quinta-feira, 3 de março de 2022

Minha entrevista a Leoní Serpa. estudante brasileira de doutoramento

Entrevista com Carlos Fiolhais realizada em 30.09.de 2021, por Leoní Serpa, no âmbito do seu trabalho académico:. 

 Leoní Serpa (LS)- Neste ano o senhor concluiu uma grande etapa profissional da sua vida. Já quase no final do ano letivo português, em 2021, o senhor proferiu a sua última aula na Universidade de Coimbra, depois de 44 anos, como professor, sendo 21 anos Professor Catedrático. Podemos supor que para, a partir de então, e com mais tempo, poderá agora dedicar-se mais a divulgação da Ciência em Portugal? Quais são seus planos? 

 Carlos Fiolhais (CF): De facto, disponho agora de mais tempo para três coisas que gosto de fazer: ler, escrever e viajar. As três coisas estão aliás relacionadas: para escrever é sempre necessário ler e, por vezes, é preciso viajar. Para viajar é preciso ler e, depois, pode-se escrever. Como disse na minha “última aula” conto continuar a dar outras “últimas aulas”. Conto estar activo na divulgação da ciência ou, como gosto de dizer, na difusão da cultura científica. Para haver mais e melhor ciência tem de haver mais e melhor cultura científica, que significa a consciência pelo público do que é a ciência, do seu interesse e utilidade, e também da sua relação com outras dimensões humanas. 

 LS: A partir de um entendimento de que nem todo o cientista e investigador possui habilidades comunicativas, e até gosto, tempo e vontade de se tornar um. Pergunto-lhe: - O que leva alguém a se tornar um divulgador científico? - Quais as características que possui, ou deveria possuir?

 CF: Um cientista não se deve sentir obrigado a divulgar ciência. Mas a comunidade científica deve sentir-se obrigada a fazê-lo. Como a ciência emana da sociedade, é preciso que a sociedade compreenda o significado e a necessidade da ciência. Um divulgador científico não tem de ser um cientista, pode ser por exemplo um jornalista com suficiente domínio dos assuntos que está a procurar transmitir. Uma condição sine qua non na divulgação de ciência é conhecer suficientemente bem o assunto de que se fala. Muitas pessoas, cientistas ou não, tornam-se divulgadores científicos por terem, além de conhecimentos, particulares dotes de comunicação. É difícil definir o que é um bom comunicador, mas a recepção pelo público-alvo costuma ser um bom indicador. Se o receptor capta uma mensagem é porque ela foi bem emitida. É o sucesso alcançado nos processos de comunicação que leva o comunicador a continuar a comunicar. A minha própria experiência testemunha esse facto. 

 Além de conhecimento das matérias, o divulgador tem de ter dotes que assegurem a eficácia da divulgação. Terá de se pôr no lugar do outro, considerando as questões que precisam de ser esclarecidas ou pelo menos debatidas, e terá de ter a empatia suficiente para que a ligação com o outro funcione. O treino ajuda, mas há, evidentemente, como em qualquer actividade humana, uma habilidade natural. Não sou juiz em causa própria, mas o bom acolhimento que tiveram os meus livros e as minhas palestras encorajaram-me a continuar o que tenho feito desde há mais de trinta anos no espaço de língua portuguesa. 

 LS: Por que e como o senhor optou por também exercer a atividade de divulgador científico? - Quando foi precisamente que o senhor começou essa atividade? 

 CF: Fiz o doutoramento na Alemanha logo depois da licenciatura. Regressado a Portugal em finais de 1982, comecei pouco tempo depois a proferir palestras para alunos não só universitários, mas também do ensino básico e secundário. E comecei a escrever artigos de divulgação, por vezes baseados nessas conferências. O meu primeiro livro, “Física Divertida”, que saiu na Gradiva em 1991 (e pouco depois na editora da Universidade de Brasília, no Brasil) teve origem precisamente nessas palestras e nesses escritos. Conheceu enorme êxito, pois se terão vendido só em Portugal mais de 20.000 exemplares. Foi o início de várias dezenas de outros livros de divulgação e pedagógicos. Neste momento, julgo que são mais de seis dezenas. Não foi apenas na imprensa que desenvolvi actividade de divulgação de ciência: foi também na rádio e televisão. Colaborei em dois programas de grande audiência: “Megaciência” na SIC e “ABCiência” na RTP. Assisti também ao desenvolvimento das redes de computadores (a World Wide Web surgiu em 1989) e desenvolvi, com alguns dos meus alunos, software educativo, páginas na Web sobre ciência, um blogue (“De Rerum Natura”) e, mais recentemente, podcasts e emissões em redes sociais como Youtube.

 LS: Percebo que a sua divulgação vai além dos artigos em jornais e inúmeros livros que publicou… 

 CF: Como disse, tenho mais de 60 livros: cerca de metade são manuais para uso escolar (uma maneira de ajudar no ensino das ciências) e os outros são de divulgação científica e histórica. A maior parte deles são em co-autoria: pouco se pode fazer sozinho. A estes acrescem naturalmente os numerosos capítulos de livros em colectâneas e os prefácios ou posfácios. Porque me pedem, já terei escrito mais de 30 prefácios ou posfácios: quase que chegavam para um livro… Sim, há muita divulgação que tenho feito para além dos livros. 

 LS: O senhor envolve-se também com outras formas de divulgação da ciência, como os museus, feiras e atividades promotoras de comunicação junto ao público, pode-nos contar um pouco sobre como é administrar todas essas atividades? 

 CF: Além dos livros, dos artigos na imprensa e nas intervenções nos outros média, como a rádio, a TV e a Internet, também tenho colaborado com museus de ciência e outros. Em particular, ajudei a desenvolver os programas da 1.ª e 2.ª fases do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra (infelizmente a 2.ª fase não prosseguiu como planeado), um museu com um património fabuloso, mas que ultimamente não tem sido devidamente valorizado. Talvez o meu acto mais marcante tenha sido a criação há 13 anos do Rómulo – Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra, que começou com uma biblioteca de cultura científica, que continua a crescer, e prosseguiu com um sem-número de palestras (ultimamente on-line, por causa da pandemia), um laboratório do-it-yourself e uma escola de ciência para crianças de nove anos. Durante uma semana elas estagiam na Universidade de Coimbra, sendo, portanto, “universitários” muito tempo antes de terem idade para isso. Sempre defendi que a interiorização da ciência tem de começar o mais cedo possível e, para isso, tenho escrito livros com actividades de índole experimental para os mais novos ou com conteúdos artísticos (poesia, canções, etc.) relacionados com a ciência. ´

LS: A tecnologia alargou bastante o espaço para que surjam comunicadores de todas as formas e áreas, especialmente durante a pandemia. No entanto, tem-se uma percepção que os investigadores, cientistas-divulgadores ainda são poucos e de que ainda precisam estar mais presentes, especialmente nas redes sociais, como o Youtube etc. Como o senhor vê essa realidade? 

 CF: A Internet e as redes sociais vieram para ficar. Não tiraram a televisão do lugar que ocupava na captura de atenção do público, mas complementaram-na, existindo processos de ligação entre a Internet e a televisão muito interessantes. Hoje temos, por exemplo, a televisão na Internet e podemos ter a Internet no ecrã de televisão. Os canais televisivos de acesso livre ou por cabo passaram a ter, como concorrência, os serviços de streaming, como a Netflix, HBO, Apple e Amazon. A ciência também encontrou espaço nesses novos meios. 

 Concordo que, neste mundo, onde a Internet e as redes sociais espalham não só notícias fiéis à realidade como também, e em quantidade assustadora, notícias falsas (além de uma pandemia tivemos uma “infodemia”!), é necessária uma maior presença dos divulgadores de ciência, sejam estes cientistas ou não. Se Carl Sagan fosse hoje vivo não faria o grande show que foi Cosmos na TV, mas faria outra coisa, também grande, na Internet ou na Netflix. Os meios tecnológicos mudaram e é preciso chegar ao grande público de outras maneiras. É preciso ter originalidade e qualidade, como ele teve. 

 Concordo que a Internet pode ter maior presença dos divulgadores de ciência: criando portais de referência, que valorizem pequenas produções individuais, e fazendo algum trabalho de selecção do que tem maior qualidade. Em tempos criei um portal de ciência para as escolas, O Mocho (no Brasil, seria “Coruja”), mas não houve meios para o manter. A comunidade científica portuguesa científica está muito dispersa nas tarefas de divulgação que empreende um pouco por todo o lado. Existe uma agência nacional para a cultura científica, criada pelo ministro José Mariano Gago, com o nome de “Ciência Viva”, mas ela perdeu o elã nos últimos tempos, repetindo iniciativas e não acompanhando os novos tempos, que colocam novos temas e oferecem novas formas de actuação. As universidades também fazem bastante trabalho nesta área, mas existe aí muita coisa que é marketing próprio. Além de cientistas, é preciso envolver gente de fora da ciência, em princípio mais perto do público. Em Portugal fazem falta, por exemplo, na autoria e edição de livros, mais jornalistas que dominem temas de ciência, à semelhança do que acontece no estrangeiro. 

 LS: Além de fazer a ponte entre a ciência e a sociedade o divulgador, ou comunicador científico deve ter quais outros objetivos e atributos, ou esses já o são suficientes para a atividade? 

 CF: A ciência é parte da sociedade, pois os cientistas não são extraterrestres. É preciso criar ou reforçar pontes entre as várias dimensões do ser humano: as ciências e tecnologias são duas, mas as artes e humanidade são decerto outras. Uma das maneiras de fazer ciência científica deve ser criar “pontes” ou interacções entre as ciências e as artes, contribuindo para resolver a questão das “duas culturas” que para nossa infelicidade persiste. Os cientistas deveriam aprender com os artistas que as emoções e sentimentos são mobilizadores, complementando a racionalidade. 

 LS: Quais são as principais características que o senhor elenca como sendo as mais apropriadas para o exercício da divulgação científica, independente de público e meio de divulgação? 

 CF: Qualquer que seja o público e qualquer que seja o meio o essencial na comunicação é que haja… comunicação. Para isso tem de haver entusiasmo e empatia, que muitas vezes é assegurado por aquilo a que se chama carisma. 

 LS: Recordo aqui uma expressão sua, que a li e ouvi, em um dos seus podcasts publicados no jornal “Público,” em que usa uma divertida expressão, “casado”, para referir-se à sua relação com a física. Dizia sobre “ter se casado com uma senhora chamada física”. Neste caso, eu acrescentaria também com a ciência, ambas percorrem a história de braços dados. Não é mesmo?

 CF: Sim, o que digo a respeito da física, a minha ciência, pode ser dito a respeito de outras ciências. Há outras senhoras atraentes… A ciência em geral é uma “meta-senhora”, uma sociedade feminina. É curioso que, em português (e também noutras línguas), as ciências sejam femininas, mas espero que aqueles mais “politicamente correctos” não encontrem nestas metáforas inconvenientes questões de género. A ciência moderna começou, no processo da chamada Revolução Cientifica, com a física e continuou com a química, a biologia e a geologia. As ciências sociais e humanas vieram depois. A matemática é anterior, funciona como uma linguagem para todas as ciências. Como disse Galileu: “O livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos.” 

 LS: Por isso, pergunto-lhe: - Como tem sido o seu casamento com essas senhoras? CF: O “casamento” é uma boa metáfora, porque as pessoas a apreendem imediatamente. Tudo o que é linguagem do dia a dia é fácil de ser apreendido. Os casamentos mais bem-sucedidos, porque felizes, são “para a vida”. É por isso que usei as expressões “enamoramento” e “casamento” com a Física. É uma bela senhora. Cheia de belas surpresas, que me continua a prender. Mas uma metáfora é sempre limitada. Ao contrário dos casamentos usuais, gostava que mais gente apreciasse os dotes da “minha senhora” … 

 LS: O que de mais significantes elas vêm lhe ensinando e nos ensinando? 

 CF: Mais do que um conjunto de conhecimentos que vão sendo ampliados, a ciência é um método, o método científico. No ensino e na divulgação das ciências nem sempre enfatizamos a centralidade do método. O método científico, criado por Galileu e outros, consiste, partindo de uma hipótese, na observação, na experimentação (observação em condições controladas) e na racionalização (em geral, matematização), para comprovar ou não a hipótese inicial. Repare-se na palavra “comprovar”: produzir prova. Este processo exige a repetição e a verificação por outros: é robusto por ser um processo eminentemente social. A ciência não é o que diz um só indivíduo, mas sim o consenso que emerge da aplicação do método. 

 Quando, aplicando o método, respondemos a uma questão, aparecem logo outras, pelo que o caminho da descoberta científica parece interminável. Este é um dos seus principais encantos. O essencial é que é possível descobrir o mundo, do qual nós próprios fazemos parte, e que essa descoberta prossegue e prosseguirá. Não é um processo fácil, mas a história da ciência anima-nos a prosseguir. Amanhã vamos saber mais do que ontem, como já dizia no século XVI o sábio português Garcia da Orta. 

 LS: Em especial nestes últimos anos com a pandemia, o que ficará de legado para a história da ciência, para além das vacinas, é claro? 

 CF: O desenvolvimento em tão pouco tempo (dez meses) de novas vacinas ficará decerto para a história da ciência e da tecnologia. Estou convencido de que esse tipo de vacinas encontrará outras utilidades noutras doenças. Isto é, a pandemia espicaçou o nosso engenho e as novidades que conseguimos vão dar outros frutos, em benefício da nossa saúde. De um ponto de vista mais geral, quero crer que a pandemia levará muita gente a olhar com outros olhos para a ciência de modo a que se invista mais nela. Em Portugal investe-se muito pouco na ciência em comparação com os países mais desenvolvidos do mundo, na Europa ou fora dela. Mas não tenho ilusões: a ciência terá sempre que se confrontar com a pseudociência ou com a anticiência. Tal decorre do simples facto de sermos seres racionais, mas também irracionais. O ser humano tem uma boa parte de irracionalidade. Como revela a Internet, há fenómenos colectivos de avolumamento da irracionalidade, que está à vista por exemplo nos amplos círculos que cultivam teorias da conspiração. 

 LS: No percurso desse período de divulgador da Ciência o senhor tem tido alguns embates. O maior deles é com o que define ser a “pseudociência”, o que também discutiu no seu livro em coautoria com David Marçal “A Ciência e seus Inimigos” (2017). Para além desse enquadramento, acredita que existe somente uma ciência e o que a caracteriza? 

 CF: Existem várias ciências e o que as une é a aplicação do método científico. O seu objectivo é, repito, a produção de provas. Claro que uma parte do que damos por certo hoje poderá amanhã ser posto em questão e eventualmente descartado. Mas disse “uma parte”: não vamos e nunca iremos descartar tudo o que temos por certo. A ciência vive, portanto, da tensão entre o que se sabe e o que não se sabe, mas se vai acabar por saber. A ciência é cumulativa. O novo conhecimento tem se assentar no velho. Aliás, essa é precisamente uma das dificuldades do trabalho científico: é preciso acrescentar algo de novo sem pôr em causa o edifício do que já se sabe.

 LS: Quais são as principais características daquilo que podemos distinguir da ciência e da pseudociência? 

 CF: A pseudociência – um termo que eu e o David não criámos – é tudo aquilo que se faz passar por ciência sem, todavia, não o ser, porque não usa o método científico para produção de prova. Invocam falsas autoridades, usam o poder da crença, mas o verdadeiro “núcleo duro” da ciência não está lá. O curioso é que os seus autores se fazem passar por cientistas, procurando o prestígio de que a ciência goza. Estou-me a lembrar da imitação da linguagem científica, tentando usar terminologias sofisticada, de modo a que pareça científico aquilo que efectivamente não é. 

 LS: Em relação ao que algumas pessoas chamam de “teorias da conspiração” e crenças como a de que a “Terra é plana”, ou que “o homem não foi a Lua”, entre outras. Assim, tem-se a impressão de que o campo do conhecimento referente a física e a astronomia são os mais preferidos para que este tipo de teoria conspiratória surja. É isso mesmo? Ou não? Como o senhor observa essas questões? E por quê? 

 CF: Há teorias de conspiração em vários domínios e não apenas na astronomia. Em particular elas existem no domínio da política: o alegado “governo oculto do mundo”, por exemplo. As teorias da conspiração têm, na sua génese, a recusa da ciência: produz-se uma “meta-explicação” que nada explica, atribuindo a certas entidades uma autoria oculta. A ciência procura descrições e explicações (relações de causalidade) baseadas, como disse, na produção de provas. Pelo contrário, nas teorias de conspiração não há quaisquer provas, mas sim e apenas crenças partilhadas. Não há nada a explicar por que tudo está explicado desde logo à partida. Essas teorias são fortes, porque é muito forte o poder da crença e ainda mais o da crença partilhada. A ligação dentro de um grupo pode ser muito intensa. Para a ciência, é muito fácil desmontar teorias da conspiração como aquelas que apontou da terra plana e da irrealidade da viagem à Lua. Mas, dado o poder das crenças que certas comunidades têm entranhadas, os defensores dessas teorias nem sequer ouvem os argumentos da ciência. 

 LS: Frente a sua experiência e sobre a abordagem que tem feito ao longo dos anos, trabalhando e divulgando ciência e astronomia, o senhor acredita que, para divulgar esses temas sobre o espaço, as referidas pesquisas e os feitos tecnológicos obtidos, é necessário que o divulgador seja um especialista no assunto? Por quê?

 CF: O divulgador pode não ser exactamente um especialista, mas tem de ter um conhecimento sólido dos assuntos que divulga. Como os assuntos do espaço excitam a nossa imaginação, são daqueles que despertam mais interesse no público. Todos nós queremos saber como é o mundo em larga escala, como nasceu e evoluiu, como vai ser o seu destino… Hoje sabemos, com os dados da ciência, que somos “pó das estrelas”, como dizia Sagan. Existe uma ligação íntima, embora oculta, entre nós e as estrelas, pois a maior parte dos átomos que constituem o nosso corpo vieram de uma grande estrela, anterior ao Sol, que explodiu. As pessoas que não conhecem este facto, ficam, em geral, impressionadas quando este lhes é comunicado, seja por um cientista, seja por outro divulgador. 

 LS: O senhor abordou sobre o Padre Antônio Vieira no seu curso, em que eu participei, “Workshop - História da Ciência em Portugal”, em março deste ano, no entanto, fiquei com essa questão na cabeça e gostava de lhe perguntar mais sobre: - No século XVII, uma das figuras históricas influentes da cultura portuguesa, foi o Padre Antônio Vieira – chamado por Fernando Pessoa como “o imperador da Língua Portuguesa”. E, para a ciência em Portugal e no Brasil, que papel devemos reservar ao Padre Antônio Vieira? 

 CF: O padre António Vieira não foi de modo nenhum um cientista. Mas pertencia a uma ordem religiosa, a dos Jesuítas, que praticava, ensinava e divulgava ciência. Na sua retórica usou muitas vezes metáforas baseadas em factos científicos. Por exemplo, a ciência de Descartes sobre o arco-íris, que é do seu tempo. Ele também foi um observador de cometas, um tipo de observação que estava muito em voga no século XVII, e que ajudou a desfazer o mito da invariabilidade dos céus e da separação entre os mundos celeste e terrestre. Foi uma grande figura da cultura, até pelo seu extraordinário domínio da língua, e que esteva muito atento à ciência da sua época, servindo-se até dela para a sua parenética. 

 LS: Padre Antônio Vieira, pode ser considerado também um divulgador da ciência, ou deixamos para ele, neste aspecto, o significado da sua obra para as letras e a filosofia com suas pregações, sermões e escritos? 

 CF: Não pode ser considerado um divulgador de ciência. É um escritor de temáticas religiosas, até com um lado místico muito pronunciado, que está até nos antípodas da ciência. Estou-me a referir à sua crença no Quinto Império e na superioridade portuguesa no mundo. 

 LS: Pelo seu conhecimento e pelo tanto que já publicou e pesquisou, quem foi o cientista-divulgador da ciência que o senhor considera o, ou os, mais relevantes para a história da ciência em Portugal?

 CF: Um clássico é Garcia de Orta, pois o seu livro Colóquio dos Simples de 1563, se é um livro de ciência, é também um livro de divulgação. Escrito em forma de diálogo, à semelhança dos livros principais de Galileu (que só vieram depois!), transmite o espírito científico ainda antes da Revolução Científica de Galileu, Newton e outros. No século XX, realço o trabalho de ligação entre ciência e sociedade feito por Egas Moniz, o nosso único Prémio Nobel nas áreas das ciências. Quer a sua tese “A Vida Sexual” quer o seu livro Confidências de um Investigador Científico têm aspectos de divulgação científica. 

 LS: E na área da astronomia e da física? 

 CF: Nesta área relevo o pioneirismo do Padre Teodoro de Almeida, da Ordem dos Oratorianos, que, na segunda metade do século XVIII, escreveu em português a Recreação Filosófica. É claramente um livro de divulgação dirigido a um público alargado, embora minimamente culto. Os primeiros volumes do total de dez tratam de temas de Astronomia e Física. Curiosamente, a sua forma também é a do diálogo, como em Garcia de Orta.

 Mas não posso deixar de falar de Rómulo de Carvalho, professor de Físico-Química que, no século XX, foi também poeta (sob o nome de António Gedeão), divulgador científico e historiador de ciência. Os seus livros de divulgação da física tiveram grande influência no seu tempo. 

 LS: Em uma das palestras, promovida pelo Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço, (Iastro.pt) que assisti pelo Youtube, o físico Michio Kaku referia-se as novas descobertas científicas e de novos mundos, comparando-as com a Era dos Descobrimentos, especialmente com os descobrimentos e navegações portuguesas dos séculos XV e XVI. Também no seu curso aqui já referido (“Workshop - História da Ciência em Portugal”), o senhor trouxe semelhante analogia. Podemos dizer que hoje toda a pesquisa de inúmeros cientistas nesta área, com telescópios e sondas espaciais, são os novos navegadores do século XXI? E o que podemos ainda esperar desta ciência do espaço? 

 CF: O norte-americano Michio Kaku é um físico de altas energias, que se especializou em teoria das cordas, uma candidata a “teoria de tudo”, mas que ainda não conseguiu obter provas experimentais. Ganhou relevância pelos seus livros com uma futurologia de base científica. Tendo, sem nenhum nacionalismo da minha parte, a concordar com a analogia que ele faz entre novas descobertas científicas e as descobertas geográficas e culturais dos portugueses nos séculos XV e XVI. Já no tempo de Galileu, o jurista e filósofo de ciência inglês Francis Bacon mostrou, num dos seus livros, as naus a largar as portas de Hércules (entrada do Mediterrâneo) como uma alegoria às descobertas que então se começavam a fazer, primeiro pelos Portugueses e depois por outros. A própria palavra “descoberta” nas línguas nacionais europeias, se tem um étimo latino, o certo é que começou a ser usada na altura dos primeiros Descobrimentos. Isto é, as descobertas antes de serem científicas começaram, por ser geográficas. “Descobrir” significa destapar, revelar o que lá está e que antes não se via. Para isso foram necessários os valores da observação, da experimentação e da racionalidade que estão na base do método científico. Por exemplo, aprendeu-se por tentativa e erro, tão típico do processo científico, e com algum sacrifício de vidas humanas, como era o melhor caminho para regressar depois de uma viagem para Sul, a partir de Portugal, ao longo da costa africana. Para aproveitar os ventos, tinha de se dar a chamada “volta pelo largo”. 

 Eu diria, para concluir, que os Descobrimentos Marítimos foram um prelúdio da Revolução Científica. Os elementos do método já lá estavam ainda que não estivesse o método consolidado como um todo. Neste sentido, a ciência moderna é devedora desses homens que ousaram sulcar o mar ignoto, descobrindo, como escreveu o matemático Pedro Nunes, em 1537, “novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos, e, o que mais é, novo céu e novas estrelas”.

 LS: Muito obrigada pela sua colaboração!

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