segunda-feira, 11 de maio de 2015

EM DEFESA DO PATRIMÓNIO GEOLÓGICO


Novo texto de António Galopim de Carvalho (na imagem o Monumento Natural das Portas de Rodão):

Património começou por ser, entre os romanos, o conjunto dos bens pátrios, ou seja, dos bens da família, transmissíveis aos descendentes, de pais a filhos. O conceito alargou-se depois a todos os bens que passam de gerações em gerações, como herança, ou pertença das que vão constituindo o presente, evocando ou lembrando as passadas, e que se entende preservar para legar às vindouras. É nesta medida que património e monumento se confundem, uma vez que, na origem, igualmente latina, monumento é tudo o que traz à mente e perpetua alguém ou alguma coisa.

 Visto quase sempre como um produto concebido e concretizado pelo génio humano, no domínio das artes, da ciência e da tecnologia, o património tem vindo, nos últimos tempos, a abarcar um outro tipo de heranças postas à nossa disposição pela mãe Natureza. Tais heranças, dado que evocam e perpetuam uma história bem mais antiga do que a decorrente da criatividade humana, devem ser, por força de razão, consideradas monumentos. Foi nesta medida que o Decreto-Lei 19/93, de 23 de Janeiro, criou a figura jurídica “Monumento Natural” e que o termo geomonumento começa a ser usado para referir toda e qualquer ocorrência geológica que, pelo seu conteúdo, mereça ser preservada e valorizada como um documento do nosso passado geológico, convencionado para trás da pré-história do Homem. Passado que recua ao tempo das mais antigas rochas conhecidas, com 4280 milhões de anos (na região de Nuvvuagittuq, no litoral oriental da Baía de Hudson, a norte do Quebeque, no Canadá), num planeta onde surgimos, como espécie, há apenas alguns milhares de anos.

 Entre os geomonumentos referenciados, alguns estão classificados como ocorrências de interesse local, pelas autarquias que os detêm nos seus concelhos e essa classificação tem-se revelado suficiente no que respeita a respectiva salvaguarda, valorização e manutenção. Muito se fez neste domínio nos concelhos de Évora, Lisboa, Setúbal e Viseu. Estas autarquias têm vindo a musealizar as ocorrências que classificaram. A meu conselho, não foi solicitada a classificação destes bens patrimoniais como Monumentos Naturais, ao Instituto de Conservação da Natureza, porque se, por um lado, este organismo responde mal a essas solicitações, já provou que não cuida dos que classificou. Acresce ainda que, uma vez classificadas como tal, nada ali se pode fazer sem a indispensável luz verde deste organismo estatal, o que bloqueia toda e qualquer iniciativa local. Foi o que aconteceu, lamentavelmente, com o projecto do Museu e Centro de Interpretação de Pego Longo, no concelho de Sintra, a que aludirei mais adiante. As quatro autarquias citadas puderam avançar livremente e desenvolver, com total liberdade, os seus projectos face a essas ocorrências porque, em boa hora, as não submeteram a este organismo.

Fala-se frequente e correntemente de património construído, património histórico, património cultural e de outros alusivos a aspectos mais particularizados (científico, musical, arquitectónico, folclórico, literário, gastronómico, etc.). Já se vai falando, felizmente, de património natural, expressão que tem vindo a conquistar o seu lugar ao sol e cujo conceito começa a impor-se, mercê de uma caminhada persistente de um número crescente de cidadãos interessados na defesa dos valores naturais, com destaque para os ambientalistas. Entre o património natural, o biológico tem sido sempre o mais divulgado, uma vez que o mundo vivo está mais perto das preocupações do cidadão comum e, também, temos de o reconhecer, por mérito dos biólogos como classe profissional. Neste quadro, as medidas de protecção da natureza sempre foram mais numerosas e visíveis sobre a biodiversidade do que sobre a geodiversidade.

O património geológico tem estado mais esquecido. Uma das razões desta realidade reside, como o tenho dito sempre que a oportunidade o permite, na relativamente pouca importância dada à geologia no nosso ensino e na praticamente inexistência de cultura geológica dos portugueses, em geral, e dos decisores políticos em, particular. A outra, há que admiti-lo, reside no facto de os geólogos nunca terem sabido unir-se em torno das grandes causas associadas à sua profissão, ao contrário do que têm feito biólogos e arqueólogos, para não falar nos médicos, advogados e engenheiros.

 Os geomonumentos são georrecursos culturais não renováveis, o que quer dizer que, uma vez destruídos, ficam perdidos para sempre e, com eles, as “páginas” da história da Terra e da Vida de que são testemunhos. Face ao desenvolvimento acelerado da sociedade de consumo, a paisagem que nos rodeia está cada vez mais pobre em elementos naturais, entre eles, estes documentos geológicos. A curto prazo, o crescimento dos agregados urbanos e dos equipamentos que lhes estão anexos (parques industriais, vias de comunicação, áreas portuárias, aeroportos, etc.) irá tapar com asfalto e betão todas as “janelas” abertas ao substrato geológico, ocultando, ao cidadão, uma parte substancial da natureza que o suporta a ele e à sociedade. A tendência actual dos serviços de obras públicas vai no sentido de cobrir a maioria dos taludes (tradicionais e utilíssimos locais de observação geológica) não só nas cidades, como nas estradas e auto-estradas. Por razões de estabilidade das vertentes e de custos de manutenção, está em moda “ganitar” (do inglês, gun) o talude, isto é, cobri-lo com cimento, numa espécie de pintura à pistola.

A experiência de décadas na busca de soluções que salvaguardem e valorizem o nosso património geológico tem revelado, por parte dos serviços competentes, uma grande resistência à classificação de ocorrências referenciadas como de interesse geológico (geossítios, no dizer de alguns, e geótopos, no dizer de outros). Uma tal resistência é, em minha opinião, fruto da própria letra do referido Decreto-Lei que criou a figura de Monumento Natural e determina a sua classificação, pelo Instituto de Conservação da Natureza. Nos artigos 4º e 21º do citado diploma, está claro que incumbe ainda a este organismo governamental a responsabilidade de manutenção e fiscalização dos monumentos que é de sua competência classificar. Dadas as limitações orçamentais com que se têm debatido a maioria dos nossos serviços públicos, não nos surpreende essa resistência. Classificar uma ocorrência, ao abrigo da legislação vigente, significa sobrecarregar um orçamento sempre curto e, assim, fica-nos a esperança de melhores dias e de maior interesse por parte de administrações futuras. Uma sugestão que tenho defendido, no sentido de obviar este inconveniente, consiste em modificar a letra do referido diploma legal, nos dois artigos citados, atribuindo às Câmaras Municipais a responsabilidade da gestão e manutenção dos Monumentos Naturais situados nas áreas dos correspondentes concelhos. Estas ocorrências só seriam classificadas por propostas dessas autarquias ou através delas, depois de favoravelmente informadas pelos seus serviços competentes. Assim, ao submeterem ao ex Instituto de Conservação da Natureza (ICN) uma proposta de classificação deste tipo, os municípios assumiam, à partida, todas as obrigações inerentes à classificação, entre as quais protecção, conservação e eventual musealização da ocorrência em causa. Nesta perspectiva, caberia ao referido Instituto a coordenação do conjunto de Monumentos Naturais classificados a nível nacional, no quadro das suas competências e da política do governo neste sector. Caberia ainda ao ICN a função de zelar pelo cumprimento da lei e das obrigações estabelecidas e assumidas pelas autarquias e intervir sempre que fosse caso disso.

Importante na prossecução das políticas governamentais em matéria de ambiente e conservação da natureza, o ICN nunca revelou particular empenho nem vocação para o património geológico. A actual designação oficial deste organismo do Estado, “Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas”, bem como a que a antecedeu, “Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade”, são dois pontapés na Lógica. O número de geólogos que emprega no seu quadro técnico e/ou científico assim o comprova. O mesmo se pode deduzir dos apenas sete Monumentos Naturais classificados, em 22 anos, ao abrigo do citado Decreto-Lei 19/93, cinco deles por propostas do Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa, através das Câmaras Municipais que os detêm nas áreas dos seus concelhos. Este diploma, publicado no período agudo da luta pela defesa da Jazida de Pego Longo (Carenque), não obstante o alheamento da problemática geológica e paleontológica, por parte do legislador e de quem lhe forneceu a necessária informação, permite, ainda assim, incluir nessa figura jurídica e nesse conceito alguns geomonumentos cuja defesa se agudiza sempre que ameaçados pela ocupação humana. Pedreira do Galinha, na Serra d’Aire, em 1996 (Dec. Reg. n.º 12/96, de 22 de Outubro), Pego Longo, em Carenque, Sintra (Dec. nº 19/97, de 5 de Maio), Pedra da Mua, Avelino e Lagosteiros, na região do Cabo Espichel (Dec. nº 20/97, de 7 de Maio), Cabo Mondego (Dec. Reg. nº 80/07, de 3 de Outubro) e Portas de Ródão (Dec. Reg. nº 7/09, de 20 de Maio) são os únicos Monumentos Naturais que mereceram esta classificação legal, num sem número de ocorrências à espera de idêntica atenção.

Não obstante a letra do diploma que os classifica, estabelecer que incumbe ao ICN a protecção e manutenção dos Monumentos a verdade é que essa manutenção deixa muito a desejar.

 António Galopim de Carvalho

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