O comboio rufa e vou, com os lábios apegados à janela, preso aos matos densos, aos milheirais, às espigas verdes, aos riachos, às aldeias magoadas e à inércia dos rios margeados de faúlha, onde corre um ou outro carro desancando a paz dos pinhais intransitáveis. Em seguida, e com os dois bilhetes furados na mão, o pai abre-me o seu mundo: – Aqui é Liceia… aqui é Santana, terra de música. Têm aí uma banda que já foi à festa da Nossa Senhora das Neves. Não se chega à dos Covões, mas é uma boa banda. Aqui é o apeadeiro de Costeira. Aqui é o apeadeiro de Alhadas. Olha, ali é a serra!?... E agora vem aí a noite na brenha… Pendente, nas pedras húmidas, nos musgos e na vertigem da velocidade, cerro os olhos e abro-os, quando o pai grita: – Olha a ponte e o rio da cidade dos capelos! e, neste momento, subo aos pilares de metal e desço aos pauis, e do lado esquerdo, contornando a cabeça de uma mulher idosa, vejo a serra e os pinheiros bravos, subindo em cascata ao céu cendrado. Além da serra, haveria mais tarde de ver o meu anjo. Haveríamos de parar para nos conhecermos. Mas, hoje, o dia é de praia e a névoa desvanece-se. Há comboios partindo para Alfarelos, para Coimbra, para os confins do mundo. Há hangares com comboios caducos, ferro marrom, troços espessos de eucaliptos e uma estação com uma latrina cheia de merda e papel higiénico, sem fechadura. Rodo o autoclismo e urino, sob o olhar do pai, que desabafa: – Já está, ou não? Deixa tudo limpo, rapaz! Abriste a água, não abriste?! Fecha bem as torneiras! e eu, sem lavar sequer as mãos, digo em surdina (é assim que falo, assim, como uma boca senil, inspirando ar para falar): – Já, pai. Tomamos o pequeno-almoço, no bar da estação. O pai pediu leite morno e eu pedi um bolo de arroz. Agora, vamos, pela margem do Mondego, observando o revoluteio das gaivotas ao redor dos navios alvos ancorados e das tábuas, carcomidas e atafulhadas de cordas e silêncio, a água escura e as canas inclinadas dos pescadores de robalo, com baldes com camarões e encafuados em botas de borracha, descortinando na corrente algum sigilo. Só os guinchos me apoquentam, de tal modo que à indagação do pai: – É maravilhoso, não é?! Agora ficarias aí o dia todo…, eu, amuado e leviano, sacudo os ombros e balbucio interjeições: – Oh... oh! Abeiramo-nos do mercado municipal. O fedor a merda de cão, à entrada, é de tal modo repugnante e nauseabundo que estugo o passo, e entro, cheirando a fragrância dos morangos, das nectarinas, das uvas pretas de moscatel e das pinhas de ananases, enquanto as feirantes, espevitadas e desenvoltas, namoram o pai: – Olhe, leve para o seu neto! Que olhos lindos ele tem! Azuis, como os seus. Leve, homem, que é uma pechincha! e o pai, sem as corrigir e todo transido de orgulho: – Vim mostrar isto ao rapaz e comprar um chapéu para o sol. Sabe que o sol é perigoso nesta idade… – Olhe, chapéus é ao fundo, ali ao lado do peixe. Invade-me, de novo, a salmoura, os pregões das peixeiras e o sangue de peixe, escorrendo pelas batas dos peixeiros espadaúdos que ostentam, nas mãos, olhares desorbitados, e que, com facalhões, cortam às postas peixe-espada e mexem em carapaus e sardas imersas em água e gelo. Caminhamos, de novo, sobre o sal, correndo pelo chão, e com os meus chinelos chapinando na imundície. Caminhamos até à barraca dos bonés de todas as cores, onde uma mulher baixa, vestida de negro e resoluta, fixa em mim uns olhos conspícuos e escuros: – É para o rapaz? – É, sim senhora. – E de qual é que ele gosta mais? Diz lá, amor?! e, passando-me a mão pelo cabelo, continua: – Gostas mais do verde, do vermelho ou do azul? e eu desembucho, tímido e atarantado: – Vermelho. – És do Benfica, não és? – Sou! – Ah, que lindo menino! e, entrementes, o pai, com minúcia, retira da carteira uma nota para pagar à mulherzinha o boné. Já com o boné vermelho espetado na cabeça, e, deixando os despojos dos cães e os ramos dos abrunheiros-dos-jardins, soergo a cabeça para o farol encarnado, o pai agarra-me pelo braço e guia-me até ao estuário, como se andasse nas trevas. Ali permaneço, alguns minutos, especado e absorto, a ver as ondas rebentar, nos recifes negros, e a boca exígua do rio a encher suavemente, graças às vagas do indomável mar. Ali permaneço, a ver o denodo dos pescadores, pregados aos escolhos, e, como se o rugido não lhes varasse o corpo, enrolando papel, retirando tabaco das onças, abandonando o cigarro num canto da boca e soltando palavras inaudíveis, sempre com o olho na cana, na maré e nos traseiros das jovens que correm no passeio.
sexta-feira, 11 de março de 2022
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1 comentário:
Belo texto! Nada é comparável e nada substitui a literatura. Não há sucedâneos de literatura. Quem não tem tempo para a literatura não tem tempo para a vida. Viver não é possível sem tempo para morrer e para aprender a morrer.
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