segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Enxaquecas de famosos


Excerto do livro "Enxaqueca" de Ana Carvalhas, saído há pouco na Gradiva:


"Nesta secção apresento alguns casos de pessoas famosas que provavelmente sofreram de enxaqueca. É difícil fazer, por vezes, uma «autópsia» a partir dos escritos ou obras feitas, designadamente para os personagens mais antigos, mas a probabilidade de se tratar de enxaquecas é em geral muito forte para os casos aqui indicados.

A história das enxaquecas é tão antiga quanto a humanidade. Sendo eu uma pessoa praticamente anónima, neste capítulo conto, em pinceladas rápidas, os casos de algumas figuras famosas que provavelmente sofreram da mesma doença que eu, ou pelo menos se presume que assim foi. Haverá mais, certamente. Os seus relatos ou as suas representações artísticas da doença são muito sugestivos, valendo a pena apresentá‑los aqui, por ordem cronológica de nascimento.

O famoso médico romano Cláudio Galeno (c. 129‑c. 217), natural de Pérgamo, na Grécia, é o autor do termo «hemicrania» (metade da cabeça), do qual emergiu o termo «migrânea» (lembro que, em inglês, enxaqueca se diz migraine), a que comummente se chama hoje «enxaqueca». Dizia‑se «hemicrania» porque, em muitos casos, as dores da enxaqueca só afetam metade da cabeça. Galeno foi um autor de referência na medicina da Idade Média e também do Renascimento.

O imperador romano Júlio César (100 a. C.‑44 a.C.), o poderoso chefe militar que conquistou a Gália, sofria de dores de cabeça intensas, perturbações da visão e fraquezas, em particular nos anos que precederam o seu assassínio pelo traidor Bruto. Muito provavelmente tinha enxaquecas com aura, em vez de ataques epiléticos ou mini AVC, que, apesar de terem algumas características semelhantes, lhe teriam prejudicado mais severamente as capacidades de escrita e de direção militar e política.

A abadessa alemã Hildegard von Bingen (c. 1098‑1179), ou Santa Hildegarda (é santa da Igreja Católica formalmente desde 2012, apesar de a sua veneração ser bastante mais antiga), foi uma freira beneditina que dirigiu o Mosteiro de Rupertsberg em Bingen am Rhein, na Alemanha. Polímata, foi não apenas escritora nas áreas da teologia e filosofia e compositora musical como também mística, cujas visões, iniciadas na infância, ficaram na história da religião. Além disso, pode ser considerada uma alquimista no sentido em que introduziu ervas medicinais, algumas das quais chegaram até nós: neste sentido é  uma das primeiras mulheres da ciência. Pelas descrições que nos deixou, designadamente em dois códices manuscritos, uma parte da comunidade científica acredita hoje que ela sofria de enxaquecas. Outros místicos contaram visões semelhantes ao longo da história. Nas palavras que Hildegarda nos deixou:

"As visões que eu tive não recebi em sonhos, ou sono, ou delírio, ou pelos olhos do corpo, ou pelos ouvidos do eu exterior, ou em lugares escondidos; mas eu as recebi acordada e vendo com a mente pura e os olhos e os ouvidos do eu interior, em lugares abertos, como Deus quis. Como isso pode ser é difícil para a carne mortal entender."

Dando um grande salto no tempo, o escritor espanhol Miguel de Cervantes (1547‑1616), o famoso autor do Dom Quixote, poderá ter sofrido de enxaquecas, a avaliar pelos seus escritos, designadamente nessa obra‑prima da literatura universal. O personagem do «cavaleiro da triste figura» fornece muita informação aos neurologistas de hoje, tendo alguns destes adiantado a hipótese de ser portador de uma demência. Para o neurologista espanhol laureado com o Nobel da Medicina Santiago Ramon y Cajal, Dom Quixote não era demente, mas tinha problemas de saúde, como muitos seres humanos, ficando por saber qual é a componente autobiográfica na construção do personagem. Cervantes tinha algum conhecimento das obras médicas da época. No Dom Quixote pode ler‑se: «Quando a cabeça sofre, todos os membros sofrem.»

Thomas Jefferson (1743‑1826), um dos pais fundadores dos Estados Unidos e o terceiro presidente dos Estados Unidos (era, além disso, amigo do diplomata e cientista português abade José Correia da Serra, para quem tinha reservado um quarto na sua mansão na Virgínia, perto de Washington), deixou na sua correspondência e nos seus diários descrições de ocorrência de dores de cabeça mais ou menos periódicas que podem ter sido enxaquecas. Algumas delas ocorreram no período crítico da história norte‑americana e mundial que foi a preparação da independência dos Estados Unidos.

Um outro presidente norte‑americano que sofria de crises de enxaquecas foi o 18.o presidente Ulysses Grant (1822‑1885), que foi comandante no final da guerra civil. Desde jovem que teve enxaquecas recorrentes que, aparentemente, eram desencadeadas ou intensificadas por sons musicais. Um terceiro presidente norte‑americano com um registo clínico em que é possível identificar enxaquecas foi, muito mais tarde, John F. Kennedy (1917‑1963), o 35.º presidente, que ficou célebre com a sua promessa no início dos anos de 1960 de uma viagem humana à Lua (concretizada pela primeira vez em 1969 com a missão Apollo 9). Não gostava de viajar em carros descapotáveis, porque a luz solar lhe causava enxaquecas. Morreu, como se sabe, num atentado, quando se deslocava, em Dallas, precisamente num carro descapotável...

Tendo sido como Júlio César um dos maiores comandantes militares da história, o imperador francês Napoleão Bonaparte (1769‑1821) sofreu, pelo menos durante algumas campanhas militares, de dores de cabeça que podem ter sido enxaquecas. Napoleão sofreu de outras doenças, entre as quais a sífilis, que ainda hoje são objeto de controvérsia por médicos interessados pela história.

O naturalista inglês Charles Darwin (1809‑1882), o famoso autor da Origem das Espécies, publicado pela primeira vez em Londres em 1859, tendo‑se logo tornado um best‑seller, não só no Reino Unido como em todo o mundo, foi um homem bastante doente durante uma boa parte da sua vida. Apesar de haver alguma incerteza, há um diagnóstico de enxaqueca feito por muitos médicos que estudaram a sua biografia. Havia decerto outra doença (ou doenças), agravada por situações de stresse. Devido ao seu estado de saúde débil, Darwin isolou‑se na sua casa de campo em Downe cultivando as suas orquídeas e evitando ao máximo encontros sociais. A defesa do darwinismo, que exigia energia e veemência, foi feita por outros.

A poeta norte‑americana Emily Dickinson (1830‑1886) sofria provavelmente de dores de cabeça intensas que deviam ser de enxaqueca. A sua situação de saúde reflete‑se na sua obra, feita de modo solitário. Dá a entender uma dor de cabeça intensa no seu poema «Senti um funeral no meu cérebro» (aqui na tradução de Augusto de Campos):

"Senti um funeral no meu Cérebro,

E Carpideiras indo e vindo

A pisar — a pisar — até eu sonhar

Meus sentidos fugindo —


E quando tudo se sentou,

O Tambor de um Ofício —

Bateu — bateu — até eu sentir

Inerte o meu Juízo


E eu os ouvi — erguida a Tampa —

Rangerem por minha Alma com

Todo o Chumbo dos pés, de novo,

E o Espaço — dobrou,


Como se os Céus fossem um Sino

E o Ser apenas um Ouvido,

E eu e o Silêncio estranha Raça

Só, naufragada, aqui —


Partiu‑se a Tábua em minha Mente

E eu fui cair de Chão em Chão —

E em cada Chão achei um Mundo

E Terminei sabendo — então —"´


O clérigo inglês Lewis Carroll (1832‑1898),  célebre autor de Alice no País das Maravilhas (1865) e da sua sequela Alice do Outro Lado do Espelho, de várias obras de matemática e também praticante de fotografia (ficaram famosas as suas fotografias de meninas), sofria de uma forma rara de enxaqueca com aura. Com razoável probabilidade o livro Alice no País das Maravilhas emergiu dessas suas perturbações de saúde. Hoje na literatura médica usa‑se mesmo o termo «síndrome de Alice no País das Maravilhas» para designar certas alucinações associadas a enxaqueca.

Os exemplos de Dickinson e Carroll estiveram longe de ser casos isolados no que respeita à sublimação artística de crises de enxaqueca. Além da literatura, também há exemplos nas artes visuais, como indicarei a seguir.

Consta que o pintor impressionista francês Claude Monet (1840‑1926), o autor de obras como Impressão, Nascer do Sol, que está no Museu Marmottan Monet em Paris, sofria de enxaquecas. Apesar de ter tido não apenas essa doença como até crises depressivas, o artista deixou uma produção pictórica notável. Foi o mais célebre dos pintores impressionistas, um movimento do qual ele pode ser considerado pioneiro. O Jardim de Giverny que serviu de inspiração a muitas obras, anexo à casa onde viveu durante mais de quatro décadas, pode hoje ser visitado. O pintor francês teve de interromper o seu trabalho por causa das crises de dor e distorção visual.

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844‑1900), crítico de muitas atitudes e valores do seu tempo, foi um homem doente desde criança. Quando tinha vinte e tal anos teve de abandonar uma posição de professor na Universidade de Basileia, na Suíça, por sofrer de dores de cabeça insuportáveis. Sofria de enxaqueca sem aura, mas, mais grave do que  isso, na parte final da sua vida padeceu de uma doença psiquiátrica progressiva que culminou numa demência profunda e na morte por pneumonia.

O pintor holandês Vincent van Gogh (1853‑1890), um pós‑impressionista que é considerado um dos nomes mais famosos da história da arte, padeceu de enxaqueca tal como Claude Monet. Como na altura esta enfermidade era associada a doença mental, chegou a estar internado no hospício de Saint Remy, em Arles, no Sul de França, durante uma crise. Foi aí, em 1889, que terminou o seu famoso quadro Noite estrelada (figura 3). Pode ser uma representação de uma enxaqueca com aura. Van Gogh apareceu morto com um tiro numa pensão, pensando‑se que cometeu suicídio.

Na transição do século xix para o xx, o médico austríaco Sigmund Freud (1856‑1939), distinguiu‑se como o fundador da psicanálise, a corrente da psiquiatria com um método peculiar de analisar a mente humana. Freud foi com grande probabilidade doente de enxaqueca. Escreveu sobre a natureza e origem das dores de cabeça que o atormentavam, que tentou contrariar tomando cocaína.

(...)"


Âna Carvalhas

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