quarta-feira, 16 de março de 2022

Sobre a coragem em tempos sombrios


Uma jornalista, filha de pai russo e mãe ucraniana, entrou inesperadamente num telejornal do principal canal da televisão russa. Desenrolou um cartaz escrito à mão onde denunciava a manipulação da verdade a que a comunicação social é obrigada, ajustou-se no espaço de modo que a mensagem fosse lida, demorou-se alguns segundos e saiu. Antes havia gravado uma mensagem em vídeo para explicar o seu acto bem consciente. Esperava-a, como é bom de ver, a prisão... Por ser um acto único, teve as atenções (e os elogios) do mundo. É um acto, que como outros desencadeados por valores que valem, colocam em perigo quem decide concretizá-los. Interroga-nos, de modo muito incisivo, sobre a nossa própria coragem para agir em circunstâncias adversas. Eis o que George Steiner diz sobre essa incómoda interrogação, que foi sua durante toda a vida:

... atormentavam-me as reacções que teria podido ter em certas condições: como me comportaria se a Gestapo batesse à porta? O que é ser torturado? Como reagir frente a essa obscenidade extrema que é a tortura? Ninguém, a menos estar seguro dos seus actos, pode responder (...). A minha posição é confusa: sou um intelectual que não teve qualquer preparação que lhe permita enfrentar a violência (...)Só posso repetir e sublinhar que não sei e que invejo os homens e as mulheres que sabem. 
Arthur Kostler não atribuía um átomo de importância ao facto de ser considerado um dos homens mais célebres do século XX. O que contava para ele era ter sido capaz de aguentar quando na prisão franquista de Málaga, estava à espera de ser fuzilado. Ele sabia. Quando me contava estas coisas, eu não podia deixar de achar que era uma experiência maravilhosa (...). 
Admiro igualmente Marc Bloch (...) que foi fuzilado pelos alemães. Entre os condenados estava um rapazinho de treze ou catorze anos que estava cheio de medo e no momento em que iam ser passados pelas armas, Marc Bloch deu-lhe a mão e pediu aos alemães que os deixassem morrer assim. Tendo obtido o acordo deles, Marc Bloch segredou ao ouvido do rapaz que era um professor célebre e prometeu-lhe que a execução não seria dolorosa. O rapaz acalmou-se. O meu próprio sonho seria ter tanta coragem como Marc Bloch, mas não faço a menor ideia do que sentiu (...) Como nos comportamos quando o momento chegar? (...) 
Os meus amigos do liceu Jeason-de-Sailly e os do liceu francês de Nova Iorque morreram nos fornos crematórios. Foram presos no Velódromo de Inverno de Paris, ao passo que eu escapei por uma sorte raríssima. Tenho por isso o dever de falar deles e por eles (...) Não tenho vivido até hoje neste luxo extraordinário que é a segurança? 
Steiner, G. & Jahanbegloo, R. (2000). Quatro entrevistas com Georges Steiner. Lisboa: Fenda, pp. 70-73.

2 comentários:

Anónimo disse...

Um mundo apenas feito apenas de ovelhinhas que pouco mais dissessem do que mé-mé seria ainda pior do que o nosso.
Felizmente, em Portugal todos os anos saem das nossas escolas e universidades públicas e privadas, centenas de especialistas em relações internacionais que, fruto de um vida dedicada aos seus altos estudos, nos podem explicar em todas as televisões, e pormenorizadamente, todas as causas e consequências das guerras, como a guerra atual entre a Rússia e a Ucrânia, numa perspetiva muito mais profunda do que poderiam dar as disciplinas clássicas tais como a História, a Geografia, a Religião e a Economia, constituindo-se numa mais-valia para a cultura do povo que na sua maioria apenas pode aspirar a sair da escolaridade obrigatória com um perfil de aprendizagens essenciais.

Eugénio Lisboa disse...

Comovente história que nos traz a Professora Helena Damião. Talvez goste de conhecer esta, com os mesmos protagonistas. George Steiner e Arthur Koestler encontraram-se, nos Alpes (se a minha memória me não engana) com um personagem Húngaro, na altura em que a Hungria era um satélite da União Soviética. Koestler, que também era húngaro, mas vivia exilado em Londres, perguntou ao seu compatriota como seria recebido, se fosse de visita à Hungria. Ao que o outro respondeu que os húngaros o receberiam de braços abertos, mas não poderiam garantir-lhe a segurança: os russos tinham uma lista muito pequena, com os nomes de pessoas que queriam a todo o custo apanhar; era uma lista muito pequena, mas o nome de Koestler estava nessa lista. Steiner, então, observou-lhe que o nome de Koestler nessa pequena lista deveria ser, para ele, um enorme motivo de orgulho, bem melhor do que qualquer prémio ou condecoração. Koestler, melancolicamente, concordou.
Eugénio Lisboa

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