quarta-feira, 7 de novembro de 2018

JÁ CHEGÁMOS À MADEIRA


Minha crónica no Público de hoje (na imagem a praia do Porto Santo):

Já chegámos à Madeira” foi a frase que João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira, escudeiros do infante D. Henrique, podiam ter dito quando chegaram ao Porto Santo, a ilha do arquipélago da Madeira mais próxima da costa africana, em 1419 ou em 1420. Não devem, porém, ter dito. Trata-se de uma das expressões idiomáticas em que a língua portuguesa é fértil, usando-se normalmente como uma interrogação e em tom indignado. Talvez remonte a 1807, ano em que os ingleses se apossaram da ilha, no contexto da Guerra Peninsular.

No passado dia 1 de Novembro foi o presidente Marcelo Rebelo de Sousa que chegou à Madeira, ou, mais precisamente, na senda de Zarco e Teixeira, ao Porto Santo, para dar início às comemorações dos 600 anos da descoberta do arquipélago. Marcelo falou do começo de uma saga,” inaugurou uma estátua henriquina e tirou as selfies do costume. Seis séculos é um número que vale a pena assinalar, sendo de somenos que essa data específica não tenha sustentação histórica, tal como não tem sequer o ano de 1418 que está na Wikipedia (a Comissão encarregue das celebrações foi prudente ao estender a festa do 6.º centenário até 2020).

Não se sabe ao certo quando é que chegámos à Madeira. Uma das fontes mais antigas é a Crónica da Guiné de Gomes Eanes de Zurara, um manuscrito descoberto na Biblioteca Nacional de França em meados do século XIX (saiu há pouco uma edição moderna nas Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa, Círculo de Leitores). Acontece que esta crónica, toda ela um panegírico ao famoso infante, foi concluída em 1453, mais de três décadas após a chegada lusa. E, embora ela date de 1420 o início do povoamento da ilha da Madeira, não é precisa quanto à chegada ao Porto Santo. Conta que dois escudeiros nobres (…) depois da vinda que o infante fez do descerco de Ceuta (…) requereram que os aviasse como pudessem fazer de suas honras, como homens que muito o desejavam, parecendo-lhes que o seu tempo era mal despeso se não trabalhassem alguma coisa por seus corpos.” Em linguagem actual, queriam fazer feitos de valor. Como o dito descerco foi em Outubro de 1419, o pedido terá sido feito nesse ano ou no seguinte. Foi provido: E vendo o infante suas boas vontades, lhes mandou aparelhar uma barca em que fossem de armada contra os mouros, encaminhando-os como fossem em busca de terra de Guiné.” Não havia mouros em Porto Santo, mas com tempo contrário chegaram à ilha,” talvez ao extenso areal dourado que hoje é fruído pelos veraneantes. Do Porto Santo vê-se a ilha da Madeira, mas, segundo Zurara, só lá foram na viagem seguinte na companhia de Bartolomeu Perestrelo, um fidalgo de ascendência italiana da casa do infante D. João (Cristóvão Colombo haveria, por volta de 1479, de casar com uma filha de Perestrelo, Filipa Moniz, de quem teve um filho que lhe sucedeu como vice-rei e governador das Índias de Castela).

É curioso que, apesar da visita presidencial, a imprensa tenha praticamente ignorado este início dos 600 anos dos Descobrimentos Portugueses (se descontarmos a conquista de Ceuta, em 1415, que obedeceu a um ideal de cruzada). Não acredito que seja porque se tratou mais de um redescobrimento do que de um descobrimento (de facto, o Atlas Medici-Laurenciano, de 1351, representa a ilha do Porto Santo, com este mesmo nome, e a da Madeira, com o nome de Isla de lo Legname” e, tal como ele, outras nove cartas anteriores a 1420 o fazem). As ilhas do arquipélago madeirense estavam desertas, mas não eram de todo desconhecidas. E foi por isso que o infante D. Henrique, então senhor das ilhas”, em documento de 1460, pouco antes de morrer, escreveu novamente achei”. O silêncio mediático talvez ocorra por a palavra descobrimentos” ser hoje maldita.  Mas não devia ser. Em 1419 esta palavra ainda não existia em português, mas foi na nossa língua que ela apareceu pela primeira vez, em 1484, a partir do latim, conforme enfatiza o historiador inglês David Wootton no seu livro A Invenção da Ciência (Temas e Debates - Círculo de Leitores, 2017). Quando Colombo descobriu a América em 1492, não tinha a palavra apropriada porque escreveu em castelhano. E foi apenas em 1563 q

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