quarta-feira, 21 de julho de 2021

JOÃO BOAVIDA E “A ETERNA BREVIDADE”


Meu artigo no último "As Letras entre as Artes": 

João Boavida, professor jubilado de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e autor do livro de contos A Eterna Brevidade, com a chancela Busílis, da editora Trinta Por Uma Linha (Porto, 2018) e do romance histórico Um Instante e Toda a Vida, da Indícios de Ouro (Lisboa, 2005). 

A Eterna Brevidade, o primeiro livro de contos do autor, é uma recolha de algumas pequenas edições de autor muito raras, com excelente design de Ana Boavida, filha do autor, que trabalha na FBA, em Coimbra, o multipremiado gabinete de design de João Bicker. Aqueles livrinhos não têm ISBN, pois são distribuídos pelo autor à família e amigos como prendas da Natal. O editor João Manuel Ribeiro reparou, porém, que continham pérolas literárias que mereciam divulgação mais ampla. 

Os contos partem, em geral, de situações verídicas, que o autor viveu ou pelo menos observou: como o paradoxal título sugere, trata-se de momentos fugazes da longa realidade da vida. O tempo transiente acaba por ser sublimado por uma escrita que consegue ao mesmo tempo ser simples e depurada: simples nas descrições, expostas num português de lei, mas depurada nas impressões que transmite e nas nostalgias que suscita. Não falta um tom irónico, aqui e ali com pinceladas de humor. 

A bela capa de A Eterna Brevidade, também de Ana Boavida, inspira-se no conto “O chapéu das cortesias”, que relata história, aparentemente banal, de um chapéu de praia que levanta voo no areal de Porto Santo levado pelo vento. O chapéu, recortado em branco do fundo colorido, é a única peça móvel num cenário absolutamente tranquilo: a areia em baixo, o mar no meio e o céu em cima. A evasão do chapéu, evidentemente perseguido pelo autor que dele desfrutava, é o evento repentino que corta a pachorrenta eternidade.

João Boavida, num estilo que reproduz vivamente a sua correria atrás do chapéu, transporta-nos para o ambiente estival. Eis como o autor descreve como ele e um prestimoso veraneante tentaram, em movimentos cruzados, apanhar o fugitivo: “Corria ele em latitude, eu em longitude, as coordenadas pareciam estar a acertar-se. Ele ia deitar-lhe a mão, pensei, vai apanhá-lo, vai apanhá-lo, conseguiu, vi o guarda-sol fletir à guinada mas, quando eu cheguei, atirando-me de mãos à frente, para o ajudar, uma chicotada de vento soltou-lho enquanto mergulhava no pobre do homem como num colchão de praia dando uma cabeçada no desgraçado: Toc! Ai!, disse ele.”

Noutro conto, do total de 22, “Correio sentimental”, o autor regala-nos com uma história coimbrã dos velhos tempos. Perante a dificuldade de comunicação entre o Seminário Maior de Coimbra e o vizinho Colégio da Rainha Santa Isabel, de meninas, é um padre que, sem se aperceber, é portador de mensagens amorosas entre um sítio e outro, escondidas no seu chapéu. Vejamos como Boavida descreve o Seminário, que pode hoje ser visitado por turistas: “O Seminário Maior era um edifício imponente, no alto da colina, com o rio a toda a largura do olhar. De tal modo que a encosta, em frente, entrava toda pelas varandas e a luminosidade, bebida no alto, erguia as almas até à transcendência, mesmo se os corpos, ao recuarem à contraluz das paredes mergulhassem nas sombras eternas.”

Outro conto ainda passa-se na quinta de Povoença (sítio fictício), no Douro, onde uma das “Meninas Tavares” (título do conto), sofre um percalço que lhe prejudica o traseiro, exigindo a intervenção de um médico, que ficará sem saber a qual delas ele assistiu. De resto, eram as três muito parecidas como conta João Boavida: “(…) eram as três bonitinhas, com os olhos largos e negros, a pele muito branca, como então era uso, os cabelos escuros apanhados em cima, os lábios duma subtil sensualidade, de que nunca se aperceberam. Embora a tender para o arredondado, eram-nas nos sítios certos, e como não fossem baixas nem altas e a cintura em todas fina, tinham uma elegância discreta mas suficiente.” 

Quem é que assim escreve? O autor que agora cultiva as letras, nasceu em Alpedrinha, perto do Fundão (terra de D. Jorge da Costa que viveu 102 anos nos séculos XV e XVI, que foi bispo de Évora, arcebispo de Braga e de Lisboa, antes de se tornar um poderoso cardeal da Cúria romana). Licenciou-se em Filosofia em Coimbra em 1968 onde foi aluno de Sílvio Lima, fez depois um Curso de Ciências Pedagógicas também em Coimbra, frequentou um estágio de psicopedagogia na Universidade de Lovaina na Bélgica, e doutorou-se em Ciências da Educação ainda em Coimbra (a tese, Filosofia – do ser e do ensinar, 1991, está publicada pelo Instituto Nacional de Investigação Científica), para mais tarde fazer a agregação, necessária para chegar à cátedra. Leccionou Métodos e Técnicas da Educação, Psicologia Pedagógica, Epistemologia das Ciências da Educação, Teoria e Filosofia da Educação e Formação Ética e Deontológica. 

Tem numerosos artigos publicados em revistas da especialidade, tanto nacionais como estrangeiras, sobre avaliação pedagógica, metodologias de ensino, ética e filosofia da educação. Foi diretor da Revista Portuguesa de Pedagogia, que editou um número em sua homenagem na altura em que ele se reformou.

Com mais de 40 livros publicados na sua área, alguns deles na Imprensa da Universidade de Coimbra (nomeio Educação filosófica. Sete ensaios, 2010). Sempre assumiu posições de grande clarividência pedagógica, em particular recusando entrar em modismos que têm prejudicado o nosso ensino. Assinou uma crónica regular (“A cultura é que dura”) no jornal As Beiras

Pois a João Boavida só desejamos que nos continue a presentear com a sua prosa. 

Sempre que vir um chapéu de praia a voar lembrar-me-ei dele.

1 comentário:

Ildefonso Dias disse...

A serenidade do professor João Boavida é admirável. Depois de o ouvir percebi que este homem poderia ter dado mais a este país, e não deu. A sua capacidade e vontade de trabalhar pareceu-me bem superior às oportunidades que o país lhe proporcionou. Mas é sempre assim.
Não teve neste país as oportunidades de outros, diga-se de um António Barreto, que não é talentoso, nem é suficientemente inteligente, para os lugares que desempenhou na direcção da sociedade.
Creio que o professor João Boavida sabe isso, sabe que era melhor que muitos outros do seu tempo.
Num meio que era difícil, e infelizmente, hoje é ainda mais, por isso não deverá o professor João Boavida ter inveja dos jovens, porque o futuro para a maioria não será mais fácil.
É quase impossível ser cientista em Portugal, quem o tentar ser arrisca-se a viver na miséria.

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