Meu artigo no n.º 3 da revista "Café com Letras", que já está nas bancas:
O Padre António
Vieira viveu numa época de ouro da ciência, a época da revolução científica, na qual
sobressaíram grandes nomes como René Descartes, Galileu Galilei e Isaac Newton.
Não sendo um cientista, tanto pela
preparação que adquiriu no Colégio da Baía, no Brasil (um nó da rede global
dos colégios jesuítas) como pelas suas numerosas leituras durante a sua longa vida, estava a par da ciência do seu tempo. Aos seus conhecimentos científicos
ia amiúde buscar exemplos que serviam no seu discurso catequético e profético.
No discurso de Padre António Vieira coexistem
referências a autores antigos, como Aristóteles, que era a cartilha nas escolas
jesuítas, e a autores modernos, como Descartes. Este filósofo e matemático apresentou em 1637, num apêndice ao famosíssimo Discours de la Méthode, uma descrição
científica do arco-íris: este não era mais do que o resultado da refracção e da
reflexão da luz solar em gotas de água na atmosfera. A luz solar batia na gota,
desviava-se, reflectia-se no fundo da gota e voltava a desviar-se ao sair.
Descartes foi, com o holandês Snell, o autor das leis da refracção, que
descrevem matematicamente o desvio da luz quando passa de um meio para outro,
no caso o ar e a água. Mais tarde, Newton, que realizou experiências com
prismas de vidro em 1666, explicará que o desvio da luz de um meio para outro
se devia à diferente velocidade de diferentes partículas de luz nos dois meios.
A luz solar é branca, mas, como a luz branca é feita de partículas
correspondentes às diferentes cores, as cores apareceriam diferenciadas dentro
da gota e, ainda mais, à saída dela. No século XVII, o arco-íris era
considerado “um dos principais ornamentos
do trono de Deus” (Discours sur l'histoire universelle, 1681, do bispo e teólogo francês Jacques de
Bossuet) e, conforme
está escrito no Génesis, o sinal da aliança
que Deus tinha celebrado com os homens após o Dilúvio universal (“o meu arco que coloquei nas nuvens. Será o sinal da minha aliança com a terra”, Gn. 9, 13). Ainda hoje o arco-íris se diz Arco da Velha:
Velha significa Velha Aliança. Ora, num dos
Sermões do Santíssimo Sacramento (in Obra
Completa do Padre António Vieira, Parenética,
tomo II, vol. VI, dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa: Círculo de
Leitores, 2013-2014, p. 84), proferido em Santa Engrácia, Lisboa, em 1645, escassos oito anos após ter saído
o livro de Descartes, Vieira diz: “Na
Íris ou Arco celeste, todos os nossos olhos jurarão que estão vendo variedade
de cores: e contudo ensina a verdadeira Filosofia que naquele Arco não há
cores, senão luz, e água”.
A verdadeira Filosofia significa a ciência dos modernos, entre os quais estava Descartes. Mais tarde, no Sermão da Segunda Dominga da Quaresma (idem, tomo II, vol. III, p. 49), pregado na Capela Real em 1651, Vieira afirma: “Isto, que chamamos Céu, é uma mentira azul, e o que chamamos Íris ou Arco-celeste, é outra mentira de três cores”.
A verdadeira Filosofia significa a ciência dos modernos, entre os quais estava Descartes. Mais tarde, no Sermão da Segunda Dominga da Quaresma (idem, tomo II, vol. III, p. 49), pregado na Capela Real em 1651, Vieira afirma: “Isto, que chamamos Céu, é uma mentira azul, e o que chamamos Íris ou Arco-celeste, é outra mentira de três cores”.
Com efeito,
sabemos hoje que a cor azul do céu se deve à difusão da luz branca pelas
moléculas que constituem o ar: o céu, de facto, é preto, como poderá confirmar hoje
um astronauta da Estação Espacial Internacional. E sabemos também que as cores
todas do arco-íris (convencionalmente sete, mas, na realidade, tantas quantas se
quiserem pois existem todas as cambiantes entre o vermelho e o violeta) podem
ser obtidas combinando as três cores primárias: vermelho, azul e verde. Numa
linha científica coerente, Vieira, numa outra prédica, o Sermão da Quinta Quarta-feira da Quaresma (idem, tomo
II, vol. IV, p. 215), dito na Misericórdia de Lisboa em 1669, explica o arco-íris com
base na refracção da luz, como Descartes tinha aventado: “O rústico, porque é ignorante, vê muita variedade de cores no que ele
chama Arco-da-Velha; mas o Filósofo,
porque é sábio, e conhece que até a luz engana (quando se dobra), vê que ali
não há cores, senão enganos corados, e ilusões da vista”.
Repare-se como é
dada a primazia ao saber do “filósofo” (filósofo natural, entenda-se) em
relação ao saber comum. Uma das marcas da ciência moderna é precisamente a
ultrapassagem do senso comum: esta é ainda mais visível em Galileu e Newton do
que em Descartes. O arco-íris é real, mas, para ele existir, têm de concorrer três
coisas: a luz solar, as gotas de água e os olhos do observador. Cada observador
terá sempre um arco-íris em torno de si, razão pela qual nunca poderá alcançar
uma ponta.
Passando agora da terra para o céu, foi em 1609 que Galileu dirigiu pela primeira vez a sua
luneta para o firmamento. A observação que fez das luas de Júpiter foi não uma
prova do sistema heliocêntrico, mas uma indicação da sua plausibilidade, já que
havia, além da Terra, um astro com luas em órbita. Vieira, embora conhecendo
a tese heliocêntrica de Nicolau
Copérnico, publicada em 1543, e defendida muito mais tarde por Galileu, com a oposição da Igreja, não a sustentou,
como aliás seria de esperar de um ministro da Igreja. Mas Vieira não
menosprezou o poder explicativo do sistema heliocêntrico. Sobre ele afirmou no Sermão do Primeira Dominga do Advento (idem, tomo
II, vol. I, pp. 181-182), pregado na Capela Real em 1652: “Copérnico, insigne Matemático do próximo
século, inventou um novo sistema do mundo, em que demonstrou, ou quis
demonstrar (posto que erradamente) que não era o Sol o que se movia, e rodeava
o mundo, senão que esta mesma terra, em que vivemos, sem nós o sentirmos, é a
que se move, e anda sempre à roda. De sorte, que quando a terra dá meia volta,
então descobre o Sol, e dizemos que nasce, e quando acaba de dar a outra meia
volta, então lhe desaparece o Sol, e dizemos que se põe. E a maravilha deste
novo invento é que na suposição dele corre todo o governo do universo, e as
proporções dos astros, e medidas dos tempos com a mesma pontualidade, e certeza,
com que até agora se tinham observado, e estabelecido na suposição contrária”.
Apesar de
apontar o erro do esquema copernicano, atente-se na sua expressão admirativa: “a maravilha do novo invento”. No Sermão
da Dominga Décima Sexta Post Pentecosten
(idem, tomo
II, vol. V, p. 287), dito na
Capela Real em 1651, Vieira esclareceu que Copérnico estava errado por contrariar
a Bíblia: “Opinião foi antiga de
muitos Filósofos que não era o Sol o que se movia, e dava volta ao mundo, senão
que permanecendo sempre fixo, e imóvel, esta terra em que estamos é que, sem
nós o sentirmos, se move, e nos leva consigo (...). Mas esta opinião, ou
imaginação matemática, assim como ressuscitou em nossos tempos, assim foi também
condenada como errónea, por ser expressamente encontrada com as Escrituras
divinas”.
O heliocentrismo era antigo (Aristarco de Samos tinha-o defendido no século III a.C.) mas eram Galileu e Kepler, Galileu com bastante mais estrondo, que agora o propalavam. Em Portugal, as ideias heliocêntricas, embora tivessem sido no século XVI do conhecimento do matemático Pedro Nunes, “cosmógrafo-mor do Reino”, demoraram muito tempo até encontrarem acolhimento generalizado. Ainda em finais do século XVIII eram vistas com muitas reservas entre nós.
Se Vieira não foi
copernicano, de facto no seu tempo quase ninguém era. Mas foi moderno em muitos
aspectos. Viajante por várias vezes ao Brasil e observador da realidade dos
trópicos, chamou a atenção para o extraordinário valor das observações dos portugueses
de novas terras, novas espécies e novas gentes. O conhecimento empírico passou
a contrapor-se, nos séculos XV e XVI, ao saber das antigas autoridades, num
prelúdio à Revolução Científica. No Sermão
da Terceira Dominga do Advento (idem, tomo II, vol. I, p. 262), pregado na Capela Real
em 1650: “Nenhuma
coisa houve mais assentada na antiguidade, que ser inabitável a Zona tórrida: e
as razões, com que os Filósofos o provavam, eram ao parecer tão evidentes, que
ninguém havia que o negasse. Descobriram finalmente os Pilotos, e marinheiros Portugueses
as costas da África, e da América; e souberam mais, e filosofaram melhor sobre
um só dia de vista, que todos os Sábios e Filósofos do mundo em cinco mil anos
de especulação. Os discursos de quem não viu são discursos: os ditames de quem
viu são profecias”.
Um bom exemplo da contraposição
entre os saberes antigo e moderno é a existência humana nos antípodas. Vale a
pena ouvir a poderosa voz de Vieira (in Autos do Processo da Inquisição, idem, Obra
Profética, tomo III, vol. IV, p. 439) afirmando que
os Portugueses sabiam bem mais sobre o assunto do que os antigos: “Já disse
que acerca da zona tórrida e dos antípodas ensinaram os pilotos portugueses ao
mundo, sem saberem ler nem escrever, o que não alcançou Aristóteles, nem Santo
Agostinho pela diferença dos tempos; e sendo os tempos, como confessam os
mesmos padres, o melhor intérprete das profecias, bem pode acontecer sem
maravilha e cuidar-se sem presunção, que um homem muito menos sábio possa
atender, depois do discurso de largos
anos e sucessos, algumas profecias que os antigos, sapientíssimos e
santíssimos, por falta de notícia não declararam nem alcançaram.”
O
próprio Vieira foi um descobridor dos céus. Forneceu
contribuições para a ciência ao deixar registos das suas observações de cometas,
alguns delas inéditas, como o cometa que viu na Baía em 1695, quase no fim da
sua vida. Para ele os cometas eram sinais de Deus. Por isso, com atentíssimo
olhar, perscrutava as mudanças na abóbada celeste. No seu tempo, as esferas
sólidas e fixas do céu do sistema geocêntrico de Aristóteles e Ptolomeu estavam
a ser substituídas pelo conceito de céu fluido, um céu que os cometas
conseguiam romper para chegarem perto da Terra. O céu deixava de estar longe e
separado da Terra.
(publicado também como capítulo de livro in "Vieira, Esse povo de palavras", coord. José Eduardo Franco, Aida S. lemos e Paulo S. Ferreira, Esfera do Caos, 2016, pp. 111-114)
(publicado também como capítulo de livro in "Vieira, Esse povo de palavras", coord. José Eduardo Franco, Aida S. lemos e Paulo S. Ferreira, Esfera do Caos, 2016, pp. 111-114)
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