sexta-feira, 4 de setembro de 2015

PAGADORES DE PROMESSAS


Foi em recolhimento que li este texto (publicado no “JL”) em que Eugénio Lisboa, uma marcante personalidade da Cultura, fala de um homem bom, Amadeu Ferreira, com a generosidade que perpassa nas suas palavras, evocando a brilhante biografia escrita por Teresa Martins Marques sobre "essa grande figura do intelecto, da acção e do coração". É, portanto, em agradecimento a Eugénio Lisboa (que, em outras ocasiões, tem proporcionado ao DRN idênticas e valiosas oportunidades) que ora se publica esta peça literária:

“Nunca faças coisas pela metade”.
Provérbio

De uma biografia falo hoje. As biografias são uma espécie traiçoeira: dizia Wilde que todo o grande homem tem os seus discípulos, mas é sempre Judas quem lhe escreve a biografia. Tem-se visto que é assim. Mas não é de modo nenhum o caso que hoje aqui nos traz: a monumental dádiva biográfica que Teresa Martins Marques quis consagrar a essa grande figura do intelecto, da acção e do coração, que foi Amadeu Ferreira, há pouco falecido.

O livro que tenho à minha frente – O Fio das Lembranças / Biografia de Amadeu Ferreira – é o monstruoso pagamento de uma promessa. É o mais improvável acto de generosidade e entrega a que, até hoje, me foi dado assistir: 400 páginas de texto construído sob o império de uma vontade inquebrantável e à pressão de uma terrível urgência (concluir a obra, se possível, a tempo de o biografado – mortalmente doente – a poder ainda ler), acrescidas de outras tantas de testemunhos de amigos, colegas e admiradores, arrancados, coligidos e “montados”, com uma energia que não é deste mundo. Pacto fáustico com o diabo? Sei lá!

De qualquer modo, Teresa Martins Marques tem o hábito de obedecer ao provérbio que dou em epígrafe: “Nunca faças coisas pela metade.” As obras dela, começadas, talvez, como coisas para dimensões normais, acabam por se lhe expandir, nas mãos, alargando-se, pantagruelicamente, até atingirem o volume capaz de lá se lhe meter tudo. Viu-se isso com a monumental dissertação de doutoramento que dedicou a David Mourão-Ferreira, e vê-se, agora, com este prodigioso empreendimento, que é o livro que dá nova e mais concentrada vida à vida singular desse jurista, professor, poeta, romancista, e estudioso e divulgador do mirandês – além de “campeador melhorista”, para usar uma expressão de António Sérgio – que foi Amadeu Ferreira.

Em 2009, a autora desta biografia conheceu o jurista, escritor e militante da cultura mirandesa, Amadeu Ferreira, num almoço aprazado entre este e o seu amigo Ernesto Rodrigues – e logo se deixou enfeitiçar pela “luminosidade do olhar, o sorriso franco, a perspicácia das observações, a determinação das suas posições, a agilidade da sua inteligência.” Depois, ao longo dos encontros e das leituras, foi coleccionando outras virtudes do futuro biografado: cultura, simpatia, bondade, dedicação aos outros (de preferência aos “necessitados”), postura cívica impecável. A que veio acrescentar-se a admiração pelo poeta, pelo ficcionista e pelo campeador da língua de Miranda, para a qual verteu a “Mensagem” e” Os Lusíadas”.

Com a empatia profunda, o apelo tornou-se irresistível. Num encontro em Bragança, finalmente, tudo aconteceu: “num impulso que ainda hoje não sei explicar”, disse-lhe: «Você merece que lhe escrevam a biografia.»” O resultado da promessa então feita é este livro, levado a cabo a golpes de energia e obstinação. Boa pagadora de promessas, Teresa Martins Marques foi dando forma e volume à vida verdadeiramente épica e exemplar do autor de “Tempo de Fogo “(La Bouba de la Tenerie, em Mirandês). Dizia Virginia Woolf que “biografia é dar a um homem uma espécie de forma, depois da sua morte”. Foi isto mesmo que fez a biógrafa deste homem bom e inteligente (binário improvável), ao longo das 800 páginas desta obra (porque as 400 de testemunhos cumprem exactamente o mesmo objectivo): livro que se não pode ler, a não ser com muitas horas disponíveis e um pequeno guindaste que o suspenda diante dos nossos olhos atónitos e dos nossos braços impotentes…

Segundo Carlyle, o dos “Heróis”, uma vida bem escrita é quase tão rara como uma vida bem vivida. Amadeu Ferreira foi, neste sentido, um privilegiado: apesar de originalmente pobre, no sentido mais despido do termo – oriundo de um berço desacautelado, em Sendim, Miranda do Douro – viveu uma vida bem recheada, onde nada lhe foi dado e tudo teve que conquistar (e foi muito) a pulso e à força de carácter e inteligência, subindo, sem golpes nem atropelos, ao topo de uma carreira difícil e minada, e deixando, atrás de si, um rasto luminoso de seres a quem ajudou, promoveu e libertou. 

Tendo, no final, e contra todas as probabilidades, encontrado quem lhe escrevesse a odisseia, uma, talvez, destacando-se de poucas mais, idênticas, mas que ficaram, essas, sem crónica que as lembre à memória dos homens. Pode ser que ser pobre não seja um crime, como rezam uns provérbios que andam por aí a tentar amaciar uma condição intolerável, mas permitir que a pobreza exista e persista – é, por certo, um crime hediondo, que os nossos quarenta e um anos de democracia ainda nem sequer tentaram resolver, permitindo até que se concentre quase toda a riqueza nas mãos de alguns oficialmente cristãos, que piamente nos aconselham a vivermos com pouco e a resignarmo-nos muito. Que, dos pobres, é o reino dos céus, o qual os ricos meticulosamente evitam.

O livro, em boa hora congeminado e redigido por Teresa Martins Marques, apoiou-se numa séria e abundante consulta de documentos e em muitas horas de entrevista filmada pelo excelente e cuidadoso Leonel de Brito, entre Novembro de 2013 e Janeiro de 2014 (ao todo, 31 horas “densas de pormenores, riquíssimas de conteúdo”) – obra que “permitisse entender o pulsar da sua inteligência” e, acentua Teresa, “retribuir-lhe a atenção que ele sempre dá aos outros.”

Não resisto a reproduzir aqui como tudo isto – a filmagem – aconteceu: “A ideia que permitiu escrever esta biografia no prazo de um ano partiu dele [de Leonel de Brito] como sempre acontece. O Leonel tem belas ideias e sabe colocá-las rapidamente em prática, graças à sua imensa experiência de cineasta conceituado, que sabe fazer belos filmes como Gente do Norte, que voltei a ver agora na Cinemateca. Num café ao lado da nova CMVM, na Rua Laura Alves, o Leonel, o António Tiza, o Rogério Rodrigues e eu esperávamos a chegada do Ernesto [Rodrigues] para visualizarmos, com o Amadeu, o documentário que o Leonel fizera em Sendim, com os pais [do Amadeu], a seu pedido. Discutíamos entre nós a melhor forma de dar alegria ao Amadeu, naquele momento tão complicado da sua saúde. O Leonel olha para mim e pergunta: «E se fizéssemos também um filme com o Amadeu?» Sorri e agarrei a ideia no ar. Mal entrámos no seu gabinete, na CMVM, ataquei o objectivo: «Amadeu, quero pedir-te uma coisa: preciso que faças umas gravações com o Leonel, como material de base da biografia.» Nem um segundo hesitou: «Quando começamos?»”

Eis o que permitiu à biógrafa colher ao vivo, a quente, o depoimento, em discurso directo, do biografado – com a vitalidade pulsante que nenhum documento transmite.

É quase criminoso fazer uma recensão crítica confinada ao cárcere dos 6000 ou 7000 caracteres que o JL me concede, quando se trata de um livro tão volumoso, tão rico, tão cheio de histórias de exemplo e proveito, como é este Fio das Lembranças, que nos entrega, generoso, inteligente e palpitante, um dos mais singulares passageiros do nosso tempo.

Quero terminar, transcrevendo umas palavras que Amadeu Ferreira proferiu, numa entrevista dada, em Abril de 2005, ao Programa Nordeste com Carinho, de Maria de Jesus Cepeda e Marcolino Cepeda. Ao pedido dos entrevistadores – “Fale-nos da sua «Construção do Céu», para utilizar palavras suas” – Amadeu Ferreira respondeu: “A «Construção do Céu» é um pouco aquela ideia que eu teria… eu tenho uma dívida para com a sociedade… A primeira imagem de uma sociedade perfeita que eu conheci, conheci-a no seminário, que é o «Céu» e, portanto, de alguma forma, achei que tinha o dever de fazer com que o Céu fosse cá na Terra. De alguma forma foi esse o céu em que eu sempre acreditei, pelo qual sempre me esforcei e isso passou por várias atitudes na minha vida (…)”.

Amadeu Ferreira sentiu, desde muito novo, que tinha “uma dívida para com a sociedade” e prometeu a si próprio pagá-la. Bom e honesto pagador de promessas, saldou, com generoso exagero, essa dívida. Teresa Martins Marques, por sua vez, quando o conheceu, sentiu que lhe devia uma biografia e prometeu fazê-la: também boa pagadora de promessas, cumpriu, à grande medida e sem se poupar, a dívida contraída. Duas belas histórias de pagamento de promessas, em tempos em que muito se promete e pouco se cumpre. Uma pessoa com coragem constitui uma maioria, disse Andrew Jackson. Duas pessoas com coragem constituem uma imensa maioria.

Eugénio Lisboa

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