo que não servem na realidade para quase nada e que estão ultrapassadas, mas que os alunos têm que as saber na mesma. São informações úteis, sem dúvida, até porque saber a história de uma ciência é importante. Mas a história da ciência é uma parte que vem após aprender a ciência em si. Nesse aspecto, por muito que seja importante ensinar onde estão os limites de cada "lei", o importante é começar por a fazer compreender.

JSA disse...

Quanto ao "desconfiar", obviamente que isso é importante. Mas não é tanto a desconfiança, é a observação que é importante. Um exemplo perfeito é o trabalho de Darwin. Este, influenciado, entre outros, por Charles Lyell, concluiu que a explicação religiosa para a diversidade da vida na Terra não se coadunava com as observações práticas. Dessa forma, acabou por criar a sua própria teoria que oferecia uma explicação mais satisfatória. Da mesma forma, o trabalho de Darwin apresentava lacunas que acabaram por ser preenchidas pelo trabalho de Mendel.

É importante, como disse, fomentar o espírito critico, mas crítico no sentido em que se deve reflectir sobre a informação. O acto de desconfiança da informação apenas leva a que nenhuma informação seja crível, uma vez que, mesmo a nova informação que venha resolver lacunas, acabará por sofrer dessa desconfiança. Isso levará inevitavelmente a uma rejeição, mais cedo ou mais tarde, de informação correcta apenas por causa dessa desconfiança.

leandro ribeiro disse...

JSA,

«É importante, como disse, fomentar o espírito critico, mas crítico no sentido em que se deve reflectir sobre a informação.»

Sim, sim! Exacto! É importante que, perante a questão Quem estava certo, Aristóteles ou Newton?, os alunos tenham de reflectir sobre o que ambos propõem e concluir que as observações (importantes, como bem apontaste: Mas não é tanto a desconfiança, é a observação que é importante.) nos levam à conclusão que Newton tinha uma proposta mais consistente com a realidade.

«"leis" (sinceramente não gosto deste termo)»

Acho que já ninguém gosta :)

«não se pode realmente explicar como é que a ciência chega a determinados pontos porque a explicação é frequentemente mais complexa que o facto.»

Claro. O exemplo do "zero" é excelente. Mas isso não implica que uma aula de qualquer ciência seja um exercício de transmissão de "factos", até porque factos cada um tem os seus.

Repara neste assunto recente e mediático: os criacionistas bíblicos têm como facto que a Terra foi criada há seis mil anos; a teoria da evolução tem como facto que foi há mais tempo. Se não distinguirmos desde cedo que a diferença entre estes dois "factos" não está em quem os defende, mas no modo como a informação foi obtida, então estamos a transformar a ciência numa nova religião. Isto parece-me profundamente negativo.

Olha, vou citar de cor um comentário que alguém deixou num fórum sobre o assunto: «Vocês não crêem no fixismo só porque assim vem num livro com dois mil anos, porque hei-de eu crer no evolucionismo só porque um barbudo o disse no século XIX?»

«O mesmo se poderia dizer de Einstein e das suas teorias da relatividade, para as quais precisou de ajuda na parte matemática, uma vez que ele mesmo não chegava lá.»

E essa é uma história fabulosa que até costumo contar aos meus alunos :)

«Mas a história da ciência é uma parte que vem após aprender a ciência em si.»

Concordo. Mas a história da ciência é uma coisa, e a história de uma teoria é outra coisa; e introduzir esta última, nem que suavemente, quando se aborda uma teoria parece-me muito proveitoso. Por exemplo: quando abordo a questão da temperatura, costumo contar como foram construídas as primeiras escalas de medição da mesma, nomeadamente a de Fahrenheit. Primeiro porque tem muita piada; segundo porque posso confrontar os alunos com as dificuldades que estes homens tiveram e convidá-los a colocarem-se na posição deles e a sugerirem soluções para o problema apresentado.

Bem, resumindo esta salganhada toda: apesar de existirem demonstrações inacessíveis aos conhecimentos dos nossos alunos do secundário, não devemos permitir que se estabeleça entre eles uma visão (já dominante, infelizmente) divinizada da ciência.

leandro ribeiro disse...

JSA,

Passou-me isto ao lado:

«o mais provável é que ele se pergunte simplesmente do porquê de ter de aprender Newton se esse já foi ultrapassado.»

Acho este assunto muito importante, até porque não há como evitá-lo: no secundário já muitos ouviram falar da teoria da relatividade e querem saber mais sobre a mesma; o próprio assunto é aflorado quando se fala do GPS. Parece-me impossível ensinar físico-química ao 11º ano sem que algum aluno nos faça perguntas sobre a relatividade. Então, como lidar com a situação? Dizer ao aluno que é algo complexo e que será abordado na Universidade? Limitar a explicação à relatividade especial e cruzar os dedos para que nenhum deles alguma vez tenha ouvido falar da "outra"? Explicar o que nos for possível explicar, dentro dos limites do contexto em que nos encontramos?

Parece-me que a última é a opção mais acertada, mas atira-nos para a o problema que levantaste: porquê ter de aprender Newton se esse já foi ultrapassado?

E aqui há que dar a volta por cima: não se ensinam as equações de Newton pela importância histórica, mas porque são poderosíssimas para a maior parte das situações com que nos confrontamos. Ninguém vai pegar na relatividade para construir um elevador ou para desenhar uma montanha russa.

Anónimo disse...

BULLYING NÃO SERIA UM ASSÉDIO MORAL PRATICADO NO AMBIENTE ESCOLAR, OU SEJA, NÃO PODERÍAMOS DENOMINÁ-LO DE "ASSÉDIO MORAL NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO", OU ATÉ MESMO, DE "ASSÉDIO MORAL ESCOLAR"????

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